quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Conúbio que blinda

by Izidoro AZevedo dos Santos


O Brasil, pela tibieza de suas lideranças política, pela inflexibilidade de suas eminências jurídicas e pelo cinismo de seus comandantes militares ainda tem muito a aprender com a altivez e a dignidade de seus vizinhos de fronteira e de história.

No Uruguai, em outubro passado, a Câmara dos Deputados revogou a chamada Ley de la Caducidad, um acordo entre direita e esquerda que congelou durante 25 anos os crimes de direitos humanos praticados pela ditadura de 12 anos que caiu em 1985, junto com a brasileira. O presidente José Mujica, um ex-guerrilheiro Tupamaro, preso e torturado como Dilma Rousseff, sancionou a lei que permite a reabertura de 88 processos de tortura e violações antes congelados pela autoanistia dos militares. Um deles é o caso dos uruguaios Lílian Celiberti e Universindo Rodríguez Díaz, sequestrados em Porto Alegre, em novembro de 1978, numa ação binacional da Operação Condor que juntou comandos do Exército uruguaio e agentes do DOPS do delegado Pedro Seelig. Assim, poderá vir de Montevidéu a justiça tardia que nunca brotou em Brasília.


O comandante supremo do Exército uruguaio que autorizou o sequestro em Porto Alegre era o general Gregório Goyo Alvarez. Em 2007, o general foi preso num cárcere de Montevidéu especialmente construído para militares envolvidos em crimes de lesa humanidade e, em 2009, condenado a 25 anos de prisão por homicídio muy especialmente agravado contra militantes de esquerda desaparecidos no tráfego sinistro da Condor entre o Uruguai e a Argentina. Alvarez foi responsabilizado diretamente pela morte de 37 pessoas — três menos do que o total de mortos registrados, um por mês, no DOI-CODI da rua Tutóia nos 40 meses que ali reinou o seu fundador, o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, companheiro de ofício do capitão Lopes Lima. Processado na Justiça paulista como torturador pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, morto em 1971 após horas de tortura no pau-de-arara da Tutóia, o hoje coronel Brilhante Ustra relacionou como testemunha de defesa o senador José Sarney, o primeiro presidente civil pós-ditadura e um dos derradeiros caciques do PDS, a legenda da ditadura que o povo não esquece. Isso explica, em parte, o conúbio ainda forte de políticos e militares no Brasil que blinda e brinda os agentes da repressão brasileira com a impunidade e o esquecimento.

Na Argentina, no mesmo outubro passado, a Justiça condenou 16 militares por crimes contra a humanidade, 13 deles sentenciados à prisão perpétua. Diferente da inércia brasileira, onde políticos e juízes escondem o rosto e omitem as palavras, a sociedade argentina já testemunhou a condenação de 222 militares por crimes contra a humanidade, enquanto outros 800 aguardam julgamento, na esteira da revogação no Governo Kirchner das generosas anistias concedidas por seus antecessores, Raúl Alfonsín e Carlos Menem. Um dos réus condenados à pena perpétua foi o capitão de fragata Alfredo Astiz, 59 anos, conhecido como o “Anjo da Morte”, astro da mais famosa sucursal do inferno da Argentina: a Escola de Mecânica da Armada (ESMA), um sinistro endereço de torturas onde sobreviveram apenas 100 dos 5.000 presos que ali passaram e padeceram. Astiz só foi reformado em 1998, quinze anos após a queda da ditadura, porque ousou dizer: “Eu ainda hoje mataria e colocaria bombas se recebesse ordens”. O capitão já estava condenado à prisão perpétua, à revelia, na França (1990) e na Itália (2007).

General Martin António Balza | to Uno Rafaela


DNA do passado


Três anos antes, em abril de 1995, a estrela da noite do programa de entrevistas mais famoso da TV argentina, o Tiempo Nuevo, foi um general de quatro estrelas: Martin António Balza, comandante supremo do Exército. Sereno, cabelos brancos aos 61 anos, tirou do bolso um papel com anotações e, sob o silêncio espantado do jornalista Bernardo Neustadt e de toda a nação, fez o mais impactante auto de expiação de um graduado militar do Cone Sul do continente. Disse o general:

Sem buscar palavras inovadoras, mas apelando aos velhos regulamentos militares, aproveito esta oportunidade para ordenar uma vez mais ao Exército, na presença de toda a sociedade: ninguém está obrigado a cumprir uma ordem imoral ou que se afaste das leis e dos regulamentos militares. Quem o fizer incorre em uma conduta viciosa, digna da sanção que sua gravidade requeira. (…) Sem eufemismos, digo claramente: delinque quem vulnera a Constituição nacional. Delinque quem emite ordens imorais. Delinque quem cumpre ordens imorais. Delinque quem, para cumprir um fim que crê justo, emprega meios injustos e imorais. A compreensão desses aspectos essenciais faz a vida republicana de um Estado.(…) Em nome da luta contra a subversão, o Exército derrubou o governo constitucional e se instalou no poder em forma ilegítima, num golpe de Estado. Venho pedir perdão por isso e assumir a responsabilidade política pelo desatino cometido no passado. No poder, o Exército cometeu ainda outros delitos. O Exército prendeu, sequestrou, torturou e assassinou – tal qual o fizeram os delinquentes subversivos – e muitos de seus membros viraram delinquentes como eles.

O general falava da mais sangrenta ditadura da região, que registra cerca de 30 mil mortos e desaparecidos na chamada “guerra suja” do período 1976-83. Hoje embaixador do governo de Cristina Kirchner na Colômbia, Balza tem medalhas de 17 países, duas delas do Brasil: a Ordem do Cruzeiro do Sul e a Ordem do Mérito Militar, no grau de Grande Oficial, as mais importantes da área federal, conferidas ainda no primeiro Governo FHC.

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