by Deise Brandão
Algumas histórias começam com um convite.
A de Wilma Mankiller começou justamente com a ausência dele.
Quando entrou numa grande reunião intertribal, ela carregava o peso de uma novidade incômoda: era a primeira mulher na história moderna a assumir o comando da Nação Cherokee. O suficiente para que muitos decidissem não apenas desconsiderá-la, mas deixá-la de fora de forma planejada — como quem tenta esconder a mudança por trás de uma porta fechada.
A sala estava preparada para isso.
Cadeiras perfeitamente distribuídas.
Discursos alinhados.
Olhares ensaiados para atravessar o corpo de uma mulher como se fosse ar.
E então — ali, num canto — uma cadeira sem dono.
Não oferecida.
Não aguardada.
Apenas largada contra a parede, como se dissesse: você não cabe aqui.
Wilma puxou a cadeira.
O som arranhou o chão, a formalidade, a tradição e o ego de muita gente.
E se sentou.
Esse gesto simples bastou para anunciar:
não haverá retrocesso.
Uma infância interrompida — e a semente da insubmissão
Wilma nasceu em 1945, em Tahlequah, Oklahoma — o coração físico e espiritual dos Cherokee.
Cresceu entre histórias, responsabilidades comunitárias e um senso profundo de pertencimento. Até que o governo decidiu “modernizar” sua família.
O nome oficial era política de realocação indígena.
O efeito real era bem mais cruel: arrancar povos inteiros de sua terra, espalhando-os em cidades onde a tradição não passava de um eco distante.
Para muitos, foi um projeto federal.
Para Wilma, foi desenraizamento.
E quem perde a terra cedo aprende a nunca mais abrir mão dela.
Quando a liderança veio acompanhada de ameaça
Décadas depois, já de volta ao território Cherokee, Wilma decidiu disputar o cargo de vice-chefe. O que recebeu em troca não foi debate político — foi guerra psicológica.
Pneus rasgados.
Telefonemas agressivos.
Cartazes queimados.
Acusações de que uma mulher eleita seria “motivo de chacota” entre as tribos.
Ainda assim, venceu.
Quando o então Chefe Principal foi chamado para um cargo no governo dos EUA, Wilma assumiu sua posição — e pela primeira vez, uma mulher passou a comandar uma das maiores nações indígenas do país.
O título era novo.
A resistência, velha conhecida.
Mas ela não se dobrava.
E não se desculpava por existir.
O que uma comunidade pode fazer quando alguém acredita nela
A obra mais simbólica de Wilma não nasceu de discursos — nasceu de pá, enxada, e trabalho coletivo.
Bell, uma pequena comunidade Cherokee, estava esquecida, sem água encanada e sem perspectivas. O governo federal ignorava. O município não tinha recursos.
Wilma convocou os próprios moradores.
Eles cavaram, carregaram, construíram e instalaram quilômetros de tubulação.
Resgataram prédios comunitários.
Recriaram espaço comum.
Reacenderam a confiança de que o futuro não chega pronto: ele é construído.
A revolução de Wilma não foi ideológica.
Foi prática.
Foi cotidiana.
Foi coletiva.
E foi vitoriosa.
A década em que um povo voltou a se enxergar
Sob sua liderança a população registrada quase triplicou. programas educacionais floresceram, nasceram centros infantis, clínicas e projetos de soberania, empregos tribais se multiplicaram e a Nação Cherokee recuperou o que mais lhe tinham tirado: voz.
Em 1991, 83% dos votos garantiram sua reeleição — um recado claro de que a resistência inicial havia se transformado em respeito sólido.
Em 1998, recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade — mas, para ela, a verdadeira medalha eram as torneiras funcionando em Bell.
O gesto que continua ensinando
Wilma morreu em 2010, aos 64 anos, depois de anos enfrentando problemas de saúde com a mesma serenidade obstinada que levou para a política.Mas seu legado segue pulsando, especialmente naquele primeiro gesto:
Ela não pediu permissão.
Ela puxou a cadeira.
E sentou bem no centro da sala que tentaram negar a ela.
Há lideranças que gritam.
Há lideranças que negociam.
E há líderes como Wilma Mankiller — que transformam a estrutura simplesmente por se recusarem a desaparecer.
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