sábado, 27 de fevereiro de 2016

Duvivier e os frangos voadores







Um familiar – só se é traído pelos seus – me enviou o último artigo de Gregório Duvivier, que tem uma coluna de humor involuntário na Folha de São Paulo. O indecente puritanismo de Duvivier me obrigou a escrever uma resposta pormenorizada. No texto o humorista “revela” ao mundo que é um defensor dos negros, das mulheres, dos aborígenes, dos animais, dos maconheiros e dos mamilos femininos – ora, quem diria? – logo, quem ousar questionar seus absurdos só pode ser um fascista malvado que odeia negros, mulheres, animais, aborígenes e – blasfêmia das blasfêmias – mamilos!

Confesso que gostaria de começar o ano tratado de temas mais relevantes para o Ocidente em geral. Porém, a autopromoção como forma de engajamento político é algo que para mim está na mesma categoria do terrorismo islâmico. Não posso deixar passar! O artigo de Greg, que leva o prometéico título “Um dia”, é a quintessência do pensamento de esquerda que, antes de tudo, é menos um pensamento e mais um sentimento: a vontade arrebatadora de reorganizar o mundo do zero, refundar a própria humanidade, como se a sociedade humana fosse desmontável como os blocos de montar do Lego.

Esse tipo de exibição moral em praça pública da qual Duvivier é adepto é reproduzida de forma acrítica e massiva nos jornais e nas redes sociais, sem qualquer contraponto, como se este marketing dos bons sentimentos fosse sinônimo de “consciência crítica”. O artigo solene de Duvivier nos lembra que – escondida por toneladas de teorias e abstrações – a cosmovisão progressista é nada mais do que um resquício de teimosia infantil não-tratada, que aflora em adultos que querem um mundo que se pareça com seu quarto.

Puritanismo 2.0
Duvivier é alguém que o filósofo David Hume definiria como puritano: um narcisista que se assume como moralmente superior, tem uma visão binária da vida e enxerga na História a luta do bem contra o mal, fazendo questão de se posicionar publicamente, e com toda pompa, vários degraus acima dos reles mortais insensatos que defendem o Mal.

Selecionei alguns trechos para ilustrar o puritanismo de Greg e refutá-lo.

“Tudo muda o tempo todo. Antigamente era aceitável ter escravos. Hoje em dia o escravagismo é bastante malvisto socialmente –a não ser, é claro, que o dono dos escravos seja uma empresa, e os escravos sejam asiáticos.” Uma correção: a escravidão é malvista no nosso quarteirão ocidental do mundo. No resto do planeta ela vai muito bem, obrigado! É só aqui, nesta partezinha do Globo, que nos livramos de uma prática mundialmente aceita e praticada por séculos. Quer dizer, nem todos nós.

O problema em enxergar o mundo a partir de um par de óculos ideológico é que você só enxerga o que se encaixa na sua visão. E regimes políticos autoritários que tratam homens e mulheres como propriedades de Estado? Duvivier nada tem contra o fato de que homens e mulheres são escravizados por governos (cubano, venezuelano, norte-coreano)? Não incomoda Duvivier que cubanos sejam impedidos de deixar a fantástica ilha dos irmãos Castro? Que existam dissidentes políticos nas prisões da Venezuela? Parece que não.

Só causa repulsa em Greg aquilo que não se encaixa na sua visão ideológica da vida. Nem todo tipo de escravidão lhe parece ruim; aquela praticada por regimes progressistas, por exemplo, passa absolutamente incólume aos lamentos de Duvivier. Sinto lhe informar, Greg, mas nem tudo muda.

A natureza humana, por exemplo, permanece a mesma. Somos seres atravessados por compulsões, desejos irracionais e vontades atávicas. E se conseguimos alcançar certo grau de civilização isso se deu por meio de mudanças graduais, pontuais, conduzidas por reformadores; jamais por revolucionários puritanos.Greg, o puritano: “Um dia os pombos voarão já assados”

Ainda assim, a civilização nos causa mal estar. Somos animais e só chegamos até aqui porque fomos guiados por tradições, hábitos e convenções. Os quebradores de tabu ainda não entenderam aquilo do qual falava Edmund Burke: os revolucionários destroem muito mais do que são capazes de construir. Greg não pode recriar o mundo que pretende graciosamente destruir para expressar seu senso de moralidade superior.

“Há menos de cem anos, visitantes pagavam para ver aborígenes em zoológicos humanos. Tudo já foi normal até que algum dia ficou bizarro. O que nos leva a perguntar: o que vai ser bizarro daqui a cem anos?” É uma boa pergunta. Antes de aprofundar a resposta nos trechos seguintes, ouso responder que no futuro acharão bizarra nossa esquizofrenia moral que nos impele a protestar contra a morte de golfinhos e tratar fetos humanos como parasitas que não merecem viver.

“Um dia vai ser muito estranho mamilos masculinos serem banais e mamilos femininos serem escandalosos. Um dia vai ser muito estranho o Congresso brasileiro ter só 9% de mulheres. Um dia vai ser muito estranho ser proibido à mulher interromper sua gestação como se o seu corpo pertencesse ao Estado.”

Mamilos à mostra nas ruas ou pênis exibidos na hora do jantar em família, et caterva, são bandeiras políticas que surgem de cabeças abstratas da academia. Um dia alguém na academia vai propor que é hora de ressignificar simbolicamente o ânus e que devemos todos exibir os nossos por aí. Sem preconceito com a bunda caída do vovô ou da titia, certo?

As mulheres não se importam com isso. Os homens não se importam com isso. Quem se importa com isso é Duvivier, seus leitores, e os alunos e professores da USP.A representação das mulheres depende das próprias mulheres. O sufrágio universal foi conquistado no século passado. Basta que as mulheres votem nas mulheres.

“Um dia vai ser muito estranho igrejas não pagarem imposto. Um dia vai ser muito estranho um pastor se eleger deputado e citar a Bíblia no Congresso. Um dia vai ser muito estranho ver a figura de Cristo acima do juiz num tribunal laico”.

Acho que um dia vai ser estranho perceber que um dia as pessoas se submetiam pacificamente a tantos impostos! Vai soar mais estranho ainda a ideia de que as pessoas de esquerda que – supostamente – defendem os mais pobres eram justamente aquelas que mais defendiam uma carga tributária irracional que comia boa parte do salário dos mais pobres.

Duvivier tem muitos problemas com igrejas, cristãos, evangélicos, enfim, esse tipo de religioso que não explode humoristas. E sempre abusa dos clichês para criticá-los.Os nossos puritanos 2.0 nunca leram John Stuart Mill e confundem laicidade com anulação cultural da crença herdada. O Estado laico foi fundado para garantir a liberdade de crença de todos e, devo informar, apenas aqui, neste quarteirão ocidental do mundo, isso é possível.

Nas teocracias é impossível. Duvivier talvez não saiba, mas Sartre, De Beauvoir e Foucault celebraram a revolução iraniana que hoje impõe a burka às mulheres do Irã. São puritanos que flertaram o fundamentalismo antiamericano dos aiatolás e terroristas.

Puritanos odeiam o Ocidente, mas gozam com aiatolás
Os crucifixos pairando sobre a cabeça de juízes cujas premissas legais descendem da herança cristã são apenas um lembrete de quem nós somos. Nenhum crucifixo vai explodir.“Um dia vai ser muito estranho negros ganharem pouco mais da metade do que ganham brancos –sim, esse dado é de 2016.”

Duvivier é um artista da autopromoção! Veja como ele consegue se posicionar a favor de todas as minorias catalogadas nos últimos 200 anos e, desta forma, empurrar seus críticos para a categoria de inimigos das mesmas minorias. Hora de desarmar esta arapuca retórica.Basta desmistificar a questão mostrando que as diferenças “raciais” são, na verdade, diferenças culturais e educacionais que, em grande parte, são resultados históricos de políticas estúpidas defendidas por puritanos 2.0 como Duvivier, como as cotas raciais.

Quem o diz é o economista (negro) Thomas Sowell, que pesquisou o tema por 20 anos e chegou a conclusão: as diferenças salariais e econômicas entre brancos e negros remontam a perversaimposição de um salário mínimo e ao um abismo cultural aprofundado pela por políticas afrimativas sancionadas por puritanos 2.0.

“Um dia vai ser muito estranho pessoas que tratam animais como se fossem filhos comerem animais que passaram a vida enclausurados em campos de concentração porque afinal de contas alguns animais são dignos de afeto e outros não.”A causa animal é um dos fetiches das pessoas que sentem essa necessidade de mostrar ao mundo que são moralmente superiores. Duvivier não poderia resistir ao clichê!

Eu mesmo fui vegetariano porque era ótimo me sentir superior até quando me sentava para almoçar em família. A verdade é que os animais não têm direitos. Nós temos deveres para com eles. Porque somos superiores a eles. Isso não significa que vamos deixar de comê-los.

As nossas necessidades básicas, programadas pela evolução, não vão desaparecer só porque Greg está chateado. Nós devemos tratar bem os animais. Mas nunca deixaremos de nos alimentar deles. É feio? Veja a natureza, em geral, como é feia. “Um dia vai ser muito estranho uma pessoa ir presa porque planta uma erva que nunca na história matou ninguém –enquanto o supermercado vende drogas comprovadamente letais. […]Um dia vai ser muito estranho o salário ser mais taxado que a herança e a renda ser menos taxada que o trabalho”

Os puritanos sofrem de esquizofrenia. Duvivier acha que o Estado tem o direito de aumentar impostos para impedir as pessoas de comprarem carro. E que o Estado pode punir as pessoas que nasceram com uma herança. Mas acha que o mesmo Estado não tem direito de impedi-las de usar drogas.
Quer dizer, o Estado pode proibir as drogas de que Duvivier não gosta, aquelas que são vendidas no mercado. A maconha, não! Quem compra maconha não pode comprar cigarro? Pois é, Duvivier precisa se decidir: é um libertário radical ou um fascista?

“Um dia vai ser muito estranho os bancos falirem e os banqueiros continuarem bilionários.”
Não é nada estranho. Duvivier não notou que os banqueiros alcançaram recordes históricos de lucros justamente nos governos Lula e Dilma? É a cegueira ideológica.“Um dia vai ser muito estranho um jornal restringir o conteúdo para assinantes”Para que isso mude, basta que Greg e seus amigos comecem a trabalhar de graça.

Os frangos voadores
Duvivier e demais justiceiros sociais têm uma necessidade atávica de mostrar ao mundo o quanto são moralmente superiores. Eles literalmente acreditam que representam o Bem na luta contra o Mal. Gente assim é muito perigosa. Por trás da retórica libertária, são todos controladores que querem usar o Estado para refazer a sociedade do zero conforme seus próprios preceitos. Uma sociedade que seja reflexo da esquizofrenia na qual vivem, em seus surtos de puritanismo medieval.

Querem que o Estado proíba os cigarros e libere a maconha; legalize o aborto, mas preserve os filhotes de tartaruga marinha; diga quanto devemos ganhar em termos salariais, mas pegue a maior parte do salário para nos devolver em péssimos serviços públicos.Pior do que isso, Greg acredita que podemos refundar a sociedade do zero. Não podemos. A sociedade é um organismo vivo que depende de mutações graduais, mas rejeita mudanças que causem rupturas no seu tecido. Um organismo vivo sobrevive com mudanças pontuais.Mudanças bruscas – e impostas pela brutalidade – sempre tendem a gerar o resultado oposto daquele pretendido originalmente pelos revolucionários e puritanos de plantão.

Veja o caso da Revolução Francesa.
 Os puritanos de ocasião, chamados de jacobinos, queriam aliberdade, igualdade e fraternidade por meio de mudanças rápidas e violentas e pela limpeza da sociedade pelo método de enviar os aristocratas à guilhotina. No fim os jacobinos guilhotinaram uns aos outros e abriram caminho para a mão de ferro de Napoleão. Posso citar a revolução de Pol Pot no Camboja. E a revolução cultural de Mao Tse Tung na China. E anecrocracia (brilhante termo cunhado por Christopher Hitchens) da família Kim Jong na Coréia do Norte. Todos progressistas, compartilhando das boas intenções de Greg.Duvivier acredita que a História é a arena onde pessoas do bem enfrentam as pessoas do mal. Coerente com sua visão infantil de mundo, ele ignora um detalhe: a natureza humana.

A psicologia evolucionista tem pontificado tudo o que os clássicos, os gregos, os cristãos medievais, já diziam: os homens são todos limitados em virtudes e conhecimento, todos dominados por paixões atávicas. O mal não está circunscrito ao empresário, ao burguês, às pessoas de certa classe social; somos todos hospedeiros dele. Somos apaixonados pelo poder, por sexo, dinheiro e violência. Evoluímos tecnologicamente, mas nunca moralmente desde o primeiro homem. A História não é uma luta de pessoas do bem contra pessoas do mal. A História é apenas a documentação da nossa incapacidade estrutural, como espécie, de dominar nossas próprias paixões.

Na infantilíssima visão de mundo de Gregório Duvivier, a História é uma briga de torcida entre progressistas da Vila Madalena que fumam maconha, são libertários, e gostariam de trabalhar de graça contra brutos que odeiam mulheres, negros, aborígenes, mamilos e ainda fazem churrasco com cadáveres de bois que mantinham em campos de concentração.
Contra esta cafonice ideológica, invoco o velho Arthur Schopenhauer, o pensador que antecipou Freud em 100 anos, um especialista em natureza humana e, acima de tudo, um trágico que sabia que não podemos criar um mundo perfeito. E que, se pudéssemos, morreríamos todos de tédio. Profetizou Schopenhauer:

“Imaginemos, por um instante, que a humanidade fosse transportada a um país utópico, onde os pombos voem já assados, onde todo o alimento cresça do solo espontaneamente, onde cada homem encontre sua amada ideal e a conquiste sem qualquer dificuldade. Ora, nesse país, muitos homens morreriam de tédio ou se enforcariam nos galhos das árvores, enquanto outros se dedicariam a lutar entre si, a se estrangular, a se assassinar uns aos outros” É este mundo de frangos voadores que Duvivier defendeu com toda solenidade em sua coluna na Folha. Não quero destruir a reputação de crítico social de Gregório Duvivier. Quero, antes, reforçar sua capacidade de nos fazer rir, mesmo quando fala sério.

Gregório Byington Duvivier (Rio de Janeiro, 11 de abril de 1986) é um ator, humorista, roteirista e escritor brasileiro. Filho do músico e artista plástico Edgar Duvivier e da cantora Olivia Byington. Pelo lado paterno, descende do comendador Theodoro Duvivier,

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