domingo, 29 de junho de 2014

Medico Sem Fronteiras


Téliméle, 03 de junho de 2014

A melhor coisa de trabalhar com MSF é que a gente nunca sabe o que vai encontrar, nunca estamos certos de nada e sempre nos surpreendemos.

Há cinco dias, recebi uma ligação do escritório de MSF-Brasil no Rio de Janeiro perguntando se eu poderia ir para a Guiné, para trabalhar com uma epidemia de Ebola. A única coisa que era certa era que eu deveria partir em três dias para um mês de trabalho.

Após um longo voo São Paulo-Paris, Paris-Conacri, consegui dormir seis horas na casa de MSF em Conacri e ontem pela manhã peguei o carro que me trouxe até Téliméle, local onde trabalharei por um mês. Foram sete horas de carro numa estrada muito bonita, com muito verde.

Ao chegar aqui, descobri que o projeto está no começo, tem exatamente dez dias. Ou seja, ainda não há nada aqui, nem telefone e internet. Estou completamente isolada do mundo. Estamos em um hotel e estou dividindo não só o quarto mas também a cama com a outra médica. O chuveiro é bem ruinzinho e a água é fria. E ainda não há água potável.

Hoje foi oficialmente meu primeiro dia em uma epidemia de Ebola e, apesar de ser quase meia-noite e eu estar quebrada, não podia deixar de registrar este momento.

Ontem, quando conversava com a outra médica, ela me disse que tínhamos 16 pacientes internados e que era muita coisa. Não levei muito a sério porque quem já teve 450 pacientes internados, como na época da malária no Níger, só pode achar graça ser difícil o manejo de 16 pacientes.

Estamos utilizando um centro de saúde do Ministério da Saúde a 13 km, cerca de 40 minutos, de onde estamos hospedados, porque nessa região é que foram notificados os casos suspeitos. Ali montamos nosso isolamento que é dividido entre casos suspeitos e confirmados.

Saímos às 7h30 da manhã para o centro de saúde e, chegando lá, já havia a ducha de cloro para as mãos e na sola dos sapatos. Temos que nos trocar e colocar as roupas de centro cirúrgico para circular lá dentro. Assim que chegamos, soube que houve uma morte durante a noite e precisávamos preparar o corpo para devolver à família.

Foi então que eu me paramentei pela primeira vez: luva, uma roupa de borracha amarela e quente, máscara, uma touca como o véu das muçulmanas, máscara, outra luva, um avental e óculos de proteção. O calor que faz dentro dessa roupa é quase insuportável – a gente sente o suor escorrendo por debaixo dela. Assim que entrei, vi os pacientes, alguns ainda não tão ruins, do lado de fora do quarto e a senhora que havia falecido estava no chão. Temos que jogar cloro no corpo antes de tocá-lo. Depois fechamos os olhos e a colocamos numa posição mais adequada e, novamente, cloro em todo o corpo. Em seguida, o corpo vai para o saco mortuário para ser devolvido à família. Uma parte da equipe de MSF acompanha o enterro. Só homens podem participar, mas nossa promotora de saúde e/ou à psicóloga vão junto para dar um apoio à família e garantir que o corpo não seja aberto antes de ser enterrado.

Claro que com meu pé frio, minha estreia com Ebola não poderia ter sido tranquila. Enquanto uma parte de nós cuidava do corpo e fazia a consulta dos pacientes internados, outra parte da equipe saiu cedo para procurar um contato de outra paciente internada e, quando voltaram, trouxeram uma senhora em um estado bem comprometido: não conseguia ficar em pé e nem mesmo tomar o soro de hidratação pela boca. Fizemos o teste da malária para excluir e, claro, foi negativo. Em menos de duas horas depois de sua chegada, a senhora foi a óbito. Lá fomos nós novamente preparar o corpo.

Entre conhecer o trabalho e examinar os pacientes, eu entrei no centro de tratamento quatro vezes hoje. Em todas elas é preciso se paramentar e na saída tem uma pessoa só para nos jogar cloro em cada etapa em que nos livramos das peças de roupa todas.

Entendi porque 16 pacientes num centro de Ebola é algo bem difícil: ter que se vestir a cada vez que precisamos entrar é cansativo, o calor que sentimos dentro de toda a vestimenta é enorme e mesmo os mais experientes não conseguem ficar uma hora direto lá dentro. Todos saímos encharcados. Eu já comecei a tomar soro de hidratação oral porque senão não vou aguentar o mês todo.

Além disso, como estamos no meio do nada, a comida não é das melhores e as opções são bem restritas. Além de não ter internet, dividir uma cama de casal e trabalhar muito o dia todo, toda noite temos reunião com a equipe para planejar as atividades do dia seguinte. Espero ter energia para aguentar o mês todo nesse ritmo.

by msf.org.br

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