segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Além da gratidão



 
Então ficamos assim: o tripé mudou, mas continua igual. O câmbio flutuante não flutua, a política fiscal perdulária concorre ao Prêmio Nobel de Contabilidade Criativa e o regime de metas para a inflação continua inquebrantável, mesmo que o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) tenha superado o centro da meta em quatro dos últimos cinco anos. Ou seja: tem, mas acabou. Enquanto isso, a economia se arrasta para a frente e a indústria anda para trás. A taxa anualizada de crescimento do PIB trimestral mergulhou de 7,6% para singelos 0,9% em apenas dois anos. A variação trimestral anualizada do PIB da indústria de transformação, por sua vez, cai há oito trimestres consecutivos. Essa é a seqüência negativa mais longa desde junho de 1999. Não há grande mistério no diagnóstico desta modorra. Noves fora a crise internacional, a retomada do crescimento depende da expansão dos investimentos, já que o endividamento das famílias exauriu a capacidade do consumo de impulsionar a produção. Sem o motor do consumo, resta contar com os investimentos. Os pessimistas lembrariam que, no caso de um avião bimotor, quando um dos motores falha o outro serve apenas para levar os passageiros até o local do acidente.

Exagero de economistas precavidos. A maneira pela qual o governo tem enfrentado esse impasse é prosaica. A reação vem através de um chamamento aos supostos deveres cívicos de industriais e banqueiros. Municiado pela convicção de que já fez sua parte ao reduzir os juros, elevar o câmbio e distribuir isenções tributárias, o governo espera que a indústria retribua a gratidão aumentando seus investimentos. De maneira similar, apela-se para que os bancos mostrem seu reconhecimento pelo muito que já lucraram no passado aumentando o financiamento à produção. Mas nada acontece. Os empréstimos desaceleram e os investimentos recuam. Por que tanta insensibilidade? Porque a desfeita? O que o governo parece negligenciar é o fato de que, no capitalismo, as coisas não funcionam assim. Não é a suposta conscientização das necessidades coletivas, mas a perspectiva de obtenção de lucro privado, o que move as decisões empresariais.

Os investimentos recuam porque, independentemente dos favores e apelos oficiais, a indústria não enxerga perspectiva de ganhos, até porque a capacidade ociosa continua relativa-mente alta ( a média móvel de 12 meses da utilização da capacidade instalada cai todos os meses desde março de 2011). A perda de produtividade provocada, entre outros gravames, pelo aumento da inflação não convence os empresários a ampliarem a capacidade de produção, já que tem em que parte relevante de um eventual aumento do consumo seja desviada para as importações. Do lado dos bancos, a prudência não é, igualmente, desprovida de sentido. Pela mesma razão que, quando se está preso num buraco, é muito importante parar de cavar, reza a boa prática bancária que, quando a inadimplência sobe, é preciso moderar a expansão de novos empréstimos. É assim que funciona no mundo inteiro, ainda que isso possa gerar flutuações cíclicas.

O fato é que o governo parece ter certo desconforto com a idéia de que em regime capitalista as decisões empresariais são determinadas pela lógica privada da acumulação dos lucros. Apelos à consciência cívica de nada adiantam. A iniciativa privada é o que é – privada – e sua dinâmica depende da busca de interesses específicos e objetivos, consubstanciados na taxa de lucro. Para usar uma linguagem talvez mais afeita ao partido que lidera a coalização governamental, pode-se lembrar o que Marx e Engels já diziam em A Ideologia Alemã: “Não é a consciência que determina a vida,mas a vida que determina a consciência.

Tudo sugere que Brasília cultiva uma certa visão “utópica” do País. A idéia de utopia foi se vulgarizando ao longo dos séculos e acabou por adquirir o significado de algo fantasioso, um sonho bom sobre um lugar onde tudo dá certo. No conceito original da obra de Thomas More, no entanto, não é bem assim. O país narrado pelo marinheiro português Raphael Nonsenso (que não se perca pelo nome) é uma autocracia onde as atividades mais comezinhas, da organização da produção ao modo de se vestir, passando pelas relações conjugais, são determinadas de forma centralizada. As regras são duras e as punições, modelares. As decisões individuais são sufocadas pelo interesse coletivo. Não é certo que funcione, mas coloca a economia em regime de ordem unida.

O Brasil não é Utopia,  e temos muito a festejar com isso. Nosso presidencialismo de coalizão impede que as decisões centralizadas prosperem e insistirem coordenar todos os passos da iniciativa privada apenas bloqueia e atrasa as mudanças que possam redundar no aumento da produtividade. As decisões de investimento e de crédito não se pautam pelo desejo do governo, a quem cabe o papel primordial de sinalizar a estabilidade das regras institucionais. Ganharia mais o País se o governo se abstivesse deste esforço de planejamento minucioso, desistindo de tanger as decisões de investimento, e se dedicasse a garantir condições gerais favoráveis para que as decisões individuais dos empresários redundassem no bem coletivo. Isso pode ser feito por meio e um esforço decisivo que faça avançar os investimentos em infraestrutura básica, campo em que a lógica privada isoladamente é incapaz de prospectar. Aqui também, porém, o governo parece se enredar numa prática minimalista, ora trazendo para si responsabilidades que não se mostra capaz de executar, ora tentando cooptar o setor privado para empreendimentos em que limita a rentabilidade, mas deixa em aberto o risco – ao que o potencial investidor agradece, penhorado, e declina.

by  Luis Eduardo Assis
O Estado de S. Paulo - 

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