“Combate à pobreza ofuscou agenda do desenvolvimento e da redução da desigualdade”, diz pesquisador
Após dez anos no poder, o PT ainda não venceu o desafio de reduzir substancialmente as desigualdades no País. É isso o que sinaliza o estudo O Brasil Real: A Desigualdade para Além dos Indicadores, lançado pela editora Outras Expressões.
Encomendado pela organização européia Christian Aid e realizado por um conjunto de seis pesquisadores, ligados ao Centro Brasileiro de Análise de Planejamento (Cebrap), o estudo não nega os avanços ocorridos nos governos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Procura, no entanto, ir além do festejado surgimento de uma nova classe média no País.
O coordenador da equipe de pesquisadores, o professor de história econômica Alexandre de Freitas Barbosa, refuta esse conceito e afirma que as mudanças ocorridas no Brasil recentemente estão ligadas sobretudo à valorização real do salário mínimo, que deu maior poder a uma enorme massa de trabalhadores que ganham de um a três salários e realizam sobretudo atividades manuais.
“É isso que estamos chamando de nova classe média?” – pergunta ele em entrevista ao Estado, com a apresentação dos principais tópicos do estudo. Uma parte reduzida da entrevista foi publicada na edição impressa do jornal no domingo.
A seguir, uma versão mais longa do que disse o estudioso:
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem sido festejado como um ponto histórico de inflexão na redução da pobreza. O senhor concorda?
Não há como negar que houve uma redução substancial da pobreza no Brasil. Diferentes tipos de indicadores apontam isso. Ela começou um pouco antes do governo Lula, mas a inflexão mais forte ocorreu entre 2004 e 2009. Pela primeira vez na história, o Brasil viveu um processo de crescimento econômico com democracia e redução da desigualdade de renda.
A que atribui isso?
Os motivos são vários: melhoria do quadro externo, redução dos juros, retomada dos investimentos do governo federal, gastos populares – em razão do emprego, do crédito e do salário mínimo em elevação – , programas de transferência de renda e outros. Houve uma retomada do papel do Estado como indutor da demanda, inclusive por meio do investimento – o que atiçou as expectativas de retorno por parte dos empresários, permitindo a aceleração do crescimento econômico, especialmente entre 2006 e 2008.
Mas o estudo que o senhor coordenou relativiza esse avanço, destacando a permanência da desigualdade.
O grupo que eu coordenei tentou agregar, de maneira mais substantiva, algumas questões a esse debate. Para começar: o que é pobreza e o que é desigualdade? Os indicadores comemorados são os que apontam a redução da pobreza absoluta. E como eles funcionam? Você define um patamar, abaixo do qual todos os indivíduos são pobres. Quando um desses indivíduos ou família consegue avançar meio centavo acima desse patamar, deixa de ser pobre. No caso da desigualdade, o indicador é relativo, construído a partir da comparação entre os ganhos dos 10% mais ricos e os dos 10% mais pobres, utilizando dados da Pnad, que mede a renda do trabalho.
Não teria havido redução da desigualdade?
O Índice de Gini, uma das medidas mais comuns para a abordagem das desigualdades sociais, revela uma redução expressiva dessas desigualdades. Não há dúvida. O que estou querendo entender é como isso ocorreu e qual é a sustentabilidade do processo. Ao contrário do que é divulgado, não foram os programas sociais os principais responsáveis pelas mudanças. Os estudos do Ipea apontam que elas estão relacionadas em grande medida ao mercado de trabalho. O Brasil, num período de crescimento econômico, conseguiu fazer com que a renda do trabalho crescesse.
Do ponto de vista da desigualdade, portanto, a questão salarial pesou mais que os programas sociais?
Sim. Além do crescimento econômico e de seu reflexo no mercado de trabalho, o governo reforçou a política de elevação do poder de compra do salário mínimo, impactando os níveis de renda da mão de obra menos qualificada e dos beneficiários da previdência social. Resta perguntar agora qual o padrão de emprego que essas pessoas têm, se contribuem para previdência social, se têm acesso à saúde, à educação de qualidade – que são indicadores de desenvolvimento no sentido mais amplo. Você pode reduzir a pobreza mantendo altos índices de desigualdade e dificuldades de acesso a políticas públicas. Não basta mostrar ganhos monetários. Outra pergunta a ser feita é: com a configuração atual do mercado de trabalho, tenho margem para continuar reduzindo a desigualdade?
Ao apontar o peso salarial nas mudanças, o senhor deduz que as áreas mais beneficiadas foram as mais ricas. Como?
O Brasil é um País muito complexo. A queda mais significativa das desigualdades ocorreu nas regiões mais ricas, onde existem mais assalariados, onde a massa salarial é maior. Isso contraria aqueles que afirmam que os Estados mais ricos estariam sustentando a queda na desigualdade com transferência de renda para os pobres do Nordeste. Foram os segmentos mais pobres regidos pelo salário mínimo que conseguiram mais avanços.
Como definiria esses segmentos? É a tal nova classe média?
Trata-se da típica classe trabalhadora que teve um aumento do poder de consumo. O que se deve pensar agora é como ela pode continuar acompanhando os ganhos de produtividade. O crescimento do nível de emprego no País ocorreu principalmente nos segmentos de baixos salários. Em cada dez postos criados no setor formal, nove têm remuneração inferior a três salários mínimos. No Brasil, 50% da estrutura ocupacional é constituída por pessoas que não têm direitos trabalhistas, nem previdenciários, e que realizam atividades manuais. É isso que está sendo chamado de nova classe média?
Os indicadores apontam que nesse meio a renda aumentou, as condições de vida melhoraram , o nível de emprego subiu.
Isso é o que se diz. O que não se diz é que o nível de renda usado na comparação é o de 2003, o mais baixo da história brasileira desde 1990. O que não se discute é qual tipo de inserção ocupacional está ocorrendo, em que tipo de habitação as pessoas vivem, que tipo de formação profissional possuem, que tipo de escola matriculam suas crianças, que tipo de serviço de saúde podem acessar.
Essas questões estão relacionadas à medição da desigualdade?
Sim. Para afirmar que houve redução substantiva da desigualdade, teria que se comprovar que houve uma ampliação substantiva das políticas universais. Não houve. Essas políticas são muito caras do que as transferências de renda.
Pode-se concluir que os programas sociais não são tão importantes?
Eles são fundamentais, mas não suficientes para promover alterações mais profundas na questão da desigualdade. O que me preocupa é que o problema até tende a se agravar se o governo continuar achando que, ao atacar a pobreza extrema, está automaticamente atacando a desigualdade. Concentrar recursos naqueles que mais precisam, de forma isolada, no intuito de melhorar suas condições é a linha de atuação mais confortável: evita atritos com a ampla coalizão política que apoia o governo, propicia estatísticas positivas e garante dividendos eleitorais. Atacar a desigualdade não é uma coisa estática, de tirar do rico para entregar ao pobre. O padrão de desenvolvimento é que permite acumular mais capital, gerar mais produtividade, permitir que os ganhos do trabalho avancem à frente dos ganhos do capital. O padrão de desenvolvimento tem que assegurar continuamente o aumento da renda dos de baixo a partir da dinâmica do trabalho, das negociações coletivas, e de mudanças estruturais.
Quais mudanças?
Uma delas é a reforma tributária. No Brasil a concentração em impostos indiretos, mais regressivos, contribui para baixar a renda disponível dos pobres e elevar a dos ricos. Também é preciso desonerar a folha de pagamento, para aumentar a competitividade. É preciso, como já disse, discutir habitação, saneamento, educação, saúde, todas as políticas de infraestrutura, porque todas elas podem contribuir para reduzir a desigualdade de oportunidades.
Para alguns analistas, o investimento na educação é o melhor caminho para a redução das desigualdades.
Se analisar os índices que medem o prêmio salarial de acordo com o nível de educação, verá que eles caíram em todos os lugares. Como a desigualdade em grande medida se reduziu pelo aumento do salário mínimo, quem mais ganhou foi quem tinha menor escolaridade. Nesse caso, a redução da desigualdade não esteve relacionada à melhoria da educação.
Mas ela pode trazer vantagens.
Pode trazer se a economia gerar postos de trabalho que exijam uma melhor qualificação. Para absorver mais engenheiros é preciso construir mais usinas hidrelétricas, mais aviões. Os países que tiveram mudança expressiva na sua estrutura ocupacional relacionada à educação tiveram uma política industrial de desenvolvimento acoplada. A Coreia do Sul é o exemplo mais típico. No Brasil, o pouco que está acontecendo na área industrial são movimentos espasmódicos, comandados pelo curto prazo.
O estudo sugere que, se não forem acoplados a políticas mais amplas, programas sociais podem agravar desigualdades.
Exatamente. Imagine uma região pobre do Nordeste, com um grande número de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família. Se não houver uma alteração no mercado de trabalho, nas possibilidades de acesso a empregos melhores e de mobilidade social, o programa pode acentuar as desigualdades. Quem já controla o comércio, tende a ficar mais rico, porque há mais gente consumindo.
Mas o aumento do consumo também não eleva a produção local?
Não necessariamente. Com os padrões de consumo nacionalizados, eles podem estar consumindo bens produzidos nas regiões Sul e Sudeste.
O governo garante que está atento a isso.
Essa não é a lógica do governo federal, embora existam programas isoladas, como o Pronaf, que vem dinamizando a produção de alimentos em pequenas propriedades. Estamos chegando aqui à raiz do problema. Vejamos: só a valorização do salário mínimo não é capaz de alterar a profunda desigualdade do País; diante disso, programas como o Bolsa Família se tornam necessários; mas é preciso associar a ele outras ações, como a formação de cooperativas, assistência técnica aos pequenos produtores, garantia de compra da produção.
Pode-se dizer que o PT ainda está longe de transformar o Brasil num País menos desigual?
Os governos de Lula e Dilma deram um passo importante ao colocar a questão da pobreza no centro da agenda, mas isso ofuscou a agenda maior, do desenvolvimento e da redução da desigualdade. São agendas que deveriam se completar. O combate duradouro e eficiente à pobreza exige uma agenda do desenvolvimento e do combate à desigualdade.
Em termos mais específicos, o que recomendaria?
É preciso fazer avançar os setores industriais de maior produtividade, maior processamento, maior agregação de valor, maior tecnologia. Isso poderia fazer com que a massa de trabalhadores que vive do salário mínimo passasse para níveis salariais melhores, o aumento da renda ficaria casado com o aumento da produtividade. Todo esse oba oba sobre os avanços não leva em conta que pouco mudou na estrutura ocupacional do Brasil nesse período. O trabalhador que teve aumento de renda, que passou a ser formalizado, ganha entre um e dois salários mínimos. O que eu quero saber é o seguinte: mudou o tipo de atividade que exerce? É requisitada dele maior formação profissional?
by by Roldão Arruda
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