by Vivi Fernandes de Lima
Em entrevista à RHBN, Maria Prestes, viúva de Luiz Carlos Prestes - capa da nossa edição de janeiro -, conta as histórias de uma vida digna de roteiro de cinema, que inclui prisão, fuga, clandestinidade e, claro, amor
O Senado divulgou, no último dia 14, as cinco mulheres que serão homenageadas com o Diploma Bertha Lutz em 8 de março, Dia Internacional da Mulher. A mais votada, das 28 candidatas, foi Maria Prestes, viúva de Luiz Carlos Prestes. Criada para homenagear mulheres que se destacam na luta pela transformação social e na igualdade de gênero, a comenda também será entregue à presidenta Dilma Rousseff, à ex-senadora Eunice Mafalda, à socióloga Ana Alice Costa e a sindicalista rural Rosali Scalabrin.
Em uma das várias visitas que a Revista de História fez à casa de Maria Prestes para pesquisar os documentos pessoais do líder comunista, ela deu uma longa e descontraída entrevista, contando boa parte de sua vida. Aqui Maria fala sobre sua ligação com o PCB já na infância, a militância na juventude, a responsabilidade de trabalhar no aparelho de segurança de Prestes na década de 1950 e a vida em família.
Em uma das várias visitas que a Revista de História fez à casa de Maria Prestes para pesquisar os documentos pessoais do líder comunista, ela deu uma longa e descontraída entrevista, contando boa parte de sua vida. Aqui Maria fala sobre sua ligação com o PCB já na infância, a militância na juventude, a responsabilidade de trabalhar no aparelho de segurança de Prestes na década de 1950 e a vida em família.
Prisão, fuga, clandestinidade e, é claro, amor fazem da vida de Maria uma biografia digna de roteiro de cinema. Mas nada de ficção. Sua vida real já foi durante muito tempo um festival de segredos, até para os filhos. A começar pelo nome: Altamira Rodrigues Sobral virou Maria do Carmo Ribeiro, hoje mais conhecida como Maria Prestes. Já a data de nascimento verdadeira é 2 de fevereiro de 1932, mas acabou mudando para 10 de agosto de 1930 quando foi designada para trabalhar na segurança de Prestes, em 1952. “Fiquei quase 10 anos sem ver família, sem ter contato com ninguém. Quando eu apareci, meus irmãos tinham pensado que eu tinha morrido”, conta.
A importância de assumir a nova identidade era tanta que às vezes Maria ainda se confunde com datas, assumindo a falsa como verdadeira. Mas isso não é um problema: ela comemora o aniversário duas vezes no ano, o que mostra também o quanto é bem-humorada.
A senhora foi designada para trabalhar na segurança de Luiz Carlos Prestes quando ainda era muito jovem, nos anos 1950. Quando se tornou militante do PCB?
Em 1945 eu já participava da juventude do partido, fazia trabalhos de propaganda, de rua, passeatas, era considerada agitadora. Em 1946, quando o Velho foi candidato, houve um grande comício no Recife e a juventude do partido fez a segurança dele. Era um comício que a polícia queria impedir, mas a praça encheu tanto, tanto, tanto que não teve jeito. Foi aí que vi o Prestes pela primeira vez, aos 16 anos.
Depois, ainda muito nova, participei da campanha “O petróleo é nosso”, da luta contra a bomba atômica, dos movimentos estudantis, dos protestos contra prisão de companheiros... Eu fui presa no governo do Barbosa Lima Sobrinho [governador de Pernambuco de 1948 a 1951], tive a cabeça raspada, também levei umas porradas da polícia. Foi assim minha juventude.
Como filha de uma liderança comunista – João Rodrigues Sobral – a senhora conviveu com violência já na infância?
Com três anos, minha mãe morreu e meu pai foi preso. Fui criada praticamente sem mãe, em casa de companheiros, que eram comunistas. Fiquei até os 10 anos morando na casa de companheiros, quando meu pai foi deportado do Rio de Janeiro. Chegando na Bahia, ele se jogou no mar e voltou a pé pra Recife pra pegar meus dois irmãos, além de mim. Ficamos um tempo em Recife, depois fomos para Maceió. De Maceió para Sergipe, de Sergipe para Bahia, onde meu pai se fixou por um tempo, de 1939 a 1945. Na Bahia, moramos em várias regiões, vários bairros, no Bom Retiro... Estudei na Escola 2 de Julho, no grupo de escolar Duque de Caxias, comecei a fazer a escola normal, mas não continuei. Até que, com o fim da guerra, veio a anistia para os presos políticos e voltamos pra Recife. Meu pai já era muito conhecido como comunista e o PCB achou que ele podia reorganizar o partido lá.
Seu pai conversava com você sobre seus ideais políticos?
Ele contava muito sobre a Coluna Prestes e sobre a Rússia também. Ele dizia que já existia um país onde a reforma agrária já havia sido feita e que o proletariado estava no poder. Eu fui criada ouvindo essas histórias que meu pai contava. A luta dos camponeses, a Coluna... A gente [os irmãos] participava de tudo. Na infância, meu pai botava a gente pra fazer tarefas ligadas ao partido: visitar famílias de presos políticos, levar dinheiro e ajuda pra essas famílias... Na época, éramos cinco irmãos, e fomos todos criados nesse ambiente. Meu pai dizia: “Fale pouco e faça mais”. No total, éramos dez, mas cinco morreram ainda criança.
Seu primeiro marido também era militante?
Era, mas infelizmente foi preso e não teve um comportamento muito bom na polícia. Eu me separei dele e, nessa altura, já estava com 18 pra 19 anos. O partido me mandou para o Rio de Janeiro, e depois fui a São Paulo para ver meu pai, que estava muito mal de saúde. Ele tinha sofrido muito com a prisão em Recife, e chegou a ser considerado morto. Tinha sido muito espancado e estava jogado num canto da prisão, coberto com um saco. Os policiais disseram que a gente ia ver ele pela última vez. Depois disso, ele foi deportado pro Rio de Janeiro e fugiu. Mas essa prisão deixou consequências muito sérias, ele teve um aneurisma e morreu em São Paulo ainda com nome clandestino, em 1952. Ele não chegou a saber que eu estava com o Prestes.
O que ele acharia disso?
Acho que ele ia ficar admirado (risos). Prestes era muito conhecido e eu tinha 19 anos e ele, 54. Muitos companheiros achavam estranho porque eu era muito jovem.
A senhora já tinha dois filhos quando foi morar com o Prestes. Eles moraram com vocês desde o início?
Sim, eles foram comigo. O Velho depois reconheceu como se fossem filhos dele, apesar de não ser apresentado como pai. Meus filhos só foram saber que tinham pai na década 1960. Mas os mais novos só foram saber que tinham pai quando fomos para Moscou em 1971, no exílio. Quando visitavam o Prestes, nos anos 60, chamavam de tio.
O que a senhora falava sobre o pai deles?
Falava que o pai estava viajando.
Era duro isso, não?
Botar isso na cabeça das crianças era muito difícil. Mas é o que eu digo a você... Se você tem convicção de que está lutando pelo seu ideal e que é necessário fazer isso, vale a pena.
E como Prestes lidava com isso?
Mesmo sendo chamado de tio pelos filhos, a família foi uma coisa muito importante para ele. Gostava de brincar com as crianças também. Fazia brinquedo de madeira com elas. Sempre foi um pai muito carinhoso e atencioso.
Do que ele brincava?
De carrinho, de correr no quintal pra lá e pra cá, jogar bola...
Como foi a formação escolar das crianças enquanto Prestes estava na clandestinidade, nos anos 50?
Quando as crianças chegavam na idade de ir pro jardim de infância, eles iam pra casa da minha cunhada, a Clotilde, irmã do Velho. Porque não podiam ficar mais com a gente. Na escola, eles podiam falar que tinha outra pessoa em casa. Os outros ficaram porque ainda não tinham idade de ir pra escola.
Ficamos assim, o Velho em casa, principalmente no escritório, onde ele lia uns quatro jornais por dia, e revistas também. Ele recebia material do partido para ler e dar opinião. O Giocondo Dias frequentava nossa casa, era quem levava dinheiro pra gente se manter. Ele discutia com o Velho sobre os problemas do partido. Isso por 10 anos... A Elisa Branco, que era de São Paulo, também ajudava muito, levava mantimentos.
E a polícia nunca descobriu?
Nunca. Tanto que depois, quando teve a anistia, eu fui aos arquivos e não constava meu nome em nada. Agora já devem ter um dossiê porque já está tudo aberto, né?
Como era a rotina nesse período?
Ele acordava de manhã, tomava café, tinha uma hora e meia pra andar no sol, depois entrava e ia ler os jornais até 10h30, 11h. Depois, aparecia na cozinha e, se eu estivesse precisando de uma ajuda, ele me ajudava. Fazia salada de frutas, gostava de fazer bolo, tortas, biscoitos pras crianças. Era muito bom cozinheiro.
Às vezes ele viajava, ia pra reuniões e eu ficava, mas ele trabalhava muito em casa. Nunca moramos em apartamento. Em casa, tinha um quintal onde ele podia fazer um jardim, uma horta...
Vocês tiveram muitos endereços em São Paulo?
Sim. Em Jabaquara, no Jardim da Saúde, na Lapa, nos Perdizes, no Brooklin, em Diadema, na Penha... Essas casas não podiam ter janelas devassadas. Hoje é impossível fazer isso porque a polícia tem outros meios de identificação.
Sempre que se mudavam era uma fuga?
Olha, se a gente percebesse que a casa estava sendo observada ou desconfiasse de qualquer outra coisa, saía e não voltava mais. Deixava tudo que tinha em casa. Depois, um companheiro ia lá e resolvia a situação. Mas foram 10 anos nessa situação, clandestinidade completa.
Em 1959, houve o período de anistia de JK. Foi quando viemos para o Rio de Janeiro, em Jacarepaguá.
Como era feita essa segurança?
Eu tinha um motorista que morava conosco e se passava por meu marido. A casa tinha um quarto para as crianças, um pra gente, um pro motorista e o escritório do Velho.
Vocês tinham armas?
Nunca tivemos arma em casa. Nunca quisemos.
Qual era a maior dificuldade na clandestinidade?
Era o dia a dia da vigilância. Tinha que ficar atenta pro Velho não se distrair e botar a cabeça na janela. Ele ligava muito o rádio pra escutar Moscou. Às vezes ele se entusiasmava e aumentava o volume. Eu ia lá e abaixava. Se o pessoal da rua escutasse... Eu varria a calçada, tinha um contato com os vizinhos no portão. Mas esse negócio de ir à casa de um e de outro, não. Quando ele saía para reuniões, era à noite. Nós tínhamos um fusca.
Com relação aos estudos, ele era muito exigente?
Ele dava aula pra mim, pro motorista e, às vezes, até pro Giocondo. De literatura, de astronomia, de política... Era muito dedicado a instruir você culturalmente para você evoluir e conhecer mais a realidade da vida. Com ele li muitos bons livros: Otelo, Shakespeare, os clássicos russos, franceses...
Quando a senhora percebeu que esse convívio estava mudando?
A gente tinha esse convívio, falando de literatura, brincando com as crianças, essas coisas... e um dia ele chegou pra mim, depois de um ano, mais ou menos, e me propôs casamento.
Já estavam namorando?
Não, nunca houve esse negócio de namoro. Mas a gente sempre se deu bem, ele me ajudava no almoço, no jantar. Aí um dia ele perguntou se eu não queria casar novamente. Eu disse “não, não pretendo casar”. E ele: “mas mesmo que seja comigo?”. Aí eu disse: “Nossa senhora! Com você é que seria ainda mais difícil!” Pensei: se eu aceitar, vão me chamar de oportunista. Ele disse que esse assunto não tinha nada a ver com o partido, que nós nos entendíamos e que podíamos ter um relacionamento mais afetivo. Eu disse: “Tá, eu vou pensar. Mas, a princípio, não. Eu não caso com ninguém, não assumo compromisso com ninguém. Não assino papel de jeito nenhum”. Eu não sei por que, mas desde a minha infância eu achava que casamento era um contrato. Eu vi tantas pessoas casando e descasando que eu botei na minha cabeça que não queria assinar contrato nem casar com ninguém.
Mas a senhora acabou aceitando...
Depois eu acabei falando que a gente podia até viver junto, mas no dia que não desse certo, ele iria pra um lado e eu pro outro. Mesmo depois, em 1989, quando a gente voltou da Rússia, ele queria que eu assinasse documento com ele, legalmente. Disse: “Não quero. Porque eu já conheço esse pessoal de partido. Vão dizer que sou oportunista, que casei com você pra pegar o seu nome e viver às suas custas”. Nunca aceitei. Sempre gostei de ser assim independente. Nunca fui romântica sonhadora, não.
No entanto, viveram um romance de 40 anos.
Ah, foi. Ele era muito boa pessoa, muito carinhoso, muito atencioso, se preocupava muito comigo. Na época da clandestinidade, ele ficava preocupado porque eu não saía de casa pra me divertir, ir ao cinema, teatro, nem visitava minha família.
Nessa época a senhora não podia mesmo.
Não podia. Fiquei quase 10 anos sem ver família, sem ter contato com ninguém. Quando eu apareci, meus irmãos tinham pensado que eu tinha morrido.
É compreensível, vivia "metida com comunista"...
[Risos] Ah, meu Deus... Hoje isso é engraçado, né?
Mas me diga: quando foi que ele pegou na sua mão?
[Rindo muito mais] Quando eu disse pra ele que ia pensar, o companheiro Giocondo Dias apareceu lá em casa. Aí eu falei pra ele: “Olha, Giocondo, o Prestes quer que eu case com ele, mas eu não quero casar porque eu sei que o partido vai me chamar de oportunista”. Aí ele disse “Não... isso não tem nada a ver, isso é uma coisa de você com ele. Isso a gente pode resolver sem o partido entrar no meio”. Aí fomos pro escritório dele [Prestes] pra conversar. Falei: “Conversei com o Giocondo sobre o nosso relacionamento, e ele disse que a gente é quem decide. Agora, eu não quero assinar papel...”
Aí o Giocondo falou: “Junta logo! É melhor...”. Aí a gente se juntou. Foi só isso. Não teve esse negócio de beijinho, abracinho, essas coisas... Só depois. Ele sempre foi muito reservado. Você conversava com ele e percebia que ele mantinha sempre uma distância, não se entregava assim de vez, não. Era reservado.
No seu livro, a senhora se refere às dificuldades vividas por sua família como sendo uma “densa neblina”. Quando essa neblina começou a desaparecer?
Foi nos anos 60, quando apareci já com cinco filhos. Começou a sair essa neblina de problemas. Mas, em seguida, veio o Golpe de 64 e o Velho voltou pra clandestinidade. Eu fiquei em São Paulo com os filhos. Já não podia esconder a família que tinha. Nossa história começou a ficar mais clara, aparecendo na imprensa. Quando teve o golpe mesmo, a polícia invadiu a minha casa e roubou tudo que a gente tinha, com o delegado Cristiniano. Foi uma tragédia pra gente porque tivemos que abandonar a casa e eles criaram aquela polêmica dizendo que o Velho tinha deixado a caderneta com nomes de pessoas do partido... Não era nada mais, nada menos, do que uma agenda. Não estava entregando companheiro nenhum. Mas isso, para a imprensa, é um pão de ló, né? Eles jogam na mídia e todo mundo fica falando que o Velho entregou todo mundo. A polícia roubou toda nossa biblioteca. Encostaram um caminhão, e iam jogando os livros. Levavam e depois queimavam.
Mas não foram só livros, certo?
Levaram tudo. Roupa de criança, roupas minhas... Eu tinha voltado da Europa com um casaco de pele que tinha ganhado lá. Estava muito frio e eu tinha que ter roupa de frio pra viajar. Chapéu, bota, capote... levaram tudo. Nunca entrei na Justiça pra cobrar. Devia ter feito isso em São Paulo, né? Mas não entrei.
Foi o único saque que vocês sofreram?
Foi, em São Paulo. Na rua Nicolau de Souza Queiroz, 153.
As cartas que senhora vai doar para o Arquivo Nacional mostram como alguns filhos mantiveram contato nos anos 70 e 80, mesmo morando em outros países.
Quando viemos para o Brasil, tínhamos filhos em Cuba (Pedro) e Moçambique (Rosa). Os outros filhos ficaram em Moscou. Eles ficaram porque estavam estudando. Quando iam terminando a universidade, vinham embora. Pedro foi pra Cuba porque, quando terminou a escola de aviação, não podia voltar pro Brasil, a Embaixada não dava passaporte. A mesma coisa aconteceu com a Rosa. Nós sempre mantivemos contato.
Em uma das cartas, os netos que moravam em Moçambique pedem revista do Tio Patinhas, do Mickey... Como Prestes reagia a isso? Ele mandava as revistinhas?
Quem mandava era eu. (risos) Eu fazia um pacote e mandava bala, doces, feijão, revistas, café... Em Moçambique não tinha nada. Pra eles era uma festa receber isso.
Ele não dizia nada, mas sempre que podia oferecia um ou outro livro que considerava mais importante, como Monteiro Lobato. É que a criança expressa aquilo que ela está vivendo, e ela vive no capitalismo.
Muito se fala sobre Luiz Carlos Prestes em pesquisas acadêmicas, livros e filmes. A senhora acha que a vida dele é bastante reconhecida aqui no Brasil?
Acho que só vão dar valor de verdade à vida dele daqui a uns 30 anos.
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