Por Bárbara Mostachio Ferrassioli.
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus nº 164.493, reconhecendo a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro na condução da ação penal que ensejou a condenação do ex-presidente Lula pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no conhecido caso do “triplex do Guarujá” e, por conseguinte, anulando todas as decisões do ex-magistrado nesse processo, incluindo aquelas proferidas na fase pré-processual, trazem à memória a figura, aparentemente colocada a dormir em berço não tão esplêndido, do Juiz das Garantias.
Não é difícil compreender a (irônica) ligação entre as duas coisas: a Lei nº 13.964/2019, também conhecida como “pacote anticrime” – que constituiu justamente um marco da (breve) passagem do ex-juiz Sérgio Moro pelo Ministério da Justiça – contempla, dentre as diversas alterações já implementadas desde sua vigência, a figura do Juiz das Garantias – ampla e publicamente combatida pelo ex-magistrado-hoje-suspeito durante a tramitação do projeto de lei.
Acontece que – e aqui precisamente reside a ironia da situação – o Juiz das Garantias seria justamente o antídoto para afastar do processo criminal situações de parcialidade do magistrado, já que, após o recebimento da denúncia, a condução do feito ficaria a cargo de outro juiz, que não participou da fase investigativa, e isso visando a justamente propiciar um julgamento pautado pela mais elevada dose de originalidade cognoscitiva do Juiz Julgador, então alheio aos pré-juízos da fase pré-processual.
Vale lembrar que o Juiz das Garantias, segundo as (suspensas) disposições legais que lhe introduziram no Código de Processo Penal, seria a autoridade responsável por salvaguardar o respeito aos direitos e garantias do investigado na fase pré-processual, decidindo – quando (e somente se) provocado – sobre medidas restritivas de direitos (a exemplo de quebra de sigilo, prisão cautelar, medidas assecuratórias, busca e apreensão, etc.). Sua atuação, somente na fase anterior à denúncia, instituiria no Brasil o sistema do “duplo juiz”, já implementado em diversos outros países como, por exemplo, Uruguai, Chile e Portugal, de modo que o processo penal brasileiro abandonasse de uma ver por todas qualquer resquício de inquisitoriedade.
Aury Lopes Jr[1]. explica que no modelo processual penal com dois juízes “o primeiro intervém – quando invocado – na fase pré-processual até o recebimento da denúncia, encaminhando os autos para outro juiz que irá instruir e julgar, sem estar contaminado, sem pré-julgamentos e com a máxima originalidade cognitiva”. Apenas nesse modelo é possível conceber uma estrutura de processo penal realmente acusatória.
Introdução feita, passamos ao x da questão.
Sabemos que o Presidente da República, a despeito da veemente oposição de seu (então predileto) Ministro da Justiça, sancionou a Lei nº 13.964/2019 com a previsão do Juiz das Garantias, que hoje encontra regulamentação nos arts. 3º-B a 3º-F, do Código de Processo Penal e espraia efeitos também nas normas que tratam da prova ilícita (art. 157, § 5º, CPP). Mas, se já temos a lei, por que não temos, na prática, o tal Juiz das Garantias?
Recapitulando: a Lei nº 13.964/2019 entrou em vigor em 23/01/2020 (30 dias após a sua publicação oficial no DOU de 24/12/2019). Em 15/01/2020, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli, em decisão liminar proferida em plantão judicial no âmbito das Ações Direta de Inconstitucionalidade nº 6298, 6299 e 6230, suspendeu a eficácia dos dispositivos regulamentadores do Juiz das Garantias até que houvesse sua implementação nas comarcas pelos tribunais, o que deveria ocorrer no prazo de 180 dias contados da publicação da sua decisão.
Uma semana depois, porém, mais precisamente em 22/01/2020, o relator do caso, Ministro Luiz Fux, rapidamente revogou a decisão do presidente da Corte e, liminarmente e ad referendum, em sede de medida cautelar, suspendeu a própria implementação do Juiz das Garantias, isto é, determinou que nada fosse feito para tornar efetiva a alteração legislativa até que se reúnam, nas suas palavras, “melhores subsídios que indiquem, acima de qualquer dúvida razoável, os reais impactos do juízo das garantias (…)”.
Para Fux, o Juiz das Garantias "não apenas reforma, mas refunda o processo penal brasileiro e altera direta e estruturalmente o funcionamento de qualquer unidade judiciária criminal do país” e parte da “presunção generalizada de que qualquer juiz criminal tem tendências de favorecimento à acusação[2].
Logo se vê, portanto, que a análise cautelar do Relator, conquanto liminar, expressa larga resistência à modificação do processo penal nos termos positivados na Lei Anticrime.Desde então, isto é, passados mais de 14 meses desde a liminar que suspendeu a implantação do Juiz das Garantias, as respectivas ações diretas de inconstitucionalidade seguem tramitando a passos lentos no STF, sobretudo em razão da dificuldade de realização de audiências públicas em função da pandemia.
Mas o que mais chama a atenção e causa perplexidade é que não houve, até o momento, a necessária afetação do processo a julgamento Plenário para ratificação (ou não) da decisão liminar, o que levou o Ministro Gilmar Mendes[3] a, recentemente, tachar ilegal a liminar do Ministro Fux, a qual, por si só, mantém suspensas há longa data importantes e aguardadas alterações legislativas. Errado Gilmar não está.umpre lembrar que a Lei n. 9.868/99 traz como regra que as decisões tomadas em medidas cautelares nas ações diretas observem o quórum da maioria absoluta dos membros do Tribunal (art. 10), exceção feita (somente), nos termos da lei, ao período de recesso.
Por sua vez, o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, dispõe que cabe ao relator “submeter ao Plenário ou à Turma, nos processos da competência respectiva, medidas cautelares necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação, ou ainda destinadas a garantir a eficácia da ulterior decisão da causa” e “determinar, em caso de urgência, as medidas do inciso anterior, ad referendum do Plenário ou da Turma” (art. 21, incs. IV e V, RI/STF). Ainda, especificamente no capítulo da declaração de inconstitucionalidade, o Regimento Interno da Corte Suprema dispõe que “se houver pedido de medida cautelar, o Relator submetê-la-á ao Plenário e somente após a decisão solicitará as informações”. (art. 170, § 1º).
Nenhuma dessas disposições legais e regulamentares foram observadas no caso das ADIs que questionam parte dos dispositivos da Lei Anticrime e, em especial, a implementação do Juiz das Garantias. E isso sem qualquer justificativa explicitamente declinada. Não é sem razão, portanto, que Gilmar Mendes contesta a (i)legalidade da decisão liminar de Fux.
A situação é realmente preocupante e merece atenção. Tem-se uma lei, devidamente aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República após ultrapassadas todas as etapas do processo legislativo, vigente há mais de ano, com aplicabilidade suspensa sine die ao exclusivo arbítrio de um Julgador, em decisão perfunctória e não referendada pelo órgão competente. Isso tudo num Estado (que deveria ser) Democrático de Direito.Mais do que isso, a liminar que hoje mantém suspensa a aplicabilidade da lei aprovada e sancionada pelos demais poderes da República, longe de esboçar qualquer esforço em encontrar soluções práticas para fazer cumprir a lei (a exemplo do que tentou fazer o Min. Dias Toffoli sugerindo o prazo de 180 dias para que os tribunais se organizassem e regulamentassem a implantação do Juiz das Garantias na primeira – e brevemente revogada – decisão proferida no caso), pretende reavaliar a própria pertinência material da alteração legal, descurando-se da mera análise de compatibilidade da legislação com a Constituição Federal inerente – e desejável – ao controle concentrado exercido pelo Supremo.
Impõe-se rememorar que o Juiz das Garantias já era previsto no Projeto de Lei n. 156/2009 e, portanto, o debate em torno de sua pertinência no âmbito do processo penal brasileiro é conhecido e existente há longa data e, notadamente, antecedeu à aprovação da Lei Anticrime. A liminar parece desconsiderar esse cenário e nos conduz à estaca zero.
Em um contexto social, econômico e político atualmente marcado por constantes polarizações, no que se inclui a (lamentável) bipartição entre “lavajatistas” e “anti-lavajatistas”, é de se notar que os primeiros sempre se posicionaram contrariamente à instituição do Juiz das Garantias ao argumento (pouco esclarecido) de que esse sistema fomentaria a impunidade – vide, por exemplo, os tantos pronunciamentos públicos do ex-juiz Sérgio Moro e do Procurador da República Deltan Dallagnol nesse sentido.
A seu turno, os que se incluem na camada designada “anti-lava-jato”, geralmente adeptos de uma vertente processual penal com marco teórico garantista, são fortes defensores da efetiva implementação do sistema acusatório no país mediante separação das funções do juiz da fase pré-processual e do juiz da instrução e julgamento para preservação da imparcialidade subjetiva e objetiva do julgador.
O curioso é que a recente nulidade reconhecida na operação Lava Jato em relação a algumas condenações proferidas pelo ex-juiz Sérgio Moro contra o ex-presidente Lula trouxe à tona justamente a nocividade de um sistema processual penal desprovido do Juiz das Garantias e contaminado por “pré-juízos” que, conforme reconheceu o STF neste caso, conduziram à falta de imparcialidade do julgador. É evidente que toda a sociedade perde quando se anula, por razão de suspeição do julgador, um processo que tramitou por longos anos e movimentou um sem-número de recursos humanos e materiais, como é o caso das ações contra o ex-presidente Lula na operação Lava Jato. Afora isso, tal situação reforça o descrédito na justiça e fortalece a sensação de impunidade.
Daí se vê que, paradoxalmente, um dos grandes contributos da operação Lava Jato ao país consiste exatamente na demonstração da extrema e urgente necessidade de implementação do Juiz das Garantias no processo penal brasileiro. Fica, então, a dúvida: a quem ainda interessa calar o Juiz das Garantias?
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