quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Cássia Eller: Assim se passaram 10 anos

by Jamari França     
 
Há 10 anos, no dia 29 de dezembro de 2001, um sábado, Cássia Eller morreu de infarto do miocárdio após quatro paradas cardíacas na Clínica Santa Maria, em Laranjeiras. Ela tinha 39 anos. O texto abaixo é de Zélia Duncan, amiga de Cássia dos tempos de Brasília, onde as duas começaram no início dos anos 80. Ainda sob o impacto da morte da amiga, Zélia fez o poema Menino e Menina, publicado pela primeira vez aqui. Logo em seguida, um texto sobre minha convivência jornalística com Cássia.

Fala Zélia:

A última vez que estive com Cássia, foi no Canecão, no show do álbum Acústico, grande e derradeiro momento de sua carreira, junto com a aparição arrebatadora no Rock in Rio.

Ela estava alegre no camarim, fez uma graça, demos risadas, abraços...como diz Luiz Tatit, “quem quer um abraço, um pouco de alguém, abraçando tem”. Como é bom abraçar com vontade um amigo. Se eu soubesse que seria o último, pedia pra que ela cantasse mais um pouquinho no meu ouvido.

Fui uma das primeiras a chegar no hospital e uma das últimas a sair. Eu precisei daquelas cenas pra me conformar do que, até hoje, não tem explicação. No natal deste ano, na casa da minha mãe, em Niterói, ficamos vendo um de seus DVDs. Mamãe era muito amiga de Cássia, nos conhecemos todos em Brasília e elas se davam muito bem.

Cássia sempre impressionou. Sua imensa timidez, como num passe de mágica, sumia em meio à força de sua voz e ao choque de suas atitudes no palco. Todos se rendiam, mesmo que fosse pra passar horas dizendo que aquilo era um absurdo. Mas passavam horas falando dela.

Cássia nasceu pra fazer diferença, pra mudar um monte de coisas e, se não mudou tanto assim, é porque o mundo dá um passo pra frente e dez pra trás. Mas o passo que ela fez o mundo dar, nos fez vislumbrar muitas coisas fundamentais. Mas quem não quiser ficar pensando nessas coisas meio filosóficas, simplesmente ponha a voz-trovão pra tocar, e no melhor estilo Cássia Eller, apenas exista e sinta essa emoção inexplicável.
Esta canção é de Simone Saback, amiga de Brasília de Zélia e Cássia. As duas queriam gravá-la juntas, mas esperaram demais. Zélia gravou com Roberto Frejat no álbum Pré Pós Tudo Bossa Band, de 2005


MENINO E MENINA

Pra Cássia Eller, Rio/2001.


De repente tudo vira resto
Falso anexo de um conteúdo
Seu grito, agora mudo
Calou fundo nosso fiapo de voz
Ficou tão sem graça acordar nesse mundo
Andar sabendo que nunca mais
Vou te esbarrar na esquina
Menino e menina
Desejo tatuado
Carinho, violão, amor, acaso
Amizade no braço
Sem muitas palavras
Apenas te encontrava
E me sentia muito mais viva do que agora
Memórias que alimentam
Te encontro depois da escola
Na hora do ensaio, enquanto sonhamos no vento
Enquanto corremos alegres, pra lugar nenhum
Segredo no ouvido, tanto amor escondido
Depois aprendemos
Que amor não se esconde
Nada existe pelo meio
Amor não pode ser feio
Conta isso pro mundo inteiro
Abusa, levanta a blusa
E mostra a alma, Vestida de seu corpo
Sem luxo, seu luxo, escracho e beleza
Real realeza pra cuja coroa
Não existe mais cabeça
O Brasil é uma ilha, coitado
Cercado de sua ausência
Por todo os lados.

Agora sou eu. Lá vai:
Trecho do show do Circo em 1992, o primeiro que vi dela
Conheci Cássia Eller em 1992, quando ela fez o show de lançamento de seu segundo disco, Marginal, no Circo Voador. Não lembro porque o primeiro disco dela, de 1990, me passou em branco, apesar do sucesso de sua versão de Por Enquanto, da Legião Urbana. Cássia estava de camiseta, bermuda, tênis, cabelos na altura dos ombros, muito bonita, mas chamou a atenção logo pela postura de moleque de rua no palco (quando soube mais sobre ela vi que era para disfarçar a timidez) que incluía coçar um saco inexistente e cuspir.

Apoiada por um bandão em que brilhava o baixo de Tavinho Fialho (pai do filho dela, Chicão) ela mandou um repertório que tinha Jimi Hendrix, Beatles, Luiz Melodia, Itamar Assumpção, Mario Manga. A voz era sensacional, rocker até o talo, grossa, rascante, cheia de atitude. E assim ficou no futuro, mesmo quando ela incursionou por vários tipos de músicas. A essência dela era roquenrol.
Em 1994 lançou um disco chegado ao mainstream com músicas mais palatáveis às rádios. Soube depois que ela fizera um acordo com a gravadora. Precisava de dinheiro para pagar o parto e concordou em fazer um disco com repertório escolhido de comum acordo e mais acessível ao mercado, sem perder a qualidade. O repertório garimpado por ela, pelo jornalista Ezequiel Neves e pelo produtor Guto Graça Mello e uma produção impecável de viés rock fizeram do disco um dos melhores da década. Os carros-chefe foram Malandragem, uma música de Frejat e Cazuza que os dois fizeram para Angela Ro Ro e ela não se interessou. E ECT, de Marisa Monte, Nando Reis e Carlinhos Brown. Cazuza e Nando passaram a ser dois favoritos de Cássia. Ela gravou um disco com repertório de Cazuza e me disse que, se pudesse, só gravaria músicas do Nando (Agora em 2011 acabou saindo um disco dela só com músicas dele).

O amor por Cazuza, que ela não conheceu, valeu um CD tributo em 1997 com repertório solo e do Barão Vermelho. Bem roquenrol, com apresentação do meu guru Ezequiel Neves, que a chamou de "meu primeiro, único e último marido" e ela retribuiu chamando-o no encarte de "meu marido predileto." Na época fiz a ressalva de que o disco não continha a alma rhythm'n'blues de Cazuza e do Barão, era muito rock de branco e contaminado também por muitos clichês de sopros. Nem por isso deixava de ter grandes interpretações, como Blues da Piedade, Todo Amor Que Houver Nessa Vida (que ganhou versão definitiva no Acústico), Billy Negão (lenta e gingada) e outras.
Cássia e Maria Eugenia, sua companheira, com Chicão
Depois teve o do Cazuza ao Vivo na mesma linha do de estúdio e o disco de voz e violões. E veio a surpresa: Com Você...Meu Mundo Ficaria Completo, de 1999, que acabou sendo o último de estúdio. Um repertório de qualidade com ela mais concentrada no canto do que antes. Soube depois que seu filho, Francisco, o Chicão, tinha reclamado que ela não cantava, só gritava, e ele queria vê-la cantando. E foi seu primeiro disco só de inéditas, com canções de Caetano, Gil, Nando (também produtor), Marisa Monte, Itamar Assumpção, um luxo.

A pedido da gravadora Universal fiz dois textos para o disco, um biográfico e um dissecando o repertório. Fui numa manhã à casa dela no Cosme Velho (que Nando citou como Laranjeiras em All Star) e tive que suar para arrancar a entrevista por causa de sua timidez. No disco ela canta maravilhosamente bem, mas me disse o seguinte: "Eu estou gostando muito mais desse disco, é diferente de todos. Nem estou cantando bem assim como nos outros, mas estou muito satisfeita com a produção dele. Acho que é o repertório mais bonito que já juntei." Aí perguntei "como assim, não está cantando bem?" Ela respondeu que achava isso porque odiava estúdio: "Fico nervosa. O que mais fiquei nervosa para gravar foi esse."
O disco fez muito bem a ela e se estendeu por dois anos até a gravação do Acústico MTV em março de 2001 em São Paulo. Senti que ela mal podia se conter em cima daquele banquinho que aprisiona os artistas neste formato. As gravações de Acústicos eram muito engessadas e cansei de ver shows depois muito melhores do que na gravação.

Teve um lance engraçado. Cássia empacou em Vá Morar Com O Diabo, do compositor baiano Riachão. Engasgava sempre na mesma parte. E repetia, repetia. Lá pela 9ª vez, acho, saiu, e a platéia explodiu na maior comemoração quando ela passou pelo trecho fatídico, o que ficou meio estranho para quem não conhece a história, ver um entusiasmo muito maior do povo no meio desta música.


Acabada a gravação fui falar com ela. Entrei no camarim, ela estava na maior festa com os músicos. Acenei, veio falar comigo, perguntou se eu tinha gostado e travou. Perguntei sobre ensaios, repertório, o que tinha achado do clima da gravação e ela mais monossilábica do que Milton Nascimento. Pedi ajuda ao Nando Reis, que sentou comigo num sofá que estava no meio de um corredor e me deu a ficha completa.


Não lembro se vi o show depois. No dia 29 de dezembro de 2001 eu estava na folga de final de ano do site Globonews.com em Lumiar quando me avisaram da morte dela. Liguei para saber se precisava descer, mas me dispensaram. Quando voltei pro Rio rolou por algum tempo o papo de overdose até o resultado do exame toxicológico revelar que ela estava limpa.
P.S. Lembrei de um mico que paguei num show de blues dela com o mega guitarrista Victor Biglione no Jazzmania, hoje Studio RJ. Eu fiquei tão empolgado com a dupla que, já calibrado por algumas doses de uísque, me levantei, fui até o palco, um estrado quase no mesmo nível das mesas, e beijei a mão da Cássia, que ficou totalmente sem jeito. Ezequiel Neves gritou "lindo" e aplaudiu. A gravação em áudio desse show existe mas nunca foi lançada em disco.

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