Marcelo Rubens Paiva
O tempo é implacável para a História. Transforma heróis em vilões, réus em vítimas, muda sentenças, versões. O futuro é a segunda instância do passado. A distância temporal o reinterpreta, torna claro o que estava obscurecido por preconceitos e dilemas morais. Uma vítima foi Euclides da Cunha, que chegou em Canudos como repórter e, sobretudo, [...]
O tempo é implacável para a História.
Transforma heróis em vilões, réus em vítimas, muda sentenças, versões.
O futuro é a segunda instância do passado.
A distância temporal o reinterpreta, torna claro o que estava obscurecido por preconceitos e dilemas morais.
Uma vítima foi Euclides da Cunha, que chegou em Canudos como repórter e, sobretudo, militante republicano. Foi narrar a repressão contra religiosos fanáticos, liderado por um insano corno, que se opunha a modernidade, Estado laico e casamento civil. Mandou reportagens carregadas na tinta.
Anos depois, se sentou num casebre à beira de um rio e escreveu a narrativa sobre o massacre, a luta entre passado e futuro. Uma busca da identidade brasileira.
Publicado em 1902 com estardalhaço, Os Sertões se esgotou em dias. Talvez tenha sido o primeiro best-seller de um Brasil que se industrializava. Que teve mais duas edições revisadas pelo autor. Em cada uma, ele mudava o final, reinterpretava, fazia adendos. Até surpreender na última versão e mudar de lado, fazer um mea-culpa, encontrar os verdadeiros insanos, o verdadeiro brasileiro, e repensar em seus ideais.
Outra tragédia é recontada décadas depois.
Uma que já matou mais que muitas doutrinas, tiranos e guerras (causou 36 milhões de mortes) e infecta três mil pessoas por dia: a do descaso com o vírus da aids.
Um filme produzido pela HBO, The Normal Heart, que acaba de estrear no cabo, com Mark Ruffalo e Julia Roberts, baseado na peça de Larry Kramer, roteirista deHorizonte Perdido- que militou no movimento gay e testemunhou a morte da metade dos amigos em Nova York no começo da epidemia- oxigena o incêndio criado por outro filme da HBO de 20 anos atrás, And The Band Plays On, baseado no livro de Randy Shits.
Shits relatou os dilemas que a nova doença, que atacava a comunidade gay, levantavam na sociedade arrastada pela nova onda conservadora, pêndulo que voltava depois dos delírios das décadas anteriores.
Em 1981, ela se espalhou entre frequentadores de saunas gays de San Francisco e Nova York. Já se sabia que era sexualmente transmissível e tinha uma mortalidade de 100%. Sem nome, ficou conhecida como “praga gay” ou “câncer gay’. Em 1983, quando os EUA contabilizavam 951 casos, 640 mortes, mudaram de Grid (Gay Related Immune Deficiency) para aids (Auto Immune Deficiency Syndrome).
O CDC (Centro de Controle de Doenças) começou a rastreá-la enquanto Reagan tomava posse e anunciava cortes públicos para combater a inflação (exceto na Defesa). O CDC não tinha verba para comprar um microscópio eletrônico. Descobriu um padrão de infecção, chegou ao chamado paciente zero, um comissário de bordo canadense, provou que bancos de sangue estavam contaminando hemofílicos, mas poucos acreditavam.
A indústria dos bancos de sangue se recusou a admitir a contaminação por transfusão, apesar dos números (89% os hemofílicos tinham o vírus da aids em 1982). A comunidade gay de San Francisco se recusou a fechar as saunas, para ela, o grande símbolo da afirmação homossexual e da revolução por liberdade e direitos civis.
Foram os franceses do Instituto Pasteur, que estudavam a doença entre imigrantes africanos desde 1978, que isolaram o vírus.
Depois, o infectologista americano Robert Gallo tentou patenteá-lo e se tornar “dono” do teste anti-HIV.
Os dois grupos foram à Justiça, enquanto a Era Reagan ignorava a doença, assim como o Departamento de Saúde Pública de Nova York, e religiosos insistiam em condenar o uso de preservativos, sob o aplauso do Vaticano.
Só em 1985, o FDA (Food Drugs Administration) aprovou o teste contra o HIV. Bancos de sangue o adotaram depois de contaminarem 28 mil pacientes, e Reagan finalmente reconheceu a aids como uma epidemia; 25 mil homens e mulheres já tinham morrido nos EUA.
Foram cinco anos cruciais.
O filme The Normal Heart mostra a insana e solitária luta de ativistas nova-iorquinos, que abrigava metade dos contaminados, para conseguir fundos para alertar sobre os perigos da doença.
Larry Kramer fundou com amigos o Gay Men’s Health Crises. Não conseguiu um tostão da prefeitura. O prefeito Ed Koch, apesar da fama de enrustido, não os recebia. Até a imprensa se calou nos primeiros anos. Percebia-se que uma força maior impedia que o debate se propagasse, admitisse a existência da epidemia. A Casa Branca os ignorava. Só havia uma explicação para a comunidade: há um pacto não declarado, invisível, para exterminar os gays do País. A homofobia estava matando.
Pensei nos amigos que perdi por causa da aids.
No meu professor da USP, Luiz Roberto Galizia, que estudou em Berkeley, na Califórnia, onde Cazuza morou em 1979. Trabalhou com Bob Wilson em Nova York, onde Renato Russo também se infectou. E aparecia na piscina do CRUSP com manchas pelo corpo (Sarcoma). Ninguém sabia o que eram aquelas manchas.
Morreu em 1985.
Cazuza em 1990.
Renato em 1996.
Pensei em Henfil, ídolo com quem trabalhei na TVA. Hemofílico, morreu em 1988. Pensei no meu primeiro diretor de teatro, João Albano. Que me dirigiu desde quando eu tinha 15 anos.
No ator e parceiro de pôquer Adilson Barros. Em 1984, fomos a Nova York apresentar Feliz Ano Velho. Ficamos num hotel da Washington Square, Village. Era o fim de um verão inesquecível. Fumar maconha no parque ainda estava liberado. Às noites, eu ia ao lendário CBGB. Ele, às boates e saunas gays com o produtor, Paulinho, e o cenotécnico, Carlinhos. Voltavam e contavam as estripulias sexuais. Os três morreram de aids na década seguinte.
Me pergunto se não estariam vivos, se o governo americano tivesse agido rápido e sem discriminação.
No mundo todo, 34 milhões vivem com HIV.
Aqui, 37 mil novos casos são notificados por ano.
Segundo pesquisa do SampaCentro publicada em 2012 na Revista da Fapesp, 6,4% dos jovens gays de São Paulo, entre 18 e 24 anos, os filhos da geração Coca-Cola, têm aids.
Foram entrevistados 1.217 frequentadores de bares, cinemas e boates da região da República-Consolação.
Descobriu-se que 15% têm HIV.
Mantem-se o pacto invisível para exterminá-los.
DETALHE. De acordo com o Ministério da Saúde, havia um caso de aids entre mulheres para cada 26 de homens em 1985. Em 2010, a proporção saltou de um caso em mulheres para cada 1,7 homem.
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