segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A verdadeira morte de Yves Hublet, o brasileiro indignado que enquadrou José Dirceu a bengaladas



O deputado federal José Dirceu, do PT de São Paulo, estava cercado por jornalistas quando passou por um corredor da Câmara em 29 de novembro de 2005, um dia antes de ter o mandato cassado e os direitos políticos suspensos até 2016. Não percebeu que, na multidão, havia um dos incontáveis brasileiros indignados com a roubalheira do mensalão. As câmeras de TV documentaram a cena fora do script.  Levou duas bengaladas do escritor curitibano Yves Hublet, de 67 anos. Uma acertou a clavícula, a outra atingiu os braços que protegiam o rosto.
Os flashes voltaram-se imediatamente para o homem de barbas brancas que no dia seguinte foi apresentado ao país na primeira página de todos os jornais. Desde então,  Hublet, que se contentava com a restrita notoriedade que lhe dera a autoria de “Artes & Manhas do Mico-leão” e “A Grande Guerra de Dona Baleia” ─ livros infanto-juvenis bem sucedidos ─ ficou nacionalmente conhecido como o “homem da bengala”. Cinco anos depois, o escritor voltou de uma temporada na Europa, foi preso pela Polícia Federal e morreu num hospital público em Brasília.
A morte de Hublet gerou um tsunami de rumores na internet. O blog do jornalista Cláudio Humberto informou que o corpo fora “cremado na Bélgica”. O colunista Ricardo Boechat explicou que o escritor “não tinha parentes e, por isso, ninguém sabe o destino do corpo”. Em 3 de agosto, no plenário do Senado, o tucano Álvaro Dias mencionou as “circunstâncias suspeitas” da morte. O programa Fantástico, da TV Globo, designou repórteres para investigá-la. Até hoje, a imprensa que tornou Hublet famoso nada publicou de conclusivo sobre o caso.
No fim de 2006, quase um ano depois do episódio das bengaladas, Hublet, que tinha dupla cidadania, mudou-se para a Bélgica. “Ele se dizia decepcionado com o Brasil”, informou um editor dos livros infanto-juvenis, que não quis ser identificado. O escritor refugiou-se num apartamento pago pelo governo na cidade de Charleroi. Frequentava a biblioteca Arthur Rimbaud, onde consumia um bom tempo  conversando com as bibliotecárias Josete, Hélène e Cécile. A solidão o animou a escrever a história de sua família.
Em abril deste ano, Hublet decolou num avião em direção ao Rio de Janeiro. Hospedou-se numa casa na Tijuca, pertencente à ex-mulher Sueli Bittencourt, com quem viveu durante 21 anos. “Ele pedia remédios para hemorróidas”, contou Sueli por telefone. “Eu perguntava se estava tudo bem, mas ele desconversava”. Do Rio de Janeiro, o escritor voou até Curitiba. Ficou na casa de um amigo em Quatro Barras, município a vinte quilômetros da capital paranaense. Em 15 de maio, jantou com o editor. “Ele estava bem, sem aparentar problemas de saúde”. Dois dias depois, partiu para Brasília.
Rômulo Marinho, que se tornou amigo de Hublet durante o convívio no Sindicato dos Escritores do Distrito Federal, obteve o aval da mulher para hospedá-lo. Os dois costumavam falar de política na varanda. Numa das conversas, Marinho notou que o amigo levantava-se com frequência exagerada para ir ao banheiro. “Ele disse que tinha uma pequena hemorragia retal e que vinha tomando remédios”, disse Marinho. “Quis levá-lo ao hospital, mas ele avisou que ia se tratar na Bélgica. Estava com a passagem marcada para 27 de maio”.
A empregada de Meireluci Fernandes, uma amiga de Hublet que naquela semana também o acolheu em Brasília, queixava-se por ter de limpar todos os dias o vaso sanitário repleto de sangue. O escritor ficou ali no sábado e no domingo, e retornou à casa de Marinho. Os intervalos entre as idas ao banheiro encurtaram.
Antes de embarcar rumo à Europa, Hublet foi ao guarda-móveis Dular, na Asa Sul de Brasília, onde armazenara livros e objetos antigos. Levou algumas caixas à casa de Marinho e, de uma delas, tirou um violão castigado pelo tempo. Presente para o neto do anfitrião, que encaminhou o instrumento à Serra Negra, interior de São Paulo, para que fosse restaurado pelo especialista Di Giorgio. De outra, sem que ninguém percebesse, sacou duas garruchas velhas, herança de família. Desmontou e escondeu as peças de ferro entre as roupas na mala.
Por volta das 17h do dia 27 de maio, Marinho levou Hublet ao aeroporto de Brasília, no Lago Sul. Duas horas depois, recebeu o telefonema: Hublet fora preso pela Polícia Federal, que localizou as garruchas desmontadas e instaurou o inquérito 6832010. Como não tinha o registro das armas, o escritor ficou seis dias preso numa cela da PF. Depois voltou para a casa de Marinho. Em 3 de julho, o “homem da bengala” foi internado no quarto 408 do 4º andar do Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), vítima de um adenocarcinoma ─ tumor malígno que se instalou no intestino.
Depois de ler a notícia numa rede social da internet, postada por Solange Macuch, ex-namorada de Hublet em Curitiba, uma prima que mora no Rio de Janeiro, e que também pediu para não ser identificada, ligou três vezes para o hospital. “Na primeira, ouvi a voz sofrida dele”, disse. Na segunda, o som soou quase inaudível. Na terceira, a enfermeira avisou que o paciente não tinha condições físicas para atender.
Hublet morreu às 6h30 da manhã de 27 de julho. Marinho acredita que o amigo veio da Europa consciente de que não sobreviveria por muito tempo. Ele supõe que o amigo tenha enfiado as armas na mala porque, no íntimo, preferia ficar no Brasil. Márcia Oliveira, ex-mulher de Hublet na capital, desconfia de que, pelo percurso que o ex-marido fez pelo país, estava tudo planejado. O escritor despedia-se do mundo. “Ele escondeu a doença que tinha, optou por não se cuidar”.
Diferentemente do que se divulgou na internet, o corpo não foi cremado. Yves Hublet está enterrado no setor C, lote 0208, quadra 02032 do Cemitério Campo da Esperança, na Asa Sul, em Brasília. Seus livros continuam circulando pelas escolas do país. A bengala ─ adquirida depois que fraturou o joelho numa queda de planador, e que acertou Dirceu em cheio ─ está guardada num quarto da casa de Rômulo Marinho. Ele pretende um dia torná-la símbolo da luta contra a Era da Mediocridade.
by - Bruno Abbud

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