O especialista em segurança pública acha que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) são parte da solução para a violência, mas defende programas mais amplos
ISABEL CLEMENTE
08/10/2014
Revista Época
Aos 18 anos, o canadense Robert Muggah percorreu a África de moto para trabalhar em programas das Nações Unidas. Depois de passar por Togo, terra do vudu, contraiu uma febre tifoide. Ouviu de um médico local que a doença era obra de feiticeiros. No final dos anos 1990, foi parar no lugar mais perigoso do planeta naquele período: a fronteira da Colômbia com o Equador, onde fez pesquisas sobre narcotráfico. Seu atual desafio é morar no Rio de Janeiro, conflagrado pela guerra contra o tráfico. Aos 40 anos, Muggah – um dos maiores especialistas mundiais em segurança pública – será um dos palestrantes do TED Global nesta quarta-feira (8), evento realizado pela primeira vez no Rio de 5 a 10 de outubro.
ÉPOCA – Programas de pacificação como as UPPs do Rio são a solução para cidades violentas?
Robert Muggah – Programas de pacificação são uma das mais fascinantes experiências policiais no mundo hoje. Há iniciativas também nos Estados Unidos e na Ásia. Digo que são experiências, porque nenhuma delas tem uma doutrina clara. Fazem uma abordagem experimental. As UPPs são parte da solução, porque priorizam áreas mais vulneráveis ao crime. Isso já é uma abordagem radical do problema. Mas precisamos de programas mais amplos. Está provado cientificamente que investir na infância reduz a violência, assim como promover emprego, educação e lazer para a juventude mais vulnerável. A pacificação no Rio tinha dois objetivos: recuperar o território para o Estado e pacificar a polícia. As comunidades foram retomadas e, de forma geral, os crimes caíram. Episódios lamentáveis, como o assassinato de Amarildo e amulher arrastada por um camburão, tiveram um impacto desproporcional na opinião pública sobre as UPPs – e isso nos leva à segunda e mais complicada meta: pacificar a polícia.
Robert Muggah – Programas de pacificação são uma das mais fascinantes experiências policiais no mundo hoje. Há iniciativas também nos Estados Unidos e na Ásia. Digo que são experiências, porque nenhuma delas tem uma doutrina clara. Fazem uma abordagem experimental. As UPPs são parte da solução, porque priorizam áreas mais vulneráveis ao crime. Isso já é uma abordagem radical do problema. Mas precisamos de programas mais amplos. Está provado cientificamente que investir na infância reduz a violência, assim como promover emprego, educação e lazer para a juventude mais vulnerável. A pacificação no Rio tinha dois objetivos: recuperar o território para o Estado e pacificar a polícia. As comunidades foram retomadas e, de forma geral, os crimes caíram. Episódios lamentáveis, como o assassinato de Amarildo e amulher arrastada por um camburão, tiveram um impacto desproporcional na opinião pública sobre as UPPs – e isso nos leva à segunda e mais complicada meta: pacificar a polícia.
ÉPOCA – Por que é tão difícil pacificar a polícia?
Muggah – São vários problemas. O maior é a desconexão entre a Polícia Militar e a Polícia Civil. As duas corporações não compartilham informações e até competem. O histórico militar também pesa. Há uma enraizada cultura militarista, que reproduz um comportamento típico de quem é treinado para ir à guerra. Isso não é uma guerra, mas uma situação doméstica, que envolve civis. Há um terceiro ponto, único no Brasil: a tolerância com esse ataque ao inimigo, como se certo nível de violência da polícia fosse o preço que os brasileiros têm de pagar. Mas há mudanças a caminho. A campanha para encontrar Amarildo é sintoma de uma sociedade que se torna menos tolerante com a violência policial.
Muggah – São vários problemas. O maior é a desconexão entre a Polícia Militar e a Polícia Civil. As duas corporações não compartilham informações e até competem. O histórico militar também pesa. Há uma enraizada cultura militarista, que reproduz um comportamento típico de quem é treinado para ir à guerra. Isso não é uma guerra, mas uma situação doméstica, que envolve civis. Há um terceiro ponto, único no Brasil: a tolerância com esse ataque ao inimigo, como se certo nível de violência da polícia fosse o preço que os brasileiros têm de pagar. Mas há mudanças a caminho. A campanha para encontrar Amarildo é sintoma de uma sociedade que se torna menos tolerante com a violência policial.
ÉPOCA – O senhor acha inconciliáveis a mentalidade militar e uma postura não agressiva?
Muggah – Muitos lugares tinham uma força policial muito agressiva e conseguiram mudar o rumo, como Nova York e São Paulo. Precisamos levar a sério a reforma da polícia, dar ênfase ao treinamento, melhorar os salários e estimular a sociedade a ser menos tolerante com abusos policiais.
Muggah – Muitos lugares tinham uma força policial muito agressiva e conseguiram mudar o rumo, como Nova York e São Paulo. Precisamos levar a sério a reforma da polícia, dar ênfase ao treinamento, melhorar os salários e estimular a sociedade a ser menos tolerante com abusos policiais.
ÉPOCA – Especialistas como o senhor se queixam da ausência de estatísticas sobre a violência no Brasil.
Muggah – Sim. Sem estatísticas, é muito difícil medir a escala dos problemas, saber onde concentrar investimentos e programas de intervenção. Também não é possível conhecer a eficácia das medidas implementadas. Sem informação suficiente, toda decisão fica intuitiva, ilógica e emocional. Há um enorme deficit no Brasil de informações sobre armas. Usamos uma estimativa que sugere haver 16 milhões ou 17 milhões delas em circulação no país, e apenas 6 milhões ou 7 milhões registradas. O governo brasileiro precisa ser mais transparente sobre isso, porque pelo menos 70% das 56 mil vítimas anuais da violência morrem feridas por armas. Boa parte dessas armas é fabricada no Brasil. Claro que os fabricantes não querem tornar isso público. Só que não temos ideia de quantas pessoas têm armas em casa, nem sabemos onde e como são vendidas. A fundação Google Ideas e o Instituto Igarapé projetaram um aplicativo para visualizar importações e exportações de armas, incluindo munição, em todo o globo. Ele mostra que o Brasil é o segundo maior exportador de armas do hemisfério ocidental, depois dos Estados Unidos. É uma política de governo incentivar a indústria armamentista, uma grande contradição com os planos do país relacionados ao Conselho de Segurança da ONU, a acordos de paz e ao controle de drogas nas fronteiras. No mundo, 550 mil pessoas morrem por ano em zonas de guerra e assassinadas. No Brasil, são registradas 56 mil mortes por violência todo ano, mais que em qualquer país. Isso significa que uma de cada dez vítimas de violência é brasileira. É assombroso.
Muggah – Sim. Sem estatísticas, é muito difícil medir a escala dos problemas, saber onde concentrar investimentos e programas de intervenção. Também não é possível conhecer a eficácia das medidas implementadas. Sem informação suficiente, toda decisão fica intuitiva, ilógica e emocional. Há um enorme deficit no Brasil de informações sobre armas. Usamos uma estimativa que sugere haver 16 milhões ou 17 milhões delas em circulação no país, e apenas 6 milhões ou 7 milhões registradas. O governo brasileiro precisa ser mais transparente sobre isso, porque pelo menos 70% das 56 mil vítimas anuais da violência morrem feridas por armas. Boa parte dessas armas é fabricada no Brasil. Claro que os fabricantes não querem tornar isso público. Só que não temos ideia de quantas pessoas têm armas em casa, nem sabemos onde e como são vendidas. A fundação Google Ideas e o Instituto Igarapé projetaram um aplicativo para visualizar importações e exportações de armas, incluindo munição, em todo o globo. Ele mostra que o Brasil é o segundo maior exportador de armas do hemisfério ocidental, depois dos Estados Unidos. É uma política de governo incentivar a indústria armamentista, uma grande contradição com os planos do país relacionados ao Conselho de Segurança da ONU, a acordos de paz e ao controle de drogas nas fronteiras. No mundo, 550 mil pessoas morrem por ano em zonas de guerra e assassinadas. No Brasil, são registradas 56 mil mortes por violência todo ano, mais que em qualquer país. Isso significa que uma de cada dez vítimas de violência é brasileira. É assombroso.
ÉPOCA – A violência cresce no rastro das drogas, e o consumo aumenta ano a ano. Como frear essa espiral?
Muggah – Há uma relação forte entre tráfico, uso de drogas e violência. Mas é preciso notar que não é a droga em si. Não há nenhuma violência em usar droga, seja ela qual for. Os usuários são punidos da pior maneira possível. Trilhões de dólares foram gastos na guerra contra as drogas, sem nenhum sinal de redução no consumo nem na produção. Apesar de todas as evidências mostrarem um fracasso das respostas adotadas, insistimos nelas. Se você for a Portugal, ou à Holanda, ou à Suíça, verá que essas sociedades conseguiram reduzir os danos sociais porque mudaram a forma de pensar sobre as drogas. Não usam repressão. Respondem com bons serviços de saúde e educação nas áreas vulneráveis. Evitam prender usuários, porque reunir consumidores e traficantes no mesmo local é criar universidades do crime, como acontece no Brasil.
Muggah – Há uma relação forte entre tráfico, uso de drogas e violência. Mas é preciso notar que não é a droga em si. Não há nenhuma violência em usar droga, seja ela qual for. Os usuários são punidos da pior maneira possível. Trilhões de dólares foram gastos na guerra contra as drogas, sem nenhum sinal de redução no consumo nem na produção. Apesar de todas as evidências mostrarem um fracasso das respostas adotadas, insistimos nelas. Se você for a Portugal, ou à Holanda, ou à Suíça, verá que essas sociedades conseguiram reduzir os danos sociais porque mudaram a forma de pensar sobre as drogas. Não usam repressão. Respondem com bons serviços de saúde e educação nas áreas vulneráveis. Evitam prender usuários, porque reunir consumidores e traficantes no mesmo local é criar universidades do crime, como acontece no Brasil.
ÉPOCA – Discutir liberação das drogas no Brasil é um grande tabu. Muitas famílias apostam na proibição como forma de tentar controlar os filhos.
Muggah – Verdade. A humanidade usa drogas há milhares de anos e continuará usando. Muitas dessas drogas são legais, como tabaco e álcool. Não temos de partir para a irrestrita legalização, mas sim para um debate sobre regulação. Há cinco meses, eu não era pai, e agora me pergunto o que será mais perigoso se minha filha resolver usar droga um dia – prefiro que ela não use. É melhor que ela adquira essa droga de um traficante num local perigoso, capaz de inserir ingredientes químicos desconhecidos, ou seria melhor que ela comprasse de um esquema controlado, fabricado e regulado pelo governo, a que ela não teria acesso antes dos 18 anos? Nenhuma dessas opções realmente me agrada. A discussão que põe, de um lado, a proibição total e, do outro, a liberação total é uma falsa dicotomia. Existem muitas opções diferentes entre os extremos. Talvez envolva apenas regulação, não liberação.
Muggah – Verdade. A humanidade usa drogas há milhares de anos e continuará usando. Muitas dessas drogas são legais, como tabaco e álcool. Não temos de partir para a irrestrita legalização, mas sim para um debate sobre regulação. Há cinco meses, eu não era pai, e agora me pergunto o que será mais perigoso se minha filha resolver usar droga um dia – prefiro que ela não use. É melhor que ela adquira essa droga de um traficante num local perigoso, capaz de inserir ingredientes químicos desconhecidos, ou seria melhor que ela comprasse de um esquema controlado, fabricado e regulado pelo governo, a que ela não teria acesso antes dos 18 anos? Nenhuma dessas opções realmente me agrada. A discussão que põe, de um lado, a proibição total e, do outro, a liberação total é uma falsa dicotomia. Existem muitas opções diferentes entre os extremos. Talvez envolva apenas regulação, não liberação.
ÉPOCA – A miséria extrema caiu no Brasil, mas isso não surtiu efeito nos indicadores de violência. Por quê?
Muggah – A pergunta que todo especialista faz, em qualquer lugar do mundo, é qual fator reduz mais a violência. Ainda não sabemos. Há regiões nos Estados Unidos e na Europa que, nos últimos 20 anos, atingiram quedas históricas em diversos indicadores de violência, e não sabemos por quê. Se tentar explicar por que a violência continua subindo no Brasil, a despeito da queda na miséria, diria que três ou quatro fatores precisam ser considerados. Primeiro: miséria, estatisticamente, nem sempre está relacionada à violência. Segundo: o Brasil tirou 30 milhões de pessoas da miséria, mas continua a ser uma das sociedades mais desiguais do mundo, e há uma grande relação entre desigualdade e violência. Outro dado importante não é o ritmo de crescimento nas grandes cidades. O crime prolifera naquelas intermediárias, que crescem aceleradamente. Está acontecendo no Nordeste. Outro fator é a alta proporção de pessoas com menos de 30 anos na população. Quando há muitos jovens, desempregados, com baixa escolaridade, a tendência é haver mais problemas. Os outros dois fatores são as drogas e as armas, como falamos.
Muggah – A pergunta que todo especialista faz, em qualquer lugar do mundo, é qual fator reduz mais a violência. Ainda não sabemos. Há regiões nos Estados Unidos e na Europa que, nos últimos 20 anos, atingiram quedas históricas em diversos indicadores de violência, e não sabemos por quê. Se tentar explicar por que a violência continua subindo no Brasil, a despeito da queda na miséria, diria que três ou quatro fatores precisam ser considerados. Primeiro: miséria, estatisticamente, nem sempre está relacionada à violência. Segundo: o Brasil tirou 30 milhões de pessoas da miséria, mas continua a ser uma das sociedades mais desiguais do mundo, e há uma grande relação entre desigualdade e violência. Outro dado importante não é o ritmo de crescimento nas grandes cidades. O crime prolifera naquelas intermediárias, que crescem aceleradamente. Está acontecendo no Nordeste. Outro fator é a alta proporção de pessoas com menos de 30 anos na população. Quando há muitos jovens, desempregados, com baixa escolaridade, a tendência é haver mais problemas. Os outros dois fatores são as drogas e as armas, como falamos.
ÉPOCA – O senhor arriscaria dizer quanto dessa violência poderia ser contida por algum tipo de progresso?
Muggah – Como esse tema pode ser incrivelmente deprimente, é preciso olhar sempre o lado bom. Tenho uma história boa para contar. Vivemos o período mais pacífico da humanidade. Voltemos no tempo 1.500 anos, quando não havia nenhum dado organizado sobre violência. A informação disponível do passado eram os cadáveres. A história contada pelos cemitérios revela que 50% a 60% dos mortos foram vítimas de algum ato de violência. Hoje, é muito menos. É incrível o conhecimento que surge dessa autópsia histórica. A proporção de mortos por violência caiu ao longo do tempo. Não acredito que violência seja cultural nem biológica. Teremos sempre de lidar com certo nível de violência, é fato. Mas a enxergo como um fracasso de imaginação, de políticas públicas e de leis.
Muggah – Como esse tema pode ser incrivelmente deprimente, é preciso olhar sempre o lado bom. Tenho uma história boa para contar. Vivemos o período mais pacífico da humanidade. Voltemos no tempo 1.500 anos, quando não havia nenhum dado organizado sobre violência. A informação disponível do passado eram os cadáveres. A história contada pelos cemitérios revela que 50% a 60% dos mortos foram vítimas de algum ato de violência. Hoje, é muito menos. É incrível o conhecimento que surge dessa autópsia histórica. A proporção de mortos por violência caiu ao longo do tempo. Não acredito que violência seja cultural nem biológica. Teremos sempre de lidar com certo nível de violência, é fato. Mas a enxergo como um fracasso de imaginação, de políticas públicas e de leis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário