O cirurgião Paolo Macchiarini mostra, em 2011, as traqueias de plástico que usava em seus transplantes.INSTITUTO KAROLINSKA
Um médico italiano, que passou de estrela da cirurgia mundial a alvo de investigação por suposta falta de ética depois da morte de seis pacientes, provocou uma das piores crises que já viveu a elite científica responsável pelos prêmios Nobel.
Anders Hamsten, principal responsável pelo Instituto Karolinska, deixou o seu cargo por ter defendido esse médico, apesar de uma investigação assegurar que a conduta dele falhou na ética científica. Urban Lendahl, secretário geral da Assembleia do Nobel, renunciou por motivos similares. Lendahl também deixou de ser secretário-geral do Comitê que entrega anualmente o Nobel de Medicina. O Karolinska, em Estocolmo (Suécia), acolhe o grupo de 50 professores vinculados a essa instituição que elegem todos os anos o Nobel de Medicina.
A pessoa que motivou toda a polêmica chama-se Paolo Macchiarini. Na Itália, seu país de origem, a imprensa cedeu-lhe o apelido de “supercirurgião”. Sua fama remete-se à Espanha, em 2008, quando era chefe de cirurgia torácica no Hospital Clínico de Barcelona. Naquele ano, Macchiarini transformou-se no primeiro médico a realizar o transplante da traqueia de um cadáver a uma paciente que estava com tuberculose. A novidade foi que sua equipe retirou todas as células da traqueia do falecido até deixar uma estrutura de tecido conectivo que posteriormente foi preenchido pelas células-mãe da paciente. A operação foi descrita como um sucesso em uma revista médica de prestígio, e cinco anos depois da intervenção, a receptora, a colombiana Claudia del Castillo, mantinha uma boa qualidade de vida e não sofreu nenhuma rejeição ao órgão implantado. Em 2010, Macchiarini realizou uma operação parecida em um garoto de 10 anos no Reino Unido e também obteve êxito.
Seis anos depois, o médico enfrenta duas investigações paralelas depois das mortes de seis dos oito pacientes que receberam transplantes similares em outros países. O Karolinska viu-se obrigado a abrir essas duas vias de investigações, uma “independente”, liderada pelo ex-presidente do Supremo Tribunal da Suécia, e outra interna, depois que um documentário da televisão nacional STV denunciou irregularidades no procedimento do médico.
Dois membros da cúpula do Nobel e do Karolinska deixaram seus cargos
Ao chegar ao Karolinska, em dezembro de 2010, Macchiarini começou a realizar transplantes de traqueias feitas de plástico que posteriormente seriam cobertas pelas células-mãe dos pacientes. O primeiro a receber esse tratamento foi o eritreu Andemariam Teklesenbet Beyene, cujo caso de sucesso foi descrito pela equipe de Macchiarini na renomada revista médica The Lancet, em 2011. A intervenção foi realizada no Hospital Universitário Karolinska. Esse paciente morreu posteriormente, assim como um americano que recebeu um transplante igual no mesmo centro médico. Uma terceira paciente da Turquia acabou sob cuidados intensivos (UTI) durante dois anos e meio por causa de uma operação similar e depois foi transferida aos EUA, onde continuou internada na mesma situação, como explica um porta-voz do hospital sueco. “Acredito que foi a paciente que mais tempo ficou na UTI conosco”, asseguram.
Para o ganhador do Nobel de Medicina de 2000, este é o “pior escândalo” na história do Nobel
Em 2014, médicos do Karolinska denunciaram que Macchiarini havia subvalorizado os perigos que os seus transplantes representavam aos pacientes em seis estudos científicos. O renomado instituto sueco realizou uma investigação independente que concluiu ter havido más práticas em seis estudos, nos quais o médico, com membros de sua equipe, descreve os transplantes em pacientes e outro trabalho sobre operações similares em ratos. A análise dizia que Macchiarini era culpado de não ter conseguido as autorizações necessárias dos pacientes e de ter subvalorizado a gravidade dos seus estados de saúde, entre outros problemas que constituíam “má conduta” científica. Em meados de 2015, apesar dessas evidências, o vice-decano do Karolinska, Anders Hamsten, deu respaldo ao médico, manteve-o em seu posto e disse que, embora não tenha atuado com “o devido cuidado”, não havia tido má conduta.
Desde então, o Karolinska confirmou que há imprecisões no currículo pelo qual Macchiarini foi contratado pelo Instituto. Também disse que não renovará o contrato do cirurgião, quando ele expirar em novembro, e reconheceu ter perdido a confiança no médico. O Conselho de Investigação Sueco retirou o financiamento, segundo relata o Retraction Watch, uma rede especializada em casos de fraude científicas que seguiu de perto a carreira de Maccharini.
“Não temos nem ideia de onde ele está agora”, diz Instituto Karolinska
O cirurgião recebe cerca de 49.500 coroas suecas por mês (R$ 23,3 mil) do Karolinska, segundo um porta-voz do instituto, que se somavam ao que recebia do Hospital Universitário Karolinska, entre dezembro de 2010 e outubro de 2013, estimadas 50.000 coroas suecas por mês, equivalente a R$ 23,7 mil, segundo fontes do Hospital. “Não temos nem ideia de onde está Macchiarini neste momento”, afirma o Karolinska. O Hospital Universitário também não sabe do seu paradeiro.
Arvid Carlsson, médico sueco que ganhou o Nobel de Medicina em 2000, disse na televisão nacional sueca que este é o “pior escândalo” na história do Nobel e que toda a direção do Karolinska deveria renunciar para evitar os danos à reputação do prêmio de maior prestígio do mundo. Sábado passado, Hamsten, figurão do Karolinska, reconheceu que estava errado e se demitiu.
A tempestade fez com que a Real Academia de Ciências Sueca, que entrega anualmente os prêmios Nobel de Física e Química, emitisse um comunicado no qual denunciava os “defeitos e métodos de trabalho indefensáveis que causaram uma crise de confiança na investigação médica da Suécia”. O organismo exigiu que fosse aberta uma investigação comandada por um painel totalmente alheio ao Karolinska e que se acrescentasse um comentário ao estudo de 2011, que ainda retrata a primeira operação de Maccharini com uma traqueia de polímeros como um sucesso.
Contactado pelo EL PAÍS, Maccharini disse que não faria comentários até que as investigações fossem concluídas e se negou a relevar o seu paradeiro.
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