Uma história comovente circula há anos na internet: cerca de 200 fazendeiros, em um gesto de solidariedade, teriam ficado em silêncio durante um leilão de terras, permitindo que um jovem, chamado David, recuperasse a fazenda de sua família, perdida em circunstâncias difíceis. A narrativa, que emociona pela demonstração de empatia, é compartilhada em sites, blogs e redes sociais, como o X, onde acumula milhares de curtidas e compartilhamentos.
Mas há um problema: a história, supostamente ocorrida em Nebraska, nos Estados Unidos, não tem registros confiáveis que confirmem sua veracidade, e muito menos que tenha acontecido no Brasil, como alguns posts sugerem. O que parece um conto inspirador pode ser apenas mais um exemplo de como a desinformação se espalha na era digital, alimentando o que muitos temem ser um "Ministério da Verdade" contemporâneo, semelhante ao descrito por George Orwell em 1984.
A força dessas histórias não está nos fatos, mas na carga emocional que carregam — e é justamente isso que as torna tão perigosas quando usadas sem compromisso com a verdade.
A história dos fazendeiros: fato ou ficção?
A narrativa dos 200 fazendeiros aparece em sites como CompreRural (2020), Sabias Palavras (2023) e Jornal Folha Metropolitana (2025), todos apontando que o evento ocorreu em Nebraska, não no Brasil. Segundo o relato, David e seu pai tentavam recuperar uma fazenda de 32 hectares, vendida por um parente com interesses conflitantes. No leilão, os fazendeiros presentes, cientes da história da família, optaram por não dar lances, garantindo que David arrematasse a propriedade.
A história é descrita como um momento de união comunitária, mas carece de detalhes cruciais: o sobrenome de David, a data exata, o local preciso do leilão ou documentos comprobatórios. Discussões no Reddit (r/conspiracy, 2023) sugerem que a história pode ser um conto folclórico, reciclado para gerar engajamento online.
No Brasil, onde leilões de terras são comuns, como os anunciados em sites como Mega Leilões, não há registros de um evento semelhante envolvendo 200 fazendeiros. A repetição da narrativa em blogs e sites sensacionalistas, sem fontes primárias, levanta uma questão: por que uma história tão antiga e sem comprovação continua sendo compartilhada como se fosse recente?
A resposta está no poder da internet — e no papel das inteligências artificiais (IAs) na amplificação de conteúdos.
O ciclo da desinformação: nós alimentamos as IAs
As IAs, como Grok, GPT não inventam informações do zero. Elas processam dados disponíveis no "mundo virtual" — artigos, posts, vídeos e outros conteúdos públicos. Quando histórias como a dos fazendeiros são compartilhadas em massa, sem checagem, elas se tornam parte do banco de dados que as IAs utilizam para responder perguntas ou gerar conteúdos. Se mentiras ou distorções predominam, as IAs podem, sem querer, reforçar essas narrativas como "verdade", especialmente se ninguém as desmente.
Esse ciclo é perigoso. Como observou um usuário atento nas redes sociais, "nós alimentamos as IAs" com o que publicamos. Se espalharmos desinformação, as IAs a absorvem e a reproduzem, criando um efeito cascata.
Em vez de um “Ministério da Verdade” único e opressor, como em Orwell, temos hoje milhões de microcuradorias descentralizadas, muitas vezes irresponsáveis, decidindo o que ganha ou não visibilidade.
Sites sensacionalistas, como os que republicam a história dos fazendeiros, priorizam engajamento em vez de rigor jornalístico, e o público, muitas vezes, não questiona o que lê.
O caso Marisa Maiô: um alerta sobre criações de IA
Um exemplo recente no Brasil ilustra como a IA pode complicar ainda mais o cenário. A personagem virtual Marisa Maiô, criada por Raony Phillips com ferramentas de IA generativa, como o Veo 3 do Google, tornou-se um fenômeno em 2025, com vídeos que simulam um programa de auditório e atraem milhões de visualizações.
Mas a popularidade da personagem trouxe à tona um debate: a quem pertencem as criações feitas por IA? Phillips, que elaborou os prompts e editou os vídeos, é o criador intelectual, mas a ausência de regulamentação clara no Brasil levanta questões éticas e legais. Se as IAs são treinadas com dados que incluem obras protegidas por direitos autorais, como músicas ou textos, sem permissão, quem é responsável?
A cantora Marisa Monte, em debates na Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) em 2024, defendeu que artistas humanos devem ser protegidos contra o uso não autorizado de suas obras em IAs. O caso de Marisa Maiô, embora distinto, reforça a necessidade de regulamentação para evitar que a tecnologia seja usada de forma irresponsável, amplificando conteúdos sem transparência ou responsabilidade.
Educar para romper o ciclo
A história dos fazendeiros e o sucesso de Marisa Maiô mostram que a tecnologia, por si só, não é o problema. O mau uso, sim. Para evitar a criação de um "Ministério da Verdade" digital, onde narrativas distorcidas prevalecem, é essencial educar o público e adotar práticas responsáveis:
✅ Cheque as fontes: Antes de compartilhar uma história, verifique se ela vem de fontes confiáveis, com dados concretos, como datas, nomes e documentos.
✅ Questione narrativas virais: Histórias emocionantes, como a dos fazendeiros, podem ser inspiradoras, mas também manipulativas. Pergunte: "Isso é fato ou apenas uma história bem contada?"
✅ Exija transparência das IAs: Ferramentas como Grok devem indicar quando uma informação é incerta ou carece de comprovação, como foi feito ao investigar a história dos fazendeiros.
✅ Educação digital: Ensine às próximas gerações como identificar desinformação e usar a tecnologia de forma crítica.
A internet e as IAs são ferramentas poderosas, mas cabe a nós, humanos, usá-las com responsabilidade. Como disse o autor desta matéria, inspirado por um debate nas redes, "estão fazendo mau uso da tecnologia."
Que o silêncio dos fazendeiros, mesmo que fictício, nos inspire não apenas pela solidariedade, mas pela busca da verdade em um mundo cada vez mais conectado — e desafiador. Que esse silêncio — real ou inventado — não seja apenas memória emocional, mas um convite à escuta atenta, crítica e corajosa no ruído ensurdecedor da era digital.
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