segunda-feira, 5 de abril de 2021

Como a pandemia no RS chegou a mortes assistidas e superlotação

 Estado tem mais de 100% de ocupação de leitos de UTI há semanas, além de adotar prática de ortotanásia. Médicos avaliam crise



CIDADES | Guilherme Padin, do R7
28/03/2021 - 02H00

Estado teve recorde de mortes diárias no último dia 16

Estado teve recorde de mortes diárias no último dia 16

MIGUEL NORONHA/AGÊNCIA F8/ESTADÃO CONTEÚDO - 03.03.2021

O Rio Grande do Sul vive seu pior momento no combate à covid-19, com ocupação de leitos de UTI acima dos 100% há mais de três semanas e o recente recorde de mortos (502) pela doença em 24 horas.

O Estado teve 828.397 casos confirmados da doença, 18.680 óbitos e 106,1% da ocupação de seus leitos de UTI, segundo dados da secretaria estadual de saúde nesta sexta-feira (26). Além disso, uma denúncia feita na última semana ao R7 revelou a adoção da prática da morte assistida em pacientes com o vírus há mais de 21 dias na UTI.

Profissionais explicaram à reportagem os principais motivos que levaram o estado gaúcho à atual crise com a covid-19: com as aglomerações, a chegada de uma variante do vírus, a falta de estrutura e a flexibilização num momento inadequado, a pandemia avançou drasticamente no Rio Grande do Sul.

Após as festas de fim de ano e sobretudo no feriado do carnaval, quando muitas pessoas de cidades do interior e de Porto Alegre vão ao litoral, as aglomerações formadas surtiram efeito de aumento no número de casos no início deste ano, comenta Paulo Petry, epidemiologista e professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

“Por aqui há o fenômeno de aglomerações nas praias durante as festas, e as pessoas voltam para suas casas em diferentes regiões, espalhando o vírus por todo o Estado. Assim extrapolamos as internações de UTI”, comenta Petry.

O aumento de casos – e consequentemente de mortes – levou a outra crise apontada pelo professor: a falta de leitos de UTI e de profissionais capacitados para atender pacientes com a doença.

Soma-se à falta de leitos, há quase um mês com ocupação acima dos 100%, o fato do Estado realocar recém-formados ou médicos de outras especialidades para atendimento à covid. “Esta improvisação de local (leitos) e de pessoal (médicos) aumenta, sem dúvidas, a chance de mortalidade”, aponta Petry.

Os números do Ministério da Saúde apontam na mesma direção da fala do especialista: enquanto a taxa de mortalidade por 100 mil habitantes é de 147,8 no Brasil, no Rio Grande do Sul ela chega a 164,2.

Um médico que atua em hospitais locais e por isso preferiu não se identificar relatou que, além da prática da ortotanásia (morte assistida), a quantidade de pessoas que estão ao final da fila de espera pela UTI é grande, e isto significa um risco grande de mais óbitos.

“Na semana passada houve um dia em que 200 pessoas estavam esperando por leitos de UTI. Aguardar no final da fila nesse estado de saúde é quase uma sentença de morte. Pode ser que abrissem 200 leitos em um dia e essas pessoas fossem atendidas, mas sabemos que na prática isso não existe, é muito difícil”, comenta o profissional.

Um problema destacado pelo professor Paulo Petry – e que ocorreu simultaneamente aos outros fatos citados – foi a chegada da variante P1, identificada pela primeira vez em Manaus. “No final de janeiro ela já tinha começado a circular (antes da confirmação oficial, no início de março). E como ela possui maior transmissibilidade, isso agravou a situação”, aponta o professor.

Flexibilização Vs lockdown

Centro de Porto Alegre teve movimentação na manhã desta sexta-feira (26)

Centro de Porto Alegre teve movimentação na manhã desta sexta-feira (26)

JOSÉ CARLOS DAVES/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO - 26.03.2021

Segundo um estudo matemático da UFRGS, o Rio Grande do Sul teria uma queda considerável na quantidade de casos e mortes se houvesse adotado o regime de lockdown: seriam 938 vidas salvas com um lockdown de 14 dias, 1.383 vidas com um lockdown em 21 dias, 1.395 com dois lockdowns de 14 dias e 1.791 vidas com três lockdowns de 14 dias.

Paulo Petry acredita que foi um erro do governo do Estado não optar pela medida, o que tende a piorar, segundo ele, devido ao anúncio de Eduardo Leite (PSDB) ao decretar a flexibilização da quarentena e a reabertura de serviços não essenciais.

“Pelos indicadores dá para se ter uma idade da importância do lockdown, que infelizmente não tivemos. E nesta semana o governo flexibilizou a economia. Vemos isso com muita preocupação. Está comprovado que, além das vacinas, o lockdown poderia salvar as pessoas”, diz Petry.

Questionado sobre a possibilidade de novas ondas do vírus nos próximos meses, o professor se diz contrário ao termo, “porque na verdade nunca passamos de uma onda para outra. Aqui nunca baixou. Nossa média móvel sempre foi alta”.

Apesar disso, a possibilidade de um agravamento no número de casos, mortes e internações é real e perigosa, destaca o médico.

“Há uma máxima de que ‘quanto mais tempo o vírus circula, maior a probabilidade dele sofrer mutações’. Nós já temos um ano de circulação intensa no país, sabemos que os vírus se replicam com efeitos e a vacinação está atrasada, o que é muito preocupante, porque pode ser que a vacina não sirva mais para proteger novas variantes”, afirma.

Morte assistida

Na última segunda-feira (22), uma denúncia feita ao R7 revelou a prática da ortotanásia (morte assistida) em pacientes com covid-19 internados há mais de 21 dias em UTIs do Rio Grande do Sul. A ortotanásia é a morte natural, sem interferência da ciência, em que os médicos permitem a evolução e percurso da doença.

Os profissionais estariam sendo orientados a deixarem a doença evoluir sem novos procedimentos depois do período indicado, o que aumenta significativamente as chances de morte.

Para o médico que relatou as informações à reportagem, a decisão é grave pois há frequentes casos de pessoas que passam de 21 dias internadas e sobrevivem. “Já tivemos pacientes de três meses na UTI que sobreviveram”, comenta.

Paulo Petry, que ainda não havia tido contato com os relatos da denúncia, aponta que a prática é condenável e também cita a existência de casos de pessoas que ficaram mais de três semanas na UTI e tiveram boa recuperação. “Não é admissível que ocorra”, diz.

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