by Deise Brandão
De tempos em tempos, a internet ressuscita histórias da medicina que parecem saídas de um filme de terror. A mais recente envolve dois nomes reverenciados na Obstetrícia: William Hunter e William Smellie, frequentemente chamados de “pais da Ginecologia moderna”.
A alegação?Que eles teriam encomendado o assassinato de dezenas de mulheres grávidas no século XVIII para produzir seus atlas anatômicos.
A história é chocante — mas o que há de fato por trás dela?
O que é comprovado historicamente:
1. Hunter e Smellie foram gigantes da Obstetrícia
Ambos revolucionaram o estudo da gestação e do parto.
Hunter publicou, em 1774, o famoso Anatomia Uteri Humani Gravidi, considerado até hoje uma obra-prima de precisão anatômica.
2. Eles tiveram acesso anormalmente abundante a corpos de gestantes
No século XVIII, corpos de mulheres grávidas eram extremamente raros nas mesas de dissecação.A maioria dos anatomistas passava a vida inteira sem ver um único útero grávido.
Hunter e Smellie, porém, dissecavam dezenas — pelo menos 30 a 35 corpos em diferentes estágios da gravidez. Isso é um fato histórico e está documentado.
O que é suspeita forte (mas não prova)
Em 2006, o historiador Don Shelton publicou uma investigação detalhada no Journal of the Royal Society of Medicine, um dos periódicos médicos mais respeitados do mundo.
Ele analisou:
datas das dissecações,
grau de preservação dos corpos,
registros de mortes da época,
logística para obtenção de cadáveres,
práticas conhecidas de ladrões de corpos (“resurrectionists”).
E encontrou inconsistências preocupantes.
Por que os corpos levantam suspeitas?
Muitas das mulheres pareciam saudáveis e próximas do parto.
As condições dos cadáveres indicavam pouca decomposição — improvável se fossem mortes naturais adquiridas dias depois.
O número de cadáveres excede em muito o que seria possível conseguir de forma “normal”.
Shelton propôs então a hipótese: esses corpos podem ter sido obtidos por meio de assassinatos cometidos para abastecer a anatomia.
Não seria a primeira vez.
Casos como o de Burke e Hare (Escócia, 1828), que realmente mataram pessoas para vender aos anatomistas, são historicamente documentados.
O que NÃO é verdade (mas viralizou na internet)
Não existe prova de que Hunter e Smellie mataram alguém.
Não há cartas, confissões, testemunhos ou registros oficiais.
Não há prova de que eles “mandaram matar” 35 mulheres.
O que existe é a suspeita de que eles compraram corpos obtidos por meios violentos, algo que — infelizmente — era parte do submundo anatômico da época.
Chamar os dois de “assassinos em série” é anacrônico.
A categoria “serial killer” nasceu apenas no século XX.
Aplicar isso retroativamente distorce o contexto.
O paradoxo que incomoda até hoje
Os atlas produzidos por Hunter e Smellie: salvaram vidas,ensinaram gerações de médicos,foram fundamentais para o avanço da Obstetrícia.
Mas o material que permitiu esses avanços — os corpos de dezenas de gestantes — pode ter vindo de uma origem violenta e criminosa.
É a face sombria da história da medicina:o progresso muitas vezes foi construído sobre práticas antiéticas que só mais tarde seriam reconhecidas como crime.
Conclusão: verdade, suspeita e mito
A história não é limpa nem simples.
O que sabemos hoje é:
Fato: eles dissecavam um número impossível de gestantes.
Fato: a origem desses corpos é extremamente suspeita.
Fato: há indícios de envolvimento indireto com assassinatos.
Não é fato: que eles mesmos mataram ou comandaram execuções.
Não é fato: que são “assassinos em série” nos termos modernos.
A internet transforma suspeitas históricas em manchetes absolutas.
A verdade é mais complexa — e, justamente por isso, mais perturbadora.
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