sexta-feira, 3 de julho de 2015

A tragédia do réveillon que virou símbolo da impunidade no país


Naufrágio do Bateau Mouche IV matou 55 pessoas 

POR BARBARA MARCOLINI
02/07/2015 


Dias após o acidente, o Bateau Mouche IV é içado na Baía de Guanabara: superlotação foi uma das causas - Manoel Soares / Agência O Globo (16/01/1989)


RIO — O réveillon de 1988 era de novidade na redação: O GLOBO circularia pela primeira vez no feriado de 1º de janeiro (de 1989), experiência até então inédita na imprensa carioca. Mas, em vez da festa em Copacabana, a manchete daquele dia contabilizava ao menos 38 mortos no Bateau Mouche IV, que naufragou às 23h50min do dia 31 de dezembro, próximo à Ilha de Cotunduba, na entrada da Baía de Guanabara. A tragédia daquela madrugada entraria para a história como um símbolo da impunidade no país: nos dois processos criminais resultantes das investigações, apenas duas pessoas foram condenadas, mas não cumpriram pena. Fugiram para o exterior.

O então editor de Rio, Nelson Brandão, testemunhou o resgate desesperado de sobreviventes em meio a dezenas de corpos que boiavam nas águas escuras da Baía de Guanabara. Ele estava de folga naquela noite e passava a virada a bordo do Bateau Mouche III, que partira, junto com o Bateau IV, do cais do restaurante Sol e Mar, em Botafogo, rumo a Copacabana. Em choque, Brandão coordenou a equipe de repórteres e fotógrafos que cobriu a tragédia.

— O barco estava quase chegando a Copacabana quando deu meia-volta, e vimos o Bateau afundado. Foi uma visão horrorosa — lembra Brandão.

Com o prosseguimento dos resgates, o número de mortos chegaria a 55. Uma sucessão de fatores causou a tragédia: a construção de um terraço, sem qualquer base técnica, que deslocou o centro de gravidade da embarcação; superlotação; negligência — o barco tinha furos no casco e bombas que não funcionavam — e possível suborno a agentes da Capitania dos Portos, que não impediram o barco, visivelmente adernado, de continuar viagem. A cobertura do GLOBO também traria à tona as reformas por que a embarcação passara, que não foram vistoriadas pela capitania. O Bateau Mouche poderia transportar no máximo 62 pessoas. Naquela noite, levava cerca de 150.




As festas de réveillon no Bateau eram famosas. Entre os passageiros estavam a atriz Yara Amaral, de 52 anos, morta no naufrágio, e o ex-ministro do Planejamento Aníbal Teixeira, que perdeu a mulher, Maria José Andrade Teixeira e Souza, e outros três parentes. Cada convite havia custado US$ 150, o equivalente a cerca de R$ 1,5 mil em valores atualizados.



Em 17 de novembro de 1990, O GLOBO noticiava: “Juiz absolve donos do Bateau Mouche". Todas as 11 pessoas indiciadas pelo naufrágio foram consideradas inocentes pelo juiz Jasmin Simões Costa, da 12ª Vara Criminal. O Ministério Público recorreu e, na segunda instância, apenas os gerentes do restaurante Sol e Mar, Faustino Puertas Vidal e Alvaro Pereira da Costa, foram condenados.

Paralelamente às investigações sobre a tragédia, o consultor tributário Boris Lerner fez uma devassa nos documentos das empresas que organizavam a festa ao mar. Ele havia perdido a mulher, o filho, um casal de amigos e a filha deles no acidente. O consultor descobriu um esquema de sonegação de impostos, caixa 2 e contas fantasmas.

— Eu presenciei o desprezo pela vida humana, o descaso, a corrupção. Depois do que vivi, senti que tinha uma missão — lembra Lerner.

Em fevereiro de 1994, enquanto o processo sobre os crimes de sonegação se desenrolava, Vidal e Costa, que cumpriam pena em regime aberto, e Avelino Fernandes Rivera, um dos donos da embarcação, tiveram a prisão preventiva decretada. Quatro anos depois, O GLOBO cravava: “Donos do Bateau Mouche estão foragidos na Espanha”. A reportagem investigativa ganhou menção honrosa do prêmio Rei de Espanha.

— O Bateau Mouche até hoje nos ensina — conta a repórter Elenilce Bottari, uma das envolvidas nas muitas reportagens sobre o caso. — A Justiça foi frágil e as investigações, mal feitas. As pessoas foram às ruas protestar.



Dos dez acusados no processo de sonegação, apenas Vidal e Costa, até hoje foragidos, foram condenados. Quatro tiveram as penas prescritas antes do julgamento e outros quatro foram absolvidos em segunda instância, por falta de provas.

— É lamentável, pois poucas vezes vi um caso de sonegação tão bem documentado. Com certeza, um caso como este ajudou a construir a realidade de impunidade do Brasil — lamenta a procuradora da República Silvana Batini, que atuou no processo.



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/o-globo-90-anos-tragedia-do-reveillon-que-virou-simbolo-da-impunidade-no-pais-16633845#ixzz3eqzcN42v
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