O tráfico de órgãos é um crime silencioso, sem tiros, sem assaltos, muitas vezes sem palavras. Deixa rastros de dor nos familiares de pessoas levadas à morte. E, no Brasil, está cada vez mais difícil de ser rastreado, detectado, punido, apesar da garantia de instituições médicas de que é muito difícil um órgão ser transplantado irregularmente.
Muitos casos, que estão próximos de ser configurados dentro desta definição, acabam sendo diluídos pelos argumentos de advogados e por inúmeros recursos, deixando claro que, mesmo com decisões judiciais a favor, é muito difícil, pela sua subjetividade, enquadrar alguém pela prática deste crime.
Um dos exemplos mais conhecidos está correndo risco até de prescrever, segundo o juiz da 1ª Vara Criminal de Poços de Caldas, Narciso Alvarenga Monteiro de Castro. A própria defesa diz que o julgamento de médicos acusados de homicídios, que teria sido remarcado para o próximo dia 6 de abril, está suspenso.
Esse processo, que julga acusação de homicídio, foi transferido de Poços de Caldas para Belo Horizonte porque, segundo o juiz, Poços de Caldas não tinha condições de fazer um julgamento isento, devido às pressões.
— Quando foi marcado o júri para Poços de Caldas, nenhum réu recorreu... quando foi marcado o júri em BH vários recorreram, especialmente Alvaro Ianhez [um dos acusados], cuja prescrição se dará em 2016, quando fizer 70 anos.
Enquanto isso, de Londres, para onde foi após receber ameaças de morte, Paulo Pavesi denuncia que a máfia do tráfico de órgãos é uma realidade no Brasil. Em 2008, ele recebeu asilo político na Itália e permaneceu na Europa.
— No Brasil, você pode matar e vender órgãos que não tem problema nenhum. A Justiça dá uma ajuda boa. No caso do meu filho foram abertos três inquéritos há 15 anos e um inquérito pela lei deve durar no máximo 30 dias.
Pavesi se refere à morte de seu filho Paulo Veronesi Pavesi, em 2000, quando tinha dez anos, em Poços de Caldas. O menino morreu no hospital, após queda em playground do prédio, mas a Justiça local concluiu que ele estava vivo no momento em que os médicos determinaram o transplante de seus órgãos.
Alguns médicos foram presos, condenados por transplante irregular, mas logo deixaram a cadeia, com habeas corpus. Monteiro de Castro garante que o caso revelou a existência de uma máfia na cidade.
E Pavesi diz que ela existe até hoje, com núcleo em São Paulo e ramificações pelo Brasil, baseada em listas de clínicas particulares, paralelas à do Sistema Nacional de Transplantes. Segundo ele, o esquema tem um funcionamento simples e está bem engrenado.
— É bem simples. Entra um paciente em um hospital, vítima de um AVC ou de um acidente de carro que teve algum problema no cérebro, por exemplo. Todos os exames são feitos nessa pessoa, até porque ela está sendo atendida em emergência. De posse destes exames, você tem o perfil desta pessoa, você sabe para quem ela pode doar o rim.
Conforme ele disse, inicia-se a partir da declaração da morte encefálica, um procedimento burocrático.
— Do lado legal funciona desta maneira: a pessoa é constatada morta, os dados são levados para a fila e vão comparar para ver quem é o próximo que pode receber o órgão. O que a máfia faz? Ela tem uma lista paralela, ela pega esses dados e compara com a lista dela, que tem pessoas inscritas em consultórios particulares aguardando por um rim. A máfia tem poder financeiro e político. No Brasil, com poder e dinheiro, você faz o que quiser e a máfia é regida por isso.
Segundo Pavesi, no esquema da máfia, uma lista privada tem privilégios sobre a do Sistema Nacional de Transplantes.
— O procedimento é o mesmo, só se muda a lista, o que era da lista pública vai para a lista privada. E se na lista privada a pessoa oferece muito dinheiro e está muito necessitada, surge a necessidade de apressar a morte do paciente para resolver logo o problema. É o que eles [da máfia] estão fazendo.
Pavesi completa, dizendo que a notícia da morte de um parente pega a família em um momento fragilizado. Ele diz que os órgãos de Paulinho foram doados, mas se sentiu enganado, por ter sido vítima do que define como máfia. E que o "esquema" só foi descoberto porque, por ambição, percebeu que havia cobranças indevidas na conta hospitalar.
— Aí o médico está em um hospital público, em contato com a família que geralmente não tem a mínima instrução e diz: Olha, o seu parente está morto, a senhora quer doar os órgãos? Você não tem como contestar isso, você não tem como questionar. É leigo e fala, tá bom. Foi o que aconteceu comigo. Eles têm tudo nas mãos. Você está sem chão e pensa em doar. Só que na verdade na maioria dos casos o paciente não estava morto, estava vivo.
Súplica do juiz
A morte de Paulinho foi denominada como “caso 0” na cidade. A partir dele, se iniciou uma série de investigações de outros casos de transplantes ilegais. Monteiro de Castro ressalta que, em mais uma demonstração de que sua decisão de condenar vários médicos por transplante ilegal, inclusive mandando alguns a júri popular, tinha total embasamento jurídico.
— As provas foram muitas, estudei a fundo o caso, me debrucei em documentação por muito tempo. Advogados e procuradores também chegaram a esta conclusão. Justiça não é uma brincadeira, é coisa séria e não cheguei a esta conclusão por acaso.
O juiz ressalta que, outra decisão dele, em relação ao caso 1, de outra pessoa morta que teve seus órgãos transplantados, também, segundo ele de forma ilegal, foi corroborada em segunda instância.
—A sentença do caso 1 foi a segunda que proferi, em 2013 (a 1ª foi a pronúncia do Caso Pavesi, em 2012). A decisão em 2ª instância que confirmou a sentença do Caso 1 foi do TJMG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais).
Sem aceitar o habeas corpus dado a médicos condenados por ele por tráfico ilegal, Monteiro de Castro enviou documentação ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki, implorando para que os ministros do órgão leiam o texto, em que afirma que o julgamento foi imparcial. Diz um trecho:
— Porém este Magistrado roga, suplica a Vossas Excelências que leiam, com a atenção sempre dispensada, todo o vasto material que acompanha estas singelas linhas.
A partir do momento em que fez a denúncia, Pavesi afirma que começou a ser perseguido por estar ferindo interesses de uma ala poderosa na cidade. Nenhum médico está preso até hoje e, segundo Pavesi, os acusados continuam atuando na medicina. O juiz Monteiro de Castro também garante ter recebido várias ameaças. E as ameaças de morte, de acordo com Pavesi, são recorrentes.
Ameaça indica vingança contra família de vítima