sexta-feira, 17 de outubro de 2025

O ridículo do mimetismo

 

                        

by Deise Brandão

Há algo de profundamente constrangedor em assistir alguém tentando copiar a alma de outra pessoa — não apenas seu estilo, mas seus pensamentos, suas emoções, sua trajetória interior. É como ver um ator mal ensaiado tentando interpretar uma peça que não compreende: a máscara escorrega, e o falso se denuncia por si só.

O mimetismo social e pessoal não eleva ninguém. Pelo contrário: expõe. Revela insegurança, inveja e vazio interior. Quem precisa roubar a forma de ser do outro — os gestos, a voz, as ideias, as “coincidências” forçadas — confessa, sem perceber, que não tem substância própria.

A tentativa de se apropriar de experiências íntimas ou de despertar espiritual alheio é especialmente grotesca. Não se imita o que é genuíno. Não se falsifica a essência. Por mais bem ensaiada que pareça a encenação, para quem conhece a origem, o resultado é risível — e para quem não conhece, é enganoso por um tempo… mas só por um tempo.

O imitador acha que está sendo admirado, quando na verdade está sendo notado pelo ridículo. Acredita que está “elevado” quando, na prática, está se afundando num teatro de terceira categoria. O esforço de parecer sufoca qualquer possibilidade de ser.

Imitar pode ser sabedoria quando significa aprender com quem inspira. Mas copiar para usurpar, competir ou mascarar a própria mediocridade é apenas uma caricatura barata. E caricaturas, cedo ou tarde, viram piada.

Das intenções e dos danos do mimetismo

O mimetismo não é inocente. Quando ultrapassa a mera admiração ou o desejo de aprender com alguém, passa a ser instrumento de reescrita da realidade — um gesto estratégico para usurpar narrativas, redesenhar afetos e ocultar responsabilidades. Nesta segunda parte, descrevo com clareza quais são as intenções que movem quem imita de forma predatória e quais danos concretos esse comportamento causa — sobretudo quando se mistura com violência institucional e dolo.

I — Das intenções por trás do mimetismo

  1. Ocultar responsabilidades

    • Imitar falas, posturas ou sentimentos alheios permite a quem o faz desviar o foco de atos próprios. É técnica de camuflagem: enquanto ocupam a cena emocional do outro, desviam a atenção sobre suas omissões ou crimes.

  2. Confundir testemunhas e criar dúvida

    • Ao replicar memórias, frases e reações, o imitador produz uma narrativa paralela que, para quem chega de fora, pode parecer legítima. Essa duplicação deliberada gera incerteza e fragiliza testemunhos verídicos.

  3. Deslegitimar a vítima

    • Ao vestir-se com a linguagem da vítima — adotando seus “insights”, suas dores, sua postura — o imitador busca ocupar o lugar moral: transforma a vítima em uma figura improvável, pouco confiável, diminuindo a força de sua acusação.

  4. Controlar o imaginário público

    • O mimetismo é também ferramenta de engenharia social: cria impressões coletivas, viraliza versões convenientes e redefine reputações. A intenção é política (no sentido amplo): manipular percepções para ganhos práticos.

  5. Aprofundar o corte emocional

    • Copiar momentos íntimos — lutos, revelações, pequenas viradas espirituais — é um ato de violência simbólica. É uma tentativa de roubar o território íntimo da pessoa, deixando-a sem exclusividade sobre a própria dor.

      — Dos danos produzidos pelo mimetismo

  1. Erosão da verdade

    • Quando as palavras e os gestos de uma pessoa são clonados por outrem, a verdade factual perde contornos. Investigações, memórias e depoimentos ficam sujeitos à contaminação de versões paralelas.

  2. Revitimização contínua

    • A vítima sofre uma nova violência sempre que suas experiências são copiadas e reencenadas. Cada mimetismo é um revés: não cura, repete a ferida na praça pública e prolonga o sofrimento.

  3. Isolamento social

    • A confusão criada tende a afastar aliados e testemunhas. Amigos e conhecidos, sem conseguir distinguir o original da imitação, esmorecem ou duvidam — e a quem resta a tarefa de provar a autenticidade da própria vida?

  4. Instrumentalização judicial e administrativa

    • Em contextos em que documentos, relatos e aparências influenciam decisões (processos, perícias, sindicâncias), o mimetismo pode virar arma para forjar presunções contrárias à vítima — atrasando, silenciando ou invertendo responsabilidades.

  5. Destruição da autoridade moral da vítima

    • A repetição artificial de discursos íntimos corrói a autoridade de quem sofreu. A sensação pública passa a ser de “história duplicada”, reduzindo a empatia e facilitando a impunidade dos reais responsáveis.

  6. Dano relacional e patrimonial

    • Além do psicológico, o mimetismo pode provocar perdas concretas: rompimento de laços, afastamento de filhos, perda de oportunidades e até prejuízos econômicos quando usado para justificar esbulhos, apropriações ou fraudes.

    - Porque a intenção importa (e como prová-la)

A diferença entre imitação inocente e mimetismo malicioso está na intenção. É essa intenção — a repetição calculada, a consistência dos padrões e a coordenação com outros atos — que transforma uma “cópia” em crime simbólico ou instrumento de criminalidade. Para quem documenta, é fundamental demonstrar padrão:

  • frequência das cópias (quando e como reaparecem);

  • correspondência entre imitação e atos efetivos (por exemplo: cópia de narrativa seguida de falsificação documental, ocultação de provas, silêncio institucional);

  • existência de beneficiários diretos (quem ganha com a reescrita?);

  • contextos coordenados (mesmas frases em redes diferentes, uso de perfis distintos, reaparição de “memórias” idênticas).

O mimetismo predatório não é só falta de identidade: é ferramenta. Ferramenta para ludibriar, para desviar responsabilidades, para fabricar consensos falsos. Quando isso se mistura a omissão institucional ou a crimes reais — como mortes não esclarecidas, manipulações processuais ou apropriações patrimoniais — a violência se torna dupla: simbólica e prática.

Resistir exige três coisas simples e implacáveis: documentar, mostrar o padrão e não ceder ao impulso de responder na mesma moeda. A força da verdade está na consistência das provas. Transforme a cópia em evidência — e deixe que, no tempo certo, a justiça (a institucional ou a da memória coletiva) faça o resto.

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