Diretor de creche passou quatro anos na cadeia após condenação baseada em documentos de dois peritos, que foram punidos pelo Conselho Regional de Psicologia
Por bferreira
Publicado 21/02/2015
Rio - Paulo Barcellos é um homem com medo da rua. Aos 56 anos, mal consegue dormir. Só sai de casa para o que for estritamente necessário e precisa estar sempre alerta ao sensor da tornozeleira eletrônica. Sequelas dos quatro anos, 40 dias e nove horas que ficou em regime fechado cumprindo pena pela condenação em 2010 de abuso sexual contra cinco crianças de idades entre 4 e 6 anos.
Barcellos se sente marcado para sempre pelas acusações sofridas quando era diretor financeiro da Creche Gente Inocente, na Tijuca. Pelo processo, ao qual O DIA acompanhou nos últimos três anos, a sentença que o condenou a nove anos de prisão baseou-se nas únicas provas obtidas durante a investigação: os laudos psicológicos feitos por dois peritos, que também são policiais da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (Dcav). Dos nove anos, ele ainda precisa cumprir quatro no regime aberto. Barcellos ficou traumatizado coma prisão e só sai de casa quando é estritamente necessário
Devido às diversas contradições nos documentos, os peritos foram denunciados ao Conselho Regional de Psicologia (CRP) do Rio, em 2010. No final do ano passado, quatro anos depois da condenação, o CRP terminou de julgar os processos éticos abertos contra os psicólogos do caso e ambos foram punidos por unanimidade pelo conselho.
Artur de Oliveira sofreu censura pública. Já Emerson Brant, que diz ser o único a atuar como psicólogo em toda a Polícia Civil, teve o pedido de cassação do registro profissional aceito por ser reincidente nas infrações éticas. Ele recorreu, e a decisão precisa ser referendada pelo Conselho Federal de Psicologia. A punição contra Oliveira foi mantida. “Vamos esperar a confirmação da decisão do CFP para entrar com o pedido de revisão criminal”, explica Luiz Gustavo Faria, advogado de Barcellos.
A investigação conduzida pela Dcav durou três meses e se iniciou a partir de uma ocorrência registrada pelo pai de uma das alunas da turma do Jardim III. O relato do pai da menina de 5 anos era de que o diretor financeiro tinha colocado a mão dentro da calcinha da criança, na sala de aula. Dois dias depois, outra mãe registrou queixa semelhante. Na semana seguinte, outras três mães também foram à delegacia para acusar Barcellos de beijar suas filhas na boca.
As crianças passaram por exames de corpo de delito no Instituto Médico Legal e foram encaminhadas ao Serviço Voluntário de Psicologia da Dcav. Barcellos e uma funcionária acusada de presenciar as cenas prestaram depoimento. Os exames físicos deram negativo, mas os laudos feitos por dois psicólogos policiais da Dcav concluíram pelo abuso sexual. Os documentos foram a única prova contra Barcellos e o inquérito foi finalizado sem que o delegado sequer visitasse a escola.
Inconsistências técnicas e formais nas avaliações
Entre as contradições nos laudos apontadas pelo CRP, os problemas começam por erros primários, como confusão de nomes entre as crianças, e se estendem até a falta de apresentação das técnicas usadas. Para proteger as identidades, O DIA optou por nomes fictícios ao se referir às crianças.
Ao finalizar o laudo de Maísa, 4 anos, por exemplo, o psicólogo Artur de Oliveira usa texto semelhante à conclusão da menina Karina, 5 anos, também avaliada por ele. No entanto, troca a identificação das duas, escrevendo o nome de Karina no diagnóstico de Maísa. O parecer doC RP descreve ainda que o “relatório apresenta contradições, nega alterações de comportamento numa criança, porém diz que há sexualização da mesma”.
Elba da Rocha fechou a escola porque não aguentou as perseguições
Alguns problemas podem até ser entendidos por leigos. Elba da Rocha, diretora pedagógica da escola e mulher de Paulo, assinala que na avaliação de Karina feita por Oliveira, a aluna do Jardim III relata que os abusos aconteciam durante a aula na sala onde estudava e a menina cita entre as colegas molestadas o nome de Janaína — criança que não consta da lista de alunos. No relato sobre sua vivência na creche, Karina também lembra de nomes que não existem entreos estudantes matriculados.
Já Maísa, que diz que o diretor financeiro a beijava, ao falar dos professores da escola, cita um chamado “Tio Carlos” — que não consta da lista de funcionários. Sobre os laudos de Emerson Brant, é apontada a violação da privacidade das crianças, já que foi realizado um único parecer a partir da entrevista de três meninas. Além disso, o conselho critica a falta de apresentação das técnicas empregadas nas entrevistas e da descrição exata de como ocorreram as revelações dos abusos. O CRP assinala com preocupação que o profissional tira conclusões sobre o acusado sem tê-lo entrevistado. Para o conselho, “as entrevistas com os respectivos responsáveis pelas crianças parecem mais uma tentativa de confirmar a suspeita de abuso sexual do que a busca de evidências que de fato elucidem o que ocorreu entre o acusado e as crianças, nas dependências da escola. Vê-se que no relatório não consta qualquer indicativo de investigação.”
A escola aberta em 2007 tinha 75 alunos, dos quais 68 continuaram até o fechamento em 2011. “Tive que fechar porque não aguentava mais as perseguições”, conta Elba.
O peso do artigo 217-A é a tortura
Na prisão, Paulo Barcellos sentiu na pele o que é ser um detento acusado pelo artigo 217-A do Código Penal— que prevê a pena para quem cometeu estupro de vulnerável. Na carceragem da Polinter de Neves, em São Gonçalo, ele descobriu que não eram apenas histórias os relatos de tortura em presos que respondem por abuso sexual. Preso em casa às 5h50, Barcellos só foi levado para o sistema prisional à 1h30 da madrugada seguinte. “Cheguei à delegacia às 6h30 e fiquei até as 18h20, aguardando o carro da Polinter”, conta.
Barcellos diz que passou o dia sem comer em uma sala da delegacia, observando a discussão dos policiais sobre a sua transferência. “Um dizia que iame mandar para a Pavuna e outro retrucava, falando que deviam me mandar para Neves”, revela. O primeiro, segundo ele, alertava sobre os possíveis riscos de ir para Neves, enquanto o outro agente, mais exaltado, dizia: “Que se dane. Tem que morrer ainda dentro do carro”.
E, mesmo com ordem para ir para a Pavuna, como consta em sua ficha prisional, ele foi levado a Neves. Não sem antes passar seis horas percorrendo as mais diversas delegacias da capital. “Não sei o que é pior. Se a cela ou aquele camburão no calor de janeiro. A gente suando, desidratando, passando mal, sem água. O que me salvou foi uma goteira no teto no carro depois que caiu um temporal. Foi o que eu bebi”, lembra.
Ao descer do camburão em Neves, junto com um grupo de presos, foi recebido por cerca de dez policiais armados aos gritos de “cabeça baixa”, “não olha, não”. Em seguida, o grupo de detentos foi levado a um local chamado de “porquinho”. O sugestivo nome é usado para identificar uma cela pequena sem banheiro. “Lá dentro, mandaram tirar a roupa toda e me algemaram. Só eu. Foi quando comecei a ficar preocupado”, conta. Em seguida, alguém que ele não sabe identificar se era policial ou preso gritou: “Ô 217, vem aqui”.
Ele, então, recebeu ordens para baixar a cabeça e foi conduzido para outra cela, onde já havia vários presos. Paulo sentou no chão e em seguida alguém colocou um saco preto em sua cabeça. Durante mais de meia hora , ele foi violentamente agredido com chutes e socos em todas as partes do corpo.O exame de corpo de delito feito no dia seguinte demonstra duas costelas quebradas, hematomas nas costas, além de problemas no rins. “Urinei sangue quase um mês”, desabafa.
Não foi tudo. Ainda de capuz, ouvindo gritos de “estuprador safado” e “vou te arrebentar”, os agressores fizeram com que Barcellos vestisse novamente as calças e a cortaram rente à região do pênis. Nesse momento, os algozes pediram dinheiro para não matá-lo. Ele concordou em pagar. Mas o terror não acabou. Derepente, ele sentiu tocarem suas costas o que parecia ser um cabo de vassoura. Quando os agressores tentaram introduzir o cabo em seu ânus, ele gritou desesperadamente. Só naquele momento, foi socorrido por dois policiais que o colocaram em uma cela isolada e permitiram que ele ligasse para o advogado, no dia seguinte, para denunciar as agressões.
Processo sem fim
Do lado de fora da prisão, as acusações provocaram um terremoto na vida de Elba da Rocha. Ela conta que ao denunciar as contradições do caso ao MP e ao CRP, recebeu diversas ameaças de morte por telefone. A linha fixa de sua casa teve que ser desligada e ela trocou o número do celular três vezes.
Apesar da gravidade da situação, o casal recebeu apoio de 68 dos 75 pais de alunos da escola. Eles fizeram um abaixo-assinado a favor de Barcellos. O apoio ocorreu especialmente depois que três casais relataram que uma das mães que acusava Paulo dizia que “haveria uma boa indenização no final” e que “tudo estava acertado na delegacia”.
“Nunca tive dúvida que era mentira. Principalmente depois que me ligaram falando isso”, afirma Renata Martins, 37 anos. A filha dela também foi apontada como uma das vítimas de abuso no relato da menina Karina aos psicólogos. Ela, no entanto, disse que a filha negou qualquer problema na escola e não demonstrou nenhuma lesão ou diferenças de comportamento.
Renata e outras duas mães testemunharam em juízo sobre as ligações recebidas de uma das mães que denunciavam os abusos. Uma dessas testemunhas contou que chegou a ouvir essa mesma mãe dizer que “como só tinham meninas, estavam precisando de um menino”.
Ao longo do julgamento, a defesa solicitou perícia na escola, além de nova avaliação psicológica das crianças, pais e do próprio Paulo. Os pedidos foram negados pela juíza responsável pelo caso, Renata Videira. A defesa, então, contratou a professora Maria do Carmo Cintra Prado, coordenadora do Setor de Psicodiagnóstico da Unidade de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Uerj, para atuar como perita técnica para avaliação dos laudos da Dcav.
Ao analisar os laudos, a perita que trabalha na área desde 1982 alertou para os problemas citados agora pelo CRP. A juíza, no entanto, desconsiderou o parecer. Após a condenação, duas mães pediram indenização por danos morais em valores que variam entre R$ 20 mil e R$ 70mil.
Procurada, a juíza Renata Videira disse que formou convencimento pelos depoimentos e laudos psicológicos. A Polícia Civil somente informou que o caso foi relatado e enviado à Justiça. O psicólogo Emerson Brant concedeu entrevista para explicar como funcionava seu trabalho, mas, questionado sobre os processos no CRP, não retornou. Artur de Oliveira não foi localizado.
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