segunda-feira, 5 de julho de 2021

Biografia escrita por jornalista da Veja mostra José Dirceu “maior” que Luiz Inácio




Por Euler de França Belém


Ao contrário do que dizem petistas ortodoxos, e até do que sugere Otávio Cabral, o livro “Dirceu — A Biografia” acaba por fortalecê-lo em termos históricos. O ex-guerrilheiro é responsável pela metamorfose que levou Lula da Silva à Presidência da República
Resenha publicada em junho de 2013

O paradoxo de “Dirceu — A Biografia” (Record), do jornalista da “Veja” Otávio Cabral, parece ser este: pretende transformar o personagem em pó — a última frase do livro, “José Dirceu de Oliveira e Silva jamais chegou a lugar nenhum”, é demolidora —, mas o que consegue, ao fim de suas 363 páginas, é a construção da história de um político poderoso e decidido. Um líder, enfim. Talvez até mais do que Lula da Silva, que é mais político, matreiro como Getúlio Vargas, do que líder. Amigos e aliados de Dirceu começam a criticar com acidez o best-seller escrito pelo repórter¹ da revista da Editora Abril e a apontar erros mínimos para desqualificar a obra em geral. Dada a leitura radical, mais uma defesa do que uma leitura, deixam de perceber que, ao contrário do que pretende Otávio Cabral, o livro acaba por ser um elogio, ainda que indireto, do personagem principal da trama. O “anão” suposto pelo jornalista “termina”, ao final do ensaio biográfico — não se pode dizer que se trata de uma biografia exaustiva —, como uma espécie de “gigante”, aquele que, dotado de um pragmatismo exacerbado, percebeu a mudança dos ventos da história e contribuiu, de maneira decisiva, para a metamorfose de Lula da Silva. Sem Dirceu, o petista-símbolo teria se tornado presidente e teria escapado das teias da radicalidade petista, avessa a alianças com o centro político e, sobretudo, com a direita? Não sabemos, porque não é possível prever a história, mas é provável que, sem o homem de Havana no Brasil, Lula tivesse desistido da quarta disputa, em 2002, depois de três derrotas consecutivas — uma para Fernando Collor e duas para Fernando Henrique Cardoso (de brincadeira, pode-se que seu problema era com Fernandos).

O problema das biografias de oportunidade é que, para agradar os leitores, precisam apresentar um quadro amplo da vida de seu protagonista, porém, com ele vivo e com uma história não terminada, fica difícil apresentar uma conclusão. Não só. Quando se escreve em cima dos fatos, com as paixões muito vívidas, às vezes, especialmente quando o personagem é por demais contraditório (talvez todos sejam) e provoca amor e ódio na mesma proporção, nem sempre se consegue um retrato nuançado. Porém, ao se propor escrever um livro quase vingador, exibindo a ascensão e a queda de um político — destacando notadamente sua ruína —, Otávio Cabral, quem sabe por ser jornalista competente, daí a objetividade necessária na exposição dos fatos, que aqui e ali parece contradizer suas opiniões, no lugar de destruir, acaba por construir um Dirceu muito mais multifacetado e poderoso do que a imprensa costuma apresentar. Por incrível que pareça, embora os aliados do petista não concordem, Dirceu sai “maior” da biografia do, como insistem os petistas, “jornalista da ‘Veja’”.

Ao dizer que “José Dirceu de Oliveira e Silva jamais chegou a lugar nenhum”, Otávio Cabral desconstrói aquilo que, em quase 400 páginas, edificou com zelo de repórter preciso. Talvez seja possível dizer que o repórter é mais rigoroso do que o analista. Aquele que apresenta os fatos, arrolando-os de maneira em geral isenta (o termo mais preciso talvez seja objetividade) e metodicamente — e, ao contrário do que “pregam” os petistas radicais, apresentando dúvidas e reticências —, difere, algumas vezes, do intérprete conclusivo. Sua conclusão, ao contrário da que apresenta, poderia ser: “José Dirceu de Oliveira e Silva, um político de visíveis limitações, chegou longe demais”. A biografia é interessantíssima, muito boa mesmo, apesar de suas limitações, que não são do jornalista, e sim do fato de que Dirceu é mesmo um personagem enigmático, até camaleônico, que só aos poucos vai sendo decifrado. Como quase todo político de larga vivência — o petista está no cenário do país há pelo menos 45 anos —, Dirceu deixou pistas que, embora pareçam objetivas, às vezes não o são. Talvez sejam cascas de banana dispostas de modo a fazer o pesquisador escorregar e, especialmente, a não ter uma visão mais ampla dos fatos. Sua passagem por Cuba, na qual se tornou uma espécie de xodó de Fidel Castro e Alfredo Guevara, e sua vida escondida (sob disfarce) no Paraná, mesmo depois de várias entrevistas e do livro de Otávio Cabral, ainda são passagens nebulosas e que, por isso, demandam pesquisas mais exaustivas. Quanto ao “julgamento” do personagem não há mal nas interpretações do biógrafo, que talvez devesse relativizar algumas, apontando que falta esclarecer alguns pontos. A filósofa Hannah Arendt sugeriu que é preciso julgar sempre, e com rigor, os personagens históricos — em cima dos fatos e adiante. Aquele que não julga, talvez para não ser julgado, está mortíssimo. Julgar e comparar, em termos históricos e mesmo pessoais, são fundamentais… para esclarecer e iluminar.
Luiz Gushiken, Lula da Silva e José Dirceu | Foto:

Ao término da leitura, fica-se com a impressão de que Lula, apesar dos dois mandatos e da trajetória vitoriosa, tanto que contribuiu para eleger dois postes — Dilma Rousseff, a presidente da República, e Fernando Haddad, a prefeito de São Paulo —, e não Dirceu, é um personagem menor, indeciso, navegando ao sabor das circunstâncias e deixando o trabalho digamos mais “sujo” aos outros, para não sair contaminado. É provável que, quando for possível fazer uma avaliação histórica mais precisa, Lula da Silva se torne um personagem menor do que Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Ernesto Geisel — o general que matou a ditadura — e mesmo Fernando Henrique Cardoso? Pode ser que sim. Mas pode ser que não. Talvez se torne um personagem mais sólido se, tempos depois, for possível constatar que o avanço social, a incorporação dos pobres à economia de mercado, se deu mais devido às suas ações do que à expansão capitalista.

Antes de apresentar a história do petista, um comentário sobre o título “Dirceu — A Biografia”. Há algum tempo, a Editora Difel publicou o livro “Lênin — A Biografia Definitiva”, do notável historiador inglês Robert Service. No original, não há nada disso. Em inglês o título é “Lênin — Uma Biografia”. O motivo é prosaico: Lênin, embora tenha falecido em 1924, ainda é uma obra aberta. Como pesquisador criterioso, Service sabe que os arquivos soviéticos foram abertos apenas parcialmente e há informações relevantes sobre Lênin que precisam ser checadas e comparadas. Portanto, modestamente e embora sua biografia seja de fato excelente, Service optou por “uma” e não por “a” — e muito menos aceitaria, por ser um historiador consciencioso, a palavra “definitiva” como complemento. Otávio Cabral (ou a editora) optou por “Dirceu — A Biografia”, como se estivesse comparando-a com a que está sendo escrita por Fernando Morais. Por ser amigo de Dirceu — e seu defensor —, Morais, embora seja um pesquisador criterioso e autor de pelo menos uma biografia sensacional, “Chatô — Rei do Brasil”, sobre Assis Chateaubriand, o Cidadão Kane patropi, dificilmente terá independência para “julgá-lo”. Mesmo assim, por acrescentar a versão de Dirceu (que a tem apresentado de modo fragmentário), dará, possivelmente, uma sólida contribuição aos pesquisadores. Ninguém mais adequado para apresentar os “anos cubanos” de Dirceu do que Morais, darling de Fidel e Raúl Castro há anos. É o “nosso” Gabriel García Márquez.

Lula da Silva, Fidel Castro e, mais ao fundo, José Dirceu | Foto: Reprodução

Petistas ou dirceuzistas alegam que Otávio Cabral raramente menciona os nomes das fontes. Mas as informações, mesmo com fontes anônimas, são falsas? Com Dirceu vivo e, mesmo afastado do centro do poder, ainda influente no PT, e mesmo no governo federal, as fontes falariam em “on”? Dificilmente. Dirceu não quis atender o jornalista, mas várias fontes são apresentadas (entrevistas e perfis de Dirceu foram usados fartamente). E há, é claro, a indústria do processo. Entretanto, se Dirceu processar Otávio Cabral, estará cometendo um equívoco: o livro, insistamos, o engrandece, ao mostrá-lo o tempo todo no centro do poder, articulando e manipulando forças políticas de porte. Pode-se dizer que, de alguma forma, o poder passava mais por Dirceu do que por Lula.

A seguir, contemos a história de José Dirceu de Oliveira e Silva desde o começo.
Filho de udenista e Ronnie Von das massas

Dirceu nasceu a 16 de março de 1946, há 67 anos, em Minas Gerais. Seu pai, Castorino, era udenista. Aos 8 anos, Dirceu disse à mãe, Olga: “Um dia seu filho será presidente da República”. Menino, “amarrava barbante em rabo de cachorro, colocava bombinhas presas no rabo dos gatos”. Em 1961, quando aos 14 anos deixa Passa Quatro, “as professoras e as mães dos amigos comemoraram: ‘Estamos livres do Zé Dirceu’”. A fonte? O próprio Dirceu, no livro “Abaixo a Ditadura” (Editora Garamond, e não Garamont), escrito em parceria com Vladimir Palmeira.

Em São Paulo, vivendo com dificuldade, quase passando fome, Dirceu posiciona-se, desde cedo, contra a ditadura — indicando que o personagem não é vira-folha. Na PUC, onde cursava Direito, militava no Partido Comunista Brasileiro e desafiava os professores. Tornou-se presidente do Centro Acadêmico e defendia os estudantes com vigor. “Dirceu não gostava dos estudos. Brigava com professores, faltava às aulas daqueles que não tolerava”, conta Otávio Cabral.

Bonito, logo Dirceu revelou-se conquistador. O primeiro grande amor foi Iara Iavelberg, depois companheira de Carlos Lamarca. Às amigas, Iara escreveu: “Faltam a José Dirceu alguns dotes intelectuais. Mas não terá medo de dizer ‘eu te amo’”. No festival da Record de 1966, revelando seu caráter engajado e ausência de refinamento estético, Dirceu torceu, ao lada de Iara, por “Disparada”, de Geraldo Vandré, contra “A Banda”, de Chico Buarque. Iara acabou por deixá-lo, porque Dirceu a traía com frequência.

Antes de se tornar “guerrilheiro” (em Cuba é que ampliou sua militância guerrilheira), Dirceu foi preso, porque dois amigos italianos eram ligados à Ação Libertadora Nacional, a ALN de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira. Em 1968, presidente da União Estadual dos Estudantes, era o “principal líder estudantil do Estado” de São Paulo. O “Alain Delon dos pobres” e “Ronnie Von das massas”, desde aquela época, 1968, tinha aversão à imprensa. Mas comandava a massa. Era um líder amado e temidoMaça Dourada, a espiã que conquistou José Dirceu



Namorador inveterado, “não perdoava” as belas mulheres que estivessem ao alcance de seus olhos. Era um homem bonito e charmoso. Entre suas muitas conquistas estava Heloísa Helena Magalhães, que, depois, se revelou ser espiã do Dops, apelidada de Maçã Dourada. No Congresso da UNE em Ibiúna, Dirceu deveria ter saído consagrado como líder máximo, mas a polícia impediu sua realização e prendeu os estudantes.

Em 1969, com o sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, Dirceu foi colocado na lista dos que deveriam ser libertados. Antes, no Dops, “foi espancado, chutado e cuspido”.

Em Cuba, o líder estudantil se torna guerrilheiro de fato. Em 1970, é submetido a duro treinamento militar na selva, ao lado de 32 brasileiros. Ferido durante num deles, Dirceu, agora com o codinome Daniel, é apadrinhado por Alfredo Guevara. O brasileiro morou na casa de Guevara, que era homossexual e os maledicentes chegaram a dizer que formavam um casal — boato desmentido por Otávio Cabral, pois Dirceu gostava e gosta mesmo é de mulheres.

Guevara aproximou Dirceu de Fidel Castro e de seu irmão Raúl Castro, o chefão das Forças Armadas cubanas. Ao se especializar em questões militares, o brasileiro se tornou “homem de confiança dos” hermanos Castro, que o escolheram para “implantar um novo foco guerrilheiro” no Brasil. O historiador Luís Mir (autor de “A RevoluçãoImpossível”), citado por Otávio Cabral, sustenta que “suas opiniões eram vistas com desdém e as propostas que fazia, todas, eram invariavelmente derrotadas”. Mas, enquanto a vida dos demais esquerdistas brasileiros era difícil, Dirceu “tinha carro, bebia os melhores runs, fumava charutos Montecristo e vestia belas fardas”, anota Paulo de Tarso Venceslau. “A voz corrente na esquerda é de que era agente do G2, o serviço secreto cubano”, acrescenta Paulo de Tarso. O jornalista Fernando Gabeira corrobora: “Ele repassava ao governo [cubano] informações sobre o comportamento dos brasileiros”.

Para se proteger, Dirceu procurou entrar na ALN. Fidel e Raúl colocaram-no para “liderar” o chamado Grupo dos 28, Grupo Primavera e, depois, rebatizado de Movimento de Libertação Popular (Molipo). “Os outros 27 desconfiavam de que fosse agente de Fidel infiltrado. (…) Em um exercício noturno de sobrevivência no mar, tentaram afogá-lo.”


José Dirceu e Lula: o pacto faustiano deu certo durante algum tempo, mas o segundo acabou por devorar o primeiro, responsabilizando-o por ações que o beneficiaram

Para voltar ao Brasil, “fez uma cirurgia plástica que mudou sua face”. A operação foi feita por um médico chinês. Ao contrário do que dizem alguns de seus adversários, Dirceu realmente se empenhou em organizar a guerrilha, participou de um assalto, comprou armas para os companheiros. Mas o Molipo, que começou a enviar seus militantes para o Brasil “no final de 1970”, parecia não ter compreensão exata do que acontecia no país. A ditadura estava mais articulada e a guerrilha estava praticamente destruída. Quase todos os militantes do Molipo foram mortos por militares e policiais. Por que o Molipo foi tão prontamente devastado? Fala-se em delação, mas o que poderiam fazer 32 pessoas contra uma ditadura estabilizada, com forte apoio popular — dados o farto consumo e, mesmo, o medo do comunismo — e com amplos recursos financeiros e armamentos? Não há prova alguma de que Dirceu tenha delatado os colegas.

Dirceu volta para Cuba, mas o governo cubano o reenvia para o Brasil, em 1975. Esteve até em Rondônia. Percebendo que a guerrilha havia sido destruída, Dirceu esconde-se no Paraná, vivendo lá até a Anistia, no final da década de 1970. Mentiu para Clara Becker, sua mulher, para sobreviver. Ele vivia com nome falso.
Dirceu menosprezou o líder sindical Lula da Silva

No fim da década de 1970, José Dirceu volta à ativa, mas, apesar de instado por amigos e aliados políticos, como Frei Betto, não se mostra interessado em conhecer Luiz Inácio Lula da Silva. Porque não tinha apreço pelo movimento sindical. Em 1980, o dominicano apresentou os dois. “Em menos de meia hora de conversa, já aceitara o convite de Lula para participar da fundação do Partido dos Trabalhadores”, conta Otávio Cabral. Apesar do ciúme, um sempre achou que o outro queria o papel de ator principal, Dirceu e Lula aprenderam a conviver. “Lula, desde a primeira campanha, percebeu que precisava da capacidade de organização partidária de Dirceu, que viu na proximidade com o líder carismático, dono de uma oratória invejável, a grande possibilidade de crescer na política e na vida.” Lula foi derrotado na disputa pelo governo de São Paulo, em 1982.

Para controlar o PT, Dirceu criou a Articulação e, desde aquela época, início da década de 1980, entendeu que, para se fortalecer, precisava criar “pontes fora” do partido. Indicado pelo PT, integra a coordenação do movimento das Diretas Já. Em 1986 se elege deputado estadual e, “pragmático, avaliava que o PT só chegaria ao poder um dia se abandonasse o sectarismo e excluísse de seus quadros as correntes mais radicais”. Foi voto vencido.

Como deputado, pouco a pouco passou a ser uma das figuras mais influentes do PT, atacando os radicais que defendiam a luta armada e trabalhando para uma maior abertura de alianças no PT. Tornou-se tão bem-sucedido que Lula o convocou “para comandar sua campanha a presidente da República em 1989”. No segundo turno, Dirceu operou para atrair o peemedebista Ulysses Guimarães e o apoio do empresariado, mas Lula desautorizou-o, arrependendo-se mais tarde. Lula perdeu para Fernando Collor.

Em 1990, numa carreira ascendente, Dirceu foi eleito deputado federal. Na Câmara dos Deputados, tornou-se o darling da imprensa e contribuiu para a queda do presidente Fernando Collor. Tornou-se amigo do publicitário Duda Mendonça e do tucano Tasso Jereissati.

Em 1994, seguindo o PT e Lula, Dirceu desdenha o Plano Real. Chegou-se a cogitar uma chapa Lula (presidente) e Jereissati (vice), mas a cúpula tucana rejeitou-a. Candidato a governador de São Paulo, Dirceu ficou nervoso ao saber que Lula havia prometido apoiar Mário Covas se o PSDB indicasse o seu vice. O Real derrotou Lula para Fernando Henrique Cardoso. Dirceu e seu protegido Silvio Pereira “foram acusados de desviar recursos da campanha”. Ele procurou Lula e disse que não aceitaria qualquer punição do partido e disse que as mesmas empreiteiras que o bancaram financiaram a campanha nacional. Lula recuou e Dirceu foi protegido e se tornou presidente do PT. Mesmo assim, adiante, teria dito, aos berros: “Lula é o maior atraso da esquerda brasileira. Ele não tem formação política de esquerda. Ele é oportunista, só se cerca de pessoas que pode controlar. O Lula tem resistência à esquerda tradicional, à esquerda que militou na luta armada”.

Em 1997, depois de duas derrotas, Lula diz ao deputado Chico Alencar: “Cansei de rodar minha bolsinha esfarrapada por aí. Para ganhar eleição, vou precisar de aliança e de grana. Dei todo o poder para o Zé Dirceu arrumar isso. Falei: ‘Zé, articula e faz. Pode até contratar o Duda Mendonça. Não quero saber como você fez, só quero que a gente ganhe a Presidência’”. Em 1998, com Fernando Henrique Cardoso desgastado, Leonel Brizola sugeriu a derrubada de FHC, mas Dirceu encerrou a conversa: “Se é para botar o Marco Maciel, deixa o FHC mesmo”.

Realista, enquanto o PT fazia discursos bombásticos, o realista Dirceu dizia: “O PT não nasceu ortodoxo nem doutrinário. Se a esquerda insistir em apresentar um programa socialista, não vamos derrotar Fernando Henrique Cardoso”. Em 2002, ele conseguiu convencer “Lula a contratar Duda Mendonça”. A Carta ao Povo Brasileiro, para acalmar a sociedade e o mercado, foi uma ideia do ex-guerrilheiro.

Lula da Silva, José Alencar e José Dirceu: caminhando para o centro | Foto: Reprodução

Com carta branca, Dirceu foi responsável por três metamorfoses. Primeiro, domou o PT, tornando-o mais moderado. Segundo, com o auxílio de Duda Mendonça, contribuiu para que Lula se vestisse melhor, aparasse a barba e melhorasse sua linguagem. Terceiro, bancou na vice o empresário José Alencar, o que indicou ao empresariado que o PT não era mais o mesmo. Mas Lula, que não queria Dirceu sozinho, pôs o médico Antonio Palocci no jogo.

Ao se tornar pragmático, o PT começou a negociar apoio com dinheiro. O PL de Valdemar Costa Neto exigiu de 15 milhões a 20 milhões para apoiar Lula. José Sarney, o rei do Maranhão, e Antonio Carlos Magalhães, monarca da Bahia, também apoiaram o petista. Lula foi eleito presidente. A bolsinha não era mais esfarrapada. O ex-líder sindical pôs Dirceu para fazer o pacto com o “demônio” — as elites políticas e financeiras — e ele próprio negociou com os “anjos”, contaminando-se quase nada.
Negociação com o PMDB poderia ter evitado o mensalão, mas Lula vetou.

Michel Temer: negociação com o líder do PMDB talvez tivesse evitado o mensalão | Foto: Reprodução

Na montagem da base de apoio ao governo de Lula da Silva, mesmo antes da posse, José Dirceu conversou com o presidente do PMDB, Michel Temer, que exigiu os ministérios da Integração Nacional e de Minas e Energia — com “porteira fechada”. “Lula, precisamos resolver o problema do PMDB. Sem eles, nossa vida no Congresso vai ser complicada. A gente tem que fazer como o Fernando Henrique e dar os dois ministérios de porteira fechada para eles”, disse Dirceu. Lula replicou: “Não sei, não, Zé. Tenho medo desse PMDB nos dar dor de cabeça. Não tem outro jeito de fazer a maioria no Congresso?”. Depois, o presidente eleito acrescentou: “Você [Dirceu] precisa desfazer esse acerto com o PMDB. Eu não vou entregar nenhum ministério para eles”. Ciro Gomes e Dilma Rousseff ganharam os dois ministérios que deveriam ter sido ocupados por peemedebistas. “Isso vai dar merda”, disse Dirceu. Tinha razão.

Dirceu, que queria ser ministro da Fazenda, aceitou a Casa Civil e ampliou seu poder, praticamente montando um governo paralelo ao do presidente Lula. Eles começaram a se estranhar, mas precisavam um do outro. Haviam feito um pacto faustiano. Quando irritado, o petista-chefe dizia: “Foda-se o Zé Dirceu. Ele precisa entender que quem ganhou a eleição fui eu”.

De fato, Lula ganhou, mas a missão inglória de montar uma base parlamentar no Congresso passou a ser de José Dirceu. Não só. Com o apoio de Delúbio Soares, começou a reunir dinheiro para pagar as dívidas de campanha do PT e dos partidos aliados. Ao ser informado das ações, Lula dizia: “Resolva como você achar melhor, só não me crie problemas”.

No poder, com o PMDB inicialmente sem cargos, Lula tendo autorizado, Dirceu decidiu montar uma base parlamentar no Congresso com base em dinheiro obtivo por Delúbio Soares e Marcos Valério em bancos “amigos”, como BMG e Rural. O esquema pagava luvas de 300 mil, 500 mil e até 1 milhão e mais 30 mil reais por mês. PTB, PL e PP entraram na dança. Três deputados tucanos optaram por deixar o PSDB e filiaram-se ao PTB, para participar do mecenato político. Mais tarde, descoberto, o mensalão derrubou Dirceu e provocou sua cassação e condenação à prisão pelo Supremo Tribunal Federal.

Delúbio Soares: um dos aliados de José Dirceu na operação do PT | Foto: Divulgação

A rigor, Lula é o pai do mensalão, mas a herança maldita ficou mesmo para Dirceu, o pragmático que, ao final, foi “embrulhado” por aquele que, intelectualmente, desprezava. Lula, com o mensalão, ficou livre de Dirceu. Ele planejava que Antonio Palocci fosse seu sucessor em 2010, mas este envolveu-se num escândalo e Lula bancou Dilma Rousseff, que foi eleita.
A empreiteira Delta dobrou faturamento com apoio de Dirceu

Depois de “provar” que José Dirceu foi essencial para o PT conquistar o poder e que, mesmo errando com o mensalão, foi responsável pela montagem da base de apoio à governabilidade da gestão do presidente Lula da Silva, o biógrafo Otávio Cabral relata, no capítulo “O maior lobista do Brasil” — sem compará-lo a outros lobistas, para comprovar sua assertiva —, que o ex-guerrilheiro, cassado e afastado da linha de frente do governo federal, supostamente decidiu ficar rico.

Dirceu criou a JD Assessoria e Consultoria e começou a representar os interesses de vários empresários, como Carlos Slim, dono da Embratel e da Claro e um dos homens mais ricos do mundo. Só do bilionário mexicano teria faturado cerca de 10 milhões de reais. Em seguida, segundo Otávio Cabral, tornou-se “uma espécie de embaixador de Eike [Batista] na América Latina, abrindo portas e resolvendo problemas”. Eike pagou, avalia o biógrafo, 6 milhões de reais ao ex-guerrilheiro.

A Ongoing, empresa de comunicação portuguesa, se tornou o terceiro grande cliente de Dirceu. O objetivo era “construir no Brasil uma rede de TV, rádio, jornais e internet”. Pela operação, Dirceu recebia 80 mil reais por mês. A Ongoing chegou a comprar o “Jornal do Brasil”, no qual Dirceu escreve, mas o projeto não foi adiante. O “JB” só na internet praticamente deixou de existir.

Fernando Cavendish: com o apoio de José Dirceu, a construtora Delta dobrou seu faturamento | Foto: Ailton de Freitas / Agência O Globo

A Vale se tornou outro cliente de peso do escritório de Dirceu, que faturou 5 milhões de reais por um contrato de quatro anos. O presidente Lula começou a pressionar Dirceu, trabalhando para que não faturasse empresas ligadas ao governo. Dirceu não aceitou a pressão e continuou recebendo dinheiro. “Eu agora sou capitalista”, dizia o ex-guerrilheiro. Ele chegou a intermediar asilo político no Brasil para o oligarca russo Boris Berezovsky, mas não conseguiu.

A Delta Construtora se tornou cliente da JD Assessoria e Consultoria em 2009. “Em um contrato feito por meio de uma subsidiária, a Sigma Engenharia, [a Delta] pagava R$ 20 mil por mês para que Dirceu fizesse lobby no governo de modo a que a empresa conseguisse obras do PAC. Naquele ano, a Delta, do engenheiro Fernando Cavendish, receberia R$ 733 milhões do governo, o dobro do ano anterior.”

Em seis anos, de 2006 a 2012, Dirceu faturou cerca de 40 milhões de reais. O socialista se tornou, de fato, capitalista. Mas perdeu aquilo que mais ama — o poder — e deve perder a liberdade, o verdadeiro “oxigênio” do indivíduo.
Treze goianos são citados no livro sobre José Dirceu

Treze (número do PT) goianos são citados no Livro “Dirceu — A Biografia”, do jornalista Otávio Cabral: Carlinhos Cachoeira, Delúbio Soares, Demóstenes Torres, Eduardo Siqueira Campos (seu pai, Siqueira Campos, militou na política goiana), Enio Tatico, Hamilton Pereira (Pedro Tierra), Henrique Meirelles, Luciano (cantor), Marconi Perillo, Neyde Aparecida, Raquel Teixeira, Sandro Mabel (nascido em São Paulo, mas se fez como empresário e político em Goiás) e Zezé Di Camargo. O Estado de Goiás e Goiânia também são citados.

Carlinhos Cachoeira é citado duas vezes, às páginas 202 e 320. Na primeira, conta-se a história de como gravou-se dando dinheiro a Waldomiro Diniz, em 2004. “Ele pedia propina para si mesmo e dinheiro para a campanha eleitoral do PT. Em troca, prometia beneficiar Cachoeira em uma concorrência pública”, relata Otávio Cabral. Na segunda, o biógrafo diz que Lula “chamou” o ministro do Supremo Gilmar Mendes “para jantar e insinuou que deveria votar pela absolvição [de José Dirceu, José Genoíno e João Paulo Cunha] se não quisesse ser investigado pela CPI do Cachoeira”. Aqueles que queriam derrubar o governador de Goiás, Marconi Perillo, e o então senador Demóstenes Torres, do DEM, espalharam a informação, falsa, de que o ministro do STF havia viajado para a Alemanha com as despesas pagas pelo contraventor goiano.

Delúbio Soares é o goiano mais citado. Seu nome aparece em 31 páginas. O professor goiano, ex-tesoureiro do PT, era a pessoa encarregada de pagar as contas do PT e, também, de arranjar dinheiro, com o publicitário Marcos Valério, para aplacar a fome por dinheiro do PL de Valdemar Costa Neto, hoje mandachuva do PR², e de outros deputados do PL e do PP. José Dirceu o encarregou de pagar o publicitário Duda Mendonça. O empresário Jorge Gerdau Johannpeter, maior produtor de aço do Brasil, visitou Lula, quando este era presidente, para denunciar Delúbio, que o estaria pressionando para obter 1 milhão de reais para o PT. Lula convocou José Dirceu, o chefe político de Delúbio, e disse: “Segura o Delúbio. O Gerdau veio reclamar que ele está pegando pesado”. Segundo Otávio Cabral, “Dirceu prometeu advertir o subordinado mas nada fez”. Motivo: Delúbio era o homem que arranjava o dinheiro para pagar o mensalão, segundo o processo julgado pelo Supremo Tribunal Federal.

Na página 212, são arrolados os então deputados federais por Goiás Raquel Teixeira, do PSDB, e Enio Tatico, do PL. Otávio Cabral faz o relato de como o governador Marconi (amigo de Dirceu e inimigo de Lula, é apontado em cinco páginas) advertiu o presidente Lula, em 2014, sobre a existência do mensalão. Ao se encontrar com Lula, em Rio Verde, município do Sudoeste de Goiás, “Marconi faria uma grave denúncia: o governo estava pagando a deputados para que trocassem de partido e dando uma mesada para que votassem de acordo com os interesses do Palácio do Planalto. E ilustraria a acusação com dois casos concretos. A deputada federal Professora Raquel Teixeira, do PSDB, recusara uma proposta para se filiar ao PL em que receberia R$ 1 milhão à vista e uma mesada de R$ 30 mil. O convite fora feito pelo deputado Sandro Mabel, que dizia ter o aval de Dirceu. O outro caso era o do deputado Enio Tatico, que trocara o PSC pelo PL após aceitar os argumentos de Mabel”. Na página 247, repete-se a história, agora exposta por Roberto Jefferson (PTB), “de que Sandro Mabel tentara comprar dois deputados”. Otávio Cabral não apresenta a versão de Mabel e Tatico. Mabel sustentou várias vezes que não fez qualquer oferta de luvas de R$ 1 milhão e “salário mensal” de R$ 30 mil à ex-deputada tucana e Enio Tatico.

Na página 211, Otávio Cabral assinala que o deputado federal Miro Teixeira disse a Lula: “Presidente, eu fui nomeado para ser líder do governo, não para comprar deputado”. Segundo o biógrafo, Teixeira havia sido “pressionado por uma comitiva formada pelos deputados Valdemar Costa Neto (PL-SP), Sandro Mabel (PL-GO) e Pedro Henry (PP-PT). Queriam saber a quem deveriam recorrer para receber a mesada, ou o ‘mensalão’ — termo usado por Valdemar”.

O goiano de Anápolis Henrique Meirelles, ex-presidente do BankBoston e do Banco Central, é listado em quatro páginas. Otávio Cabral sustenta que Meirelles não era primeira opção de Lula para o BC. “Era a sexta opção e só chegou ao cargo porque todos os demais recusaram o convite.” Detalhe curioso: uma entrevista de Meirelles ao Jornal Opção, na qual disse que sabia como articular as finanças do país, foi examinada por Lula e equipe. Sabe-se que, ao escolhê-lo, Lula não consultou Dirceu. O biógrafo frisa que, publicamente, Dirceu elogiava Meirelles e o então ministro da Fazenda, Antônio Palocci. Privadamente, atacava-os. Chegava a incentivar o vice-presidente, José Alencar, a atacar a política econômica, sobretudo os juros altos.

Demóstenes Torres é citado apenas uma vez, à página 183. Otávio Cabral revela que, quando ministro-chefe do Gabinete Civil, Dirceu mantinha contato com o governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), e os então senadores Demóstenes (DEM) e Eduardo Siqueira Campos (PSDB-TO). O intermediário era o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, sócio do restaurante Piantella e dono de um requestado escritório de advocacia.

Eduardo Siqueira Campos é mencionado em quatro páginas. Na página 210, o autor do livro narra o encontro de Dirceu com os senadores Antonio Carlos Magalhães, Rodolpho Tourinho (PFL-BA), Roseana Sarney (PFL-MA) e Eduardo Siqueira Campos. Na página 213, contrariando Lula, o senador tocantinense defendeu a legalização do bingo no Brasil.

A deputada Neyde Aparecida (hoje, secretária da Educação da Prefeitura de Goiânia)³ ganha uma citação, à página 262. Quando o PTB pediu a sua cassação, “para fugir do assédio da imprensa e de políticos”, Dirceu mudou-se “para o apartamento da deputada Neyde Aparecida, do PT de Goiás, em um prédio próximo ao seu. Só saía de lá para ir à Câmara, sempre pela garagem, para que o esconderijo não fosse descoberto”.
Chefão do PT “passou” uma noite com bela garota do Big Brother

José Dirceu, maior líder da história do PT, é apontado como mulherengo no livro “Dirceu — A Biografia”, do jornalista Otávio Cabral. Ele lista 16 mulheres — a maioria pelo nome. Mas há muito mais, sugere o biógrafo, que apresenta o petista com paquerador inveterado. Quando foi anunciado que ficaria preso, devido a condenação pelo mensalão, perguntou logo se teria direito a sexo. A história mais caliente está contada no capítulo “Um presente entre duas crises”, que começa à página 207. Em setembro de 2004, um ministro ligou para o chefe da Casa Civil, espécie de primeiro-ministro sem parlamentarismo: “Zé, você vai ficar em Brasília amanhã à noite? Tenho que te entregar aquele presente que prometi”.

Agradecido por ter se tornado ministro com o apoio de José Dirceu, o político contratou por R$ 30 mil uma garota que havia participado do Big Brother Brasil e posado nua para uma revista masculina (o biógrafo não informa se a “Playboy”, a preferida das participantes do “BBB”, ou a “Sexy”, a prima classe média da outra publicação). O “contrato” era só por uma noite. Depois da primeira pergunta, o ministro-cafetão ligou: “Seu presente chegou. Está na suíte presidencial do Hotel Naoum. É só chegar lá e bater na porta”. Otávio Cabral conta que “Dirceu seguiu as instruções e encontrou a inesquecível lembrança deitada na cama. Passaria as duas horas seguintes na suíte. Na saída, enquanto esperava seu motorista, telefonou ao ministro para agradecer: ‘Cara, você é maluco! Que presente foi esse? Foi a melhor coisa que eu ganhei na minha vida!’”

Entre as mulheres que amaram Dirceu estão: Maria Aparecida Sá de Castelo Branco, uma dançarina chinesa, Iara Iavelberg (que achava Dirceu inculto e, depois, apaixonou-se por Carlos Lamarca), a dançarina espanhola Ivone, Heloísa Helena Magalhães (a agente do Dops “Maçã Dourada”), Silvia, Clara Becker (com quem ficou casado durante anos, sem revelar que era o Dirceu guerrilheiro; adotou outro nome, Carlos Henrique Gouveia de Melo, e iludia o povo de uma cidade do Paraná), Suzana Lisboa, Miriam Botassi, Maria Ângela da Silva Saragoça, uma mulher casada, Maria Rita Garcia de Andrade, Evanise Santos, uma empresária paulista (que se apaixonou pelo Dirceu ministro; ela disse: “Eu amo esse homem” e acrescentou: “Se você perder o mandato e ficar sem emprego, pode deixar que eu te sustento. Conte sempre comigo”) e Simone. “Além da política, só as mulheres o tiravam do sério”, registra o livro.
Notas

¹ Otávio Cabral não trabalha mais na revista “Veja”.

² Agora é PL.

³ Neyde Aparecida não é mais secretária da Educação da Prefeitura de Goiânia.

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