sábado, 5 de junho de 2021

ESTADO DE DIREITO: Afinal, as CPIs podem convocar chefes do Poder Executivo?


Da possível afronta aos princípios do pacto federativo e da separação dos poderes

LUIZ CARLOS SANTOS JUNIOR
04/06/2021 
CPI da Pandemia / Crédito: Marcos Oliveira/Agência Senado

Tendo em vista a CPI da Covid, a qual vem sendo exaustivamente noticiada nas mídias, constatou-se a existência de requerimentos a serem apreciados com o objetivo de convocar governadores e prefeitos, chefes do Poder Executivo de outras unidades da federação.

Os requerimentos justificam-se devido à finalidade da CPI, que consiste na apuração das ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil, em especial no agravamento da crise sanitária no Amazonas, bem como ações ou omissões cometidas por administradores públicos federais, estaduais e municipais no trato com a coisa pública durante a vigência da calamidade originada pela pandemia, limitadas apenas quanto à fiscalização de recursos da União repassados aos demais entes federados.

Tal limitação da fiscalização da atuação de gestores estaduais e municipais no uso de recursos provenientes da União, busca resguardar o pacto federativo, eis que é vedado às CPIs instaladas na esfera federal a investigação de assuntos de interesse regional ou local, devendo respeitar a atividade persecutória de cada ente da federação, mantendo a independência do Poder Legislativo de cada um dos domínios parcelares em fiscalizar a gestão da coisa pública do ente federado do qual faça parte[1].

Destarte, da análise dos requerimentos convocatórios, infere-se que estes não indicam em que condições as autoridades serão ouvidas, se na qualidade de indiciadas, testemunhas, depoentes, o que inviabiliza a avaliação da participação pelos convocados, quanto à obrigatoriedade da sua participação e de se pronunciar sobre todos os questionamentos realizados.

A existência de categorias diferenciadas de convocados pode ser observada nos artigos abaixo colacionados da Lei nº 1.579, de 18 de março de 1952, in verbis:

Art. 2º – No exercício de suas atribuições, poderão as Comissões Parlamentares de Inquérito determinar diligências que reputarem necessárias e requerer a convocação de ministros de Estado, tomar o depoimento de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, ouvir os indiciados, inquirir testemunhas sob compromisso, requisitar da administração pública direta, indireta ou fundacional informações e documentos, e transportar-se aos lugares onde se fizer mister a sua presença.

Art. 3º – Indiciados e testemunhas serão intimados de acordo com as prescrições estabelecidas na legislação penal.

§ 1º – Em caso de não comparecimento da testemunha sem motivo justificado, a sua intimação será solicitada ao juiz criminal da localidade em que resida ou se encontre, nos termos dos arts. 218 e 219 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal.

§ 2º – O depoente poderá fazer-se acompanhar de advogado, ainda que em reunião secreta.

Art. 4º – Constitui crime:

[…]

II – fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, tradutor ou intérprete, perante a Comissão Parlamentar de Inquérito:

Nessa vereda, imprescindível que as convocações contenham a qualificação com a qual essas autoridades serão ouvidas, com o fito de se definir as regras que regerão uma possível participação perante a CPI, porquanto ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, além de infringir o princípio do devido processo legal, aplicável as CPIs vez que estas possuem poderes próprios das autoridades judiciais. Nessa direção é a jurisprudência da Corte Constitucional:

“Como tenho afirmado em casos anteriores, ao conferir às CPIs ‘os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais’ (art. 58, § 3º), a Constituição impôs ao órgão parlamentar as mesmas limitações e a mesma submissão às regras do devido processo legal a que sujeitos os titulares da jurisdição. Entre umas e outras, situam-se com relevo as prerrogativas elementares do exercício da advocacia, outorgadas aos seus profissionais em favor da defesa dos direitos de seus constituintes. Esse o quadro, defiro, em termos, a liminar, para determinar à autoridade coatora que assegure aos advogados dos inquiridos pela CPI, nas sessões que vem realizando no estado de Alagoas, o exercício regular do direito à palavra, na conformidade do art. 7º, X e XI, da Lei 8.906/94.” (MS 23.684-MC, rel. min. Sepúlveda Pertence, decisão monocrática, julgamento em 4-5-2000, DJ de 10-5-2000.)

Ademais, em que pese a existência de requerimentos a serem apreciados para convocação de chefes do Poder Executivo para prestar esclarecimentos, observa-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da decisão monocrática proferida pelo ministro Marco Aurélio no Mandado de Segurança nº 31.689 MC/DF, assegurou como ato legítimo a um governador de Estado, a recusa a comparecer à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito instaurada pelo Congresso Nacional.

Valendo-se de uma interpretação sistemática do Texto Constitucional, em razão da forma federativa do Estado como cláusula pétrea e como consequência da autonomia político-administrativa de estados e municípios, o ministro filiou-se a tese da impossibilidade de as comissões parlamentares inquirem autoridades estaduais e municipais de quaisquer dos poderes.

Como decisão liminar, não aprofundou maiores fundamentações e especificações se a impossibilidade se refere às autoridades estaduais e municipais em sentido amplo ou apenas a chefes do Poder Executivo.

A esse respeito, advoga-se que a restrição de convocação por Comissão Parlamentar de Inquérito limita-se aos chefes do Poder Executivo, pois a Constituição e a legislação que regulamenta os poderes das Comissões assim não previu, diferentemente do que preconizou expressamente para ministros de Estado e, por simetria, para secretários estaduais e municipais[2][3].

Nessa perspectiva, ressalta-se que não se trata de omissão legislativa pura e simples, mas tais normas jurídicas estão alinhadas ao postulado da separação dos poderes, também cláusula pétrea, porquanto não há qualquer subordinação entre o Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, de forma que não deve haver prevalência de um poder sobre o outro.

Desta sorte, as CPIs de âmbito federal não podem convocar o presidente da República, sendo o mesmo raciocínio empregado para as CPIs estaduais e municipais quanto a impossibilidade de convocação de governadores e prefeitos, pois além de não haver previsão normativa para tal prerrogativa, conforme dito alhures, afrontaria o princípio da separação dos poderes.

Desse modo, mais gravoso ainda quando se cogita a possibilidade de uma CPI federal convocar chefes do Poder Executivo de estados e municípios, pois além de violar o princípio da separação dos poderes afronta ainda o princípio do pacto federativo, sob pena de incidir em uma ingerência indevida, por via indireta, na autonomia das demais entidades políticas.

Do exposto, infere-se que os requerimentos da CPI que visam convocar chefes de Poder Executivo carecem de amparo legal, jurisprudencial e doutrinário, o que não significa que estas autoridades estão fora do controle externo exercido pelo Congresso Nacional dos recursos repassados pela União no combate à pandemia, o qual conta com o auxílio do Tribunal de Contas da União, possuindo a prerrogativa de requerer a realização de inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira orçamentária, operacional e patrimonial, em detrimento de administradores públicos federais, estaduais e municipais na utilização de recursos repassados pela União.


[1] ACO 1271-RJ, STF, rel. min. Joaquim Barbosa, noticiada no Informativo 578, STF.

[2] CF, Art. 58. § 2º – Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe: […] III – convocar Ministros de Estado para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições; […]; V – solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão;

[3] Regimento Interno do Senado Federal, Art. 148 – No exercício das suas atribuições, a comissão parlamentar de inquérito terá poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, facultada a realização de diligências que julgar necessárias, podendo convocar Ministros de Estado, tomar o depoimento de qualquer autoridade, inquirir testemunhas, sob compromisso, ouvir indiciados, requisitar de órgão público informações ou documentos de qualquer natureza, bem como requerer ao Tribunal de Contas da União a realização de inspeções e auditorias que entender necessárias.

LUIZ CARLOS SANTOS JUNIOR – Advogado, mestrando em direitos sociais e processos reivindicatórios, especialista em direito civil e proce



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