José Augusto Guilhon Albuquerque
DURANTE A MAIOR PARTE de sua existência a ONU cumpriu papéis que derivavam diretamente da ordem internacional resultante da Guerra Fria. Entre suas principais funções estava a de constituir um fórum de convivência pública entre as duas superpotências. Nele, os EUA e a URSS, diretamente ou por intermédio de seus aliados, protagonizaram a bipolaridade que caracterizou o período, vivendo momentos de rivalidade e confrontação, mas também de cooperação.
A notável expansão das Nações Unidas em organizações setoriais, comissões especializadas, conferências etc.; a universalidade de sua agenda; o constante aumento do número de seus Estados-membros, indicam o quanto a dimensão cooperativa sobreviveu, apesar de tudo, ao caráter polarizado da Guerra Fria. Ao contrário, todas as tentativas de torná-la um instrumento para a derrocada de um dos lados, ou para aprisionar ambas as superpotências à chantagem dos não-alinhados, conheceram um sucesso apenas mitigado. De modo que é possível sustentar a hipótese de que a ONU, no período da Guerra Fria, manteve-se essencialmente a serviço da mútua contenção das superpotências. Nesse sentido, terão podido avançar os temas da agenda não conflitante com os interesses de uma ou de ambas as superpotências, prevalecendo o impasse com relação aos temas ou conflitos cuja resolução implicasse, ao contrário, alterar o equilíbrio existente entre elas.
Sendo verdadeira esta hipótese, não será difícil entender por que o sucesso das nu numa ordem internacional bipolarizada aparece como fracasso. Por um lado, quanto mais a agenda de temas e conflitos capazes de romper a estratégia de mútua contenção fosse neutralizada, mais bem sucedida teria sido a Organização, porém, maior seria a frustração resultante entre aqueles que não se sentissem diretamente concernidos pelo risco de ruptura da contenção. Neste caso poderíamos incluir tanto os que apostavam mais na confrontação do que na mútua contenção, quanto aqueles que se julgavam beneficiários de um direito de chantagem contra os dois lados.
Por outro lado, quanto mais avançasse a agenda de temas não-sensíveis e o equacionamento de determinados conflitos, isto é, aqueles cuja resolução não era suscetível de alterar o equilíbrio bipolar, maior seria também a frustração dos que esperassem resultados relevantes, já que tais temas e conflitos eram resolvidos na proporção direta de sua irrelevância para a ordem internacional. É preciso frisar que, na ordem polarizada da Guerra Fria, todos os temas e conflitos são potencialmente politizáveis e suscetíveis de polarização, tornando ínfima a margem de irrelevância para a estratégia de mútua contenção, por mais que tais temas e conflitos pudessem ser vitalmente relevantes para setores consideráveis da humanidade.
Ao avizinhar-se o final da década de 80 e, com ela, da Guerra Fria, esse quadro tende a tornar-se menos suportável por diferentes razões, dentre as quais gostaria de destacar alguns aspectos. Em primeiro lugar, a estratégia de contenção da expansão do adversário, em que estavam engajadas ambas as superpotências, passou a incluir uma dimensão crescente de cooperação direta, que avançou rapidamente e prescindiu das nu. Isso provocou um sentimento de exclusão não apenas entre países não alinhados, como em aliados secundários e até entre os principais aliados de ambas as superpotências. Prevaleceu, no entanto, o sentimento oposto, isto é, de que o aumento da cooperação redundaria nos chamados dividendos da paz, entre os quais se incluiria, além das hipotéticas transferências orçamentárias provenientes da redução dos gastos com defesa e segurança, maior capacidade resolutiva com respeito à agenda internacional.
Entretanto, os dividendos da cooperação nos campos da defesa e da segurança, em termos de custos de informação e de transação, não fluíram para outros campos tão naturalmente como se poderia esperar. Assim, por exemplo, a considerável redinamização do Conselho de Segurança não correspondeu a um aumento da eficiência no tratamento da agenda não-relativa à defesa e à segurança, particularmente no que diz respeito à Assembléia Geral.
Em conseqüência, a agenda continuou se expandindo ao mesmo tempo em que aumentava a expectativa de resolução. A eficiência no tratamento da agenda, entretanto, não somente não aumentou, mas pode ter diminuído. De fato, a necessidade de resolução das questões não diretamente relacionadas com defesa e segurança das superpotências diminuiu, à medida em que a probabilidade de tais questões se tornarem um risco para a paz mundial reduziu-se drasticamente.
Além disso, a agenda também cresceu devido a fatores autônomos. O principal deles é a transnacionalização, fenômeno permanente na história do mundo civilizado, mas que se acelerou e tomou dimensões globais nas últimas décadas. A transnacionalização é a propriedade que têm certos fenômenos de projetar seus efeitos através das fronteiras nacionais. Sua generalização e aceleração vertiginosa, que a tornam instantânea para todos os efeitos práticos, golpeiam profundamente as prerrogativas dos Estados nacionais como atores exclusivos das relações internacionais.
À transnacionalização de determinados efeitos das atividades econômicas e sociais, corresponde hoje a transnacionalização dos processos de formação de opinião pública e de organização de interesses e circulação de idéias. Com isso, os Estados não somente perderam o monopólio da definição da agenda internacional mas, em grande, parte esta é hoje determinada pela opinião transnacional, no sentido de que seus temas e idéias, quando não avançados por organizações e movimentos não-governamentais, só prosperam ao contar com seu beneplácito.
Esse conjunto de circunstâncias contribuiu para simultaneamente expandir a agenda das nu e inflar as expectativas com relação ao seu papel, sem que a isso correspondesse um aumento proporcional de sua capacidade de resolução. Precipitou-se, assim, uma grande insatisfação com a Organização, tanto em seu aspecto político quanto administrativo. Desde a década de 80 essa insatisfação se manifestou em termos de uma demanda de reforma. Quanto à necessidade de reforma, o consenso é amplo, mas aí também ele cessa. Quanto ao que reformar, com quais objetivos e com que extensão, tudo está sujeito a divergências de fundo.
Parte significativa dessa indefinição deve-se ao fim da Guerra Fria, e à indefinição sobre a função que as nu deveriam desempenhar no novo contexto. Isto, a meu ver, coloca um problema intransponível, já que nos encontramos em um período de transição, de uma ordem internacional polarizada e dominada pela estratégia de mútua contenção entre as superpotências, para um contexto cujo ordenamento ainda não está dado. Nesse sentido, a conclusão óbvia é de que seria prematuro, enquanto uma tal nova ordem não se materializar, definir as bases para uma reforma de fundo da Carta das Nações Unidas, isto é, uma reforma que implique a redefinição do seu papel na ordem mundial.
Por isso mesmo, meu objetivo aqui não é o de discutir um novo perfil para a ONU na nova ordem internacional que se desenha mas, antes, o de examinar alternativas de reordenamento das relações internacionais e, dentro delas, o papel que as nu poderiam desempenhar.
Alguns aspectos do atual período de transição devem ser considerados, à medida em que apontam possíveis limites para o desenvolvimento dessa mesma transição. Três deles vêm sendo por mim ressaltados em diversos contextos e publicações: trata-se dos fenômenos de despolarização, de dissociação hegemônica e de transnacionalização, este último já abordado.
Os dois primeiros resultam da forma como se desfez a chamada bipolaridade que determinava o modo de ordenamento das relações internacionais na Guerra Fria. O mundo em que vivemos na maior parte deste século foi um mundo bipolarizado ou, mais precisamente, de hegemonia polarizada. Dois protagonistas exerceram, entre o final dos anos 40 e o final dos anos 80, uma hegemonia completa sobre pólos opostos, no conjunto das dimensões que importam para descrever a ordem mundial. Assim, uma polaridade basicamente política ou estratégica, entre os EUA e a URSS, dividia os Estados em economias opostas, formas opostas de organização da sociedade, ideologias e valores opostos e excludentes.
Longe de redundar em monopolaridade, multipolaridade ou outros atentados ao vernáculo, a transição pela qual estamos passando resultou na persistência de apenas uma superpotência com recursos globais de liderança política e supremacia militar, os EUA. Do ponto de vista econômico, entretanto, não somente a única superpotência restante já não detém a primazia da competitividade, mas a compartilha com um grupo de países, sem cuja cooperação, nem mesmo sua supremacia militar poderia ser exercida em caráter permanente.
Como vemos, portanto, nem os EUA constituem um pólo político e militar, nem o fim da Guerra Fria resultou na criação de um novo pólo oposto aos americanos, processo que, se não pode ser afastado a longo prazo, tampouco se encontra delineado no horizonte visível. Por outro lado, ainda, as potências capazes de rivalizar com os EUA no plano econômico não constituem um pólo oposto à superpotência em qualquer sentido da palavra, nem em termos políticos e militares, nem em termos comerciais, nem em termos de organização da economia, nem em termos ideológicos ou de valores.
Menciono estes dois últimos campos - da ideologia e dos valores - apesar da hipótese de Samuel Huntington a respeito do conflito entre civilizações como sendo o princípio que determinaria cooperação e conflito na nova ordem mundial. Quaisquer que sejam as vantagens e limitações dessa hipótese, que são ambas inúmeras, ela não implica uma polarização do tipo da que caracterizou a Guerra Fria. Ao contrário, a oposição civilizacional apontada por Huntington teria caráter excludente, prevalecendo sobre as demais diferenças e semelhanças, políticas, ideológicas ou econômicas, porém, na medida que não está associada a elas, mas as cruza, não atrairia tais diferenças e semelhanças em direção a pólos igualmente opostos e excludentes de organização da economia e da sociedade.
É essa situação que chamo despolarizada. À hegemonia dissociada correspondem dois aspectos implícitos no quadro exposto. Por um lado, a perda da supremacia econômica restringe a capacidade dos eua para tornar a liderança política e militar em hegemonia. Ao mesmo tempo, a persistência da liderança política e militar compromete, em função dos compromissos globais que ela implica, sua capacidade de recuperar a competitividade econômica. Por outro lado, as potências capazes de rivalizar com a superpotência americana em termos comerciais e financeiros não parecem dispostas a pagar os custos da liderança política e da capacidade de decisão militar que uma disputa pela hegemonia global poderia implicar.
Gostaria de acrescentar aqui outro fenômeno, este com repercussões maiores na ordem da percepção, embora com considerável impacto sobre a realidade: trata-se do que poderíamos chamar de descontenção. Um breve recuo ao contexto da Guerra Fria se impõe para melhor ilustrar o ponto de vista que estou defendendo.
Que a estratégia da mútua contenção presidia a atuação externa das duas superpotências, não parece sujeito a controvérsias. Menos clareza subsiste, entretanto, sobre o objetivo dessa estratégia. Para uns, ela estava a serviço de um princípio, para outros, a serviço de interesses econômicos.
Para muitos eram as identidades e oposições ideológicas que inspiravam a cooperação e provocavam o conflito. Entre estes inclui-se Huntington, para quem tal papel caberia, hoje, às identidades civilizacionais ou, mais precisamente, religiosas. Outros tantos atribuem à necessidade de expansão dos mercados a lógica excludente que levou à hegemonia polarizada.
Depois que o fim da Guerra Fria eliminou consideravelmente a barreira retórica que envolvia o estudo das relações Leste-Oeste, tornou-se evidente que nem o interesse econômico nacional, nem os princípios ideológicos, tais como a defesa da democracia, da liberdade dos povos, ou dos valores cristãos, prevaleceram contra os interesses políticos implicados na contenção da expansão do bloco rival. Com efeito, enquanto os exemplos de sacrifício do interesse econômico nacional, ou dos princípios e valores de cada uma das superpotências podem ser facilmente enumerados, não se conhece caso em que o objetivo da contenção da expansão do bloco oposto tenha sido sacrificado ao interesse econômico nacional ou a princípios e valores de uma das superpotências. De tal maneira que se pode dizer que a resultante geral da mútua contenção era a estabilidade das relações internacionais e, particularmente, do equilíbrio de poder existente entre as duas superpotências.
Se tal era a resultante, isto equivale a dizer que, qualquer que fosse a motivação - seja em termos de interesses ou de princípios - que deu origem à estratégia de mútua contenção, o objetivo efetivamente atingido foi a estabilidade do sistema de relações internacionais. Afirmar ter sido a estabilidade o objetivo efetivamente atingido não quer dizer que, em determinadas circunstâncias, um lado não obtivesse sua própria expansão, como ocorreu com a União Soviética em Cuba, expansão que, no entanto, permaneceu restrita ao objetivo geral de contenção da expansão do adversário.
Com o desaparecimento da ameaça representada pela expansão do adversário, a estratégia de mútua contenção perdeu sua razão de ser. E, com ela, a consciência da ameaça à paz mundial representada pelo risco de instabilidade das relações internacionais. O que chamo descontenção é essa espécie de euforia que acometeu parte das lideranças e da opinião internacional: malcomparando e parafraseando Nietzsche, "se o Diabo não existe, tudo é permitido".
O que chamo descontenção é bem-representado pelo fato de que não se tenha notícia de um momento sequer de consideração dada à idéia de manter-se a estabilidade das relações internacionais como o interesse vital comum das nações, capaz de erigir um sistema global de segurança coletiva e redefinir as funções das nu para além da Guerra Fria. Em comparação, quanta tinta já não se gastou em tentativas de justificar o reordenamento das relações internacionais em função, não de interesses vitais, mas de princípios, como a democracia, o mercado, os valores da civilização cristã, o desenvolvimento etc.
Para tanto, contribuiu o forte impulso principista representado pela crescente capacidade da opinião transnacional de influir na formação da agenda global. Como os movimentos e organizações transnacionais são o oposto dos grupos de pressão clássicos, isto é, tendem a formar-se em torno de fins abstratos, e não de interesses imediatos, sua agenda é uma declaração de princípios, e sua índole ativista.
Dentro desse quadro, gostaria que permanecesse como contribuição à reflexão de hoje a consciência do risco que o avanço de uma agenda ativista e principista pode representar para o interesse nacional e a segurança global, quer na definição da grande estratégia das principais potências, quer na do papel das nu. Qualquer que seja o princípio adotado, dentre os que têm aflorado na agenda transnacional - da preservação ambiental à solidariedade humanitária, passando pelo ativismo na ampliação da democracia - levará inexoravelmente a um mundo intervencionista, beligerante, inseguro.
Num tal mundo, dependendo do princípio adotado e da premência do ativismo, longas seriam as listas de candidatos à intervenção. E a China estaria em todas elas. Dentre os menos votados, o Brasil provavelmente disputaria inúmeros quesitos, desde o risco ambiental, à violência contra menores, passando pela pobreza e pelo tráfico. Mesmo no quesito abertura do mercado, em que o país se tem esmerado ultimamente, sua inclusão na lista de espera, em decorrência da volatilidade de suas políticas, seria mais do que certa.
A escolha dos dois países é proposital porque pode proporcionar um bom teste para qualquer hipótese de reordenamento das relações internacionais. Qualquer princípio que exclua a China, ou que faça dela alvo de ingerência, pode constituir um impulso vigoroso na direção de uma nova polarização, sem falar no risco imediato de confrontação. Qualquer princípio que exclua o Brasil, ou o torne alvo de ingerência externa aberta, dificilmente poderá ser aceito como convergente com o interesse nacional. Isso deveria valer para qualquer país, mas obviamente se deixa ver melhor quando se trata do nosso.
Assim, tudo se passa como se devêssemos buscar um reordenamento das relações internacionais, cujo objetivo - além de ser minimalista no sentido de estreitar e não de estender a lista de princípios considerados - seja construído a partir do interesse vital dos Estados. Se assim for, o mais indicado, no que diz respeito a uma reformulação da Carta das NU, será a adoção de uma agenda igualmente minimalista, voltada para esse objetivo estratégico, centralizado no Conselho de Segurança e na Assembléia Geral, que assim deixaria de ser o fórum universalista, retórico e consideravelmente inoperante em que se transformou.
Quanto à ampla gama de questões setoriais e à expansão de direitos resultante da transnacionalização, nada impede que continuem florescendo fóruns paralelos, desde que rigorosamente subordinados ao objetivo estratégico central da Organização. Tais fóruns jamais pecarão demasiado por irrelevância. Mas poderão pecar, ao contrário, se se tornarem instrumentos relevantes de neutralização ou de reversão do objetivo central do sistema. Tal objetivo deveria ser, a meu ver, o mesmo da Guerra Fria, isto é, a estabilidade da ordem internacional.
Por estabilidade da ordem internacional estou entendendo não somente a ausência de ruptura da legalidade vigente nas relações internacionais bilaterais e multilaterais, como também a ocorrência de alterações consensuais ou negociadas dessa legalidade. Por corolário, estariam incluídos nesse escopo a vigilância sobre aqueles elementos que sabidamente constituem fatores determinantes de instabilidade externa e, em primeiro lugar, a instabilidade política doméstica. Aí estariam incluídos, portanto, muitos dos fenômenos transnacionais que hoje aspiram à função de reordenar as relações internacionais, tais como os grandes riscos ambientais, sociais e econômicos - como por exemplo o risco que a volatilidade dos capitais provoca para as economias nacionais - sempre da ótica da ameaça que podem representar para a estabilidade doméstica e, portanto, para a estabilidade externa dos Estados.
Sei que isto tudo soa pouco excitante e conservador. Mas, entre as poucas coisas que aprendi sobre as relações internacionais, está a noção de que o mundo, e a onu como parte dele, é o que pode ser, e não o que gostaríamos que fosse.
José Augusto Guilhon Albuquerque é professor titular da USP, onde liderou a criação do Departamento de Ciência Política e do Núcleo de Relações Internacionais, e atualmente preside a Comissão de Cooperação Internacional. Foi professor visitante na Cátedra Jacques Leclerq, da Université Catholique de Louvain (Bélgica), e na Georgetown University (EUA).
Palestra feita pelo autor no Colóquio A Carta de São Francisco: 50 anos depois, organizado pela Área de Assuntos Internacionais do Instituto de Estudos Avançados na Sala do Conselho Universitário da usp no dia 23 de junho de 1995.
Print version ISSN 0103-4014On-line version ISSN 1806-9592
Estud. av. vol.9 no.25 São Paulo Sept./Dec. 1995
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