Ainda com 11 anos e na segunda gravidez após sofrer abusos, menina buscou o hospital, mas saiu sem a realização do procedimento, que depois seria impedido pela Justiça.
Se o caso, por si só, já é absurdo, a situação piora quando uma juíza da vara de Infância e Juventude de Teresina nomeia um defensor público para atuar em favor de um feto. A nomeação aconteceu em 6 de outubro do ano passado, a pedido da Defensoria Pública.
Também a pedido da Defensoria do Estado, a mesma magistrada teria impedido a publicação de notícias sobre o caso no Estado do Piauí.
Após a troca da juíza responsável pelo caso, houve permissão judicial para a interrupção da gravidez, mas a decisão foi modificada no TJ/PI, que impediu o aborto legal.
Hoje, a gestação tem cerca de 28 semanas.
No Piauí, menina de 12 anos está grávida pela segunda vez por estupro.(Imagem: Renato Andrade/Folhapress)
Primeira gravidez
Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, a menina foi estuprada aos dez anos em um matagal e engravidou. À época, a mãe da menina teria impedido o aborto porque o médico que as atendeu disse que a criança e o feto corriam risco em caso de interrupção da gravidez.
Segunda gravidez
A nova gravidez, também fruto de estupro, foi descoberta no dia 9 de setembro, quando a menina, ainda com 11 anos, buscou o hospital, acompanhada de uma conselheira tutelar.
Alguns dias antes, após desentendimento na família, a garota teria sido levada para um abrigo com seu bebê. No hospital, ela teria expressado o desejo de interromper a gravidez para voltar a estudar.
À Folha, a mãe da menina, que inicialmente não teria autorizado o aborto, disse que a negativa se deu porque foi informada pelos médicos que a menina poderia morrer no procedimento.
Ela ainda teria afirmado que, se houvesse posição médica garantindo a segurança do procedimento, ela daria o aval para a interrupção da gravidez.
O pai defende o aborto, segundo o Conselho Tutelar e o Ministério Público Estadual.
O que diz a lei
Em caso de gravidez resultante de estupro, a interrupção da gravidez é possível: tem-se o que se chama de "aborto legal". Em junho do ano passado, Migalhas fez uma matéria especial sobre as situações nas quais o aborto é permitido no Brasil.
Já com relação à nomeação de um defensor para o feto, não há previsão legal.
Tramita no Congresso desde 2007 um projeto de lei (PL 478/07) que teria sido chamado de Estatuto do Nascituro, e que tornaria o aborto ilegal até em casos de estupro de crianças, tornando-o crime hediondo pelo Código Penal em qualquer hipótese. Mas o texto não foi sequer analisado, nem chegou perto de virar lei.
Juízes
Em outubro passado, a juíza citada no início desta matéria, que teria nomeado um defensor para atuar pelo feto, pediu afastamento do caso. À Folha, teria dito que estava com enorme demanda da Justiça Eleitoral e não teria condições de atender às urgências que o caso da menina requer.
A juíza de Direito Elfrida Costa Belleza, da 2ª vara da Infância e da Juventude de Teresina, teria assumido o caso a partir de então, mas afirmou que não poderia se pronunciar em razão de segredo de Justiça.
Ainda que haja previsão legal que autorize o aborto em caso de estupro, a nova magistrada do caso teria expedido, em 28 de outubro, um alvará autorizando o procedimento.
Em 3 de novembro, aconteceu uma reviravolta no caso: a própria menina teria manifestado desistência sobre o procedimento, após a médica que a atendeu ter falado com ela no abrigo. Acredita-se que a religião também pode ter tido influência sobre a mudança na vontade da menina, visto que o abrigo é católico.
A autorização da juíza foi definitivamente suspensa pelo desembargador José James Gomes Pereira, em 12 de dezembro, a pedido da mãe da menina e da defensora do feto.
"Uma intervenção médica destinada à retirada do feto do útero materno pode representar riscos ainda maiores tanto à vida da paciente quanto à da criança em gestação (que, a meu ver, já atingiu formação suficiente para eventual sobrevida após o nascimento)", escreveu o desembargador. "Uma intervenção médica, a esta altura, corresponderia a um verdadeiro parto, não havendo como se autorizar a realização do aborto."
Na decisão, o desembargador ainda citou um relatório psicológico que apontou que a menina teria consentido em manter a gravidez para entregar o recém-nascido para adoção.
"A vítima mostrou-se equilibrada emocionalmente apresentando uma linguagem clara, objetiva e colaborativa. Durante o atendimento, a adolescente relatou o desejo de continuidade da gravidez e de entregar a criança para adoção, trazendo a fala 'não quero abortar' e que a ideia de abortar a criança traz muito sofrimento."
Controvérsia
No abrigo onde a menina se encontra desde 14 de setembro, após a constatação de que sofria estupros recorrentes, a versão é diferente. Segundo o The Intercept, ela estaria sendo medicada no local e pessoas ligadas ao caso afirmam que a menina está abalada psicologicamente.
A conselheira tutelar Renata Bezerra teria afirmado que a menina estava sendo "dopada", e foi informada de que ela estaria tomando medicação porque tentou suicídio. A menina teria sido medicada por algum tempo, mas já parou de tomar os remédios.
A advogada Jéssica Lima Rocha, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PI também disse ter encontrado "situação de estresse" no abrigo. "Essa criança estava abraçada com uma boneca, se balançando de cabeça para baixo. Pouco ou nada ouvia do que eu falei ou do que eu tentei falar."
Segundo o presidente do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, André Santos, a menina teve uma crise de ansiedade ao saber que os pais não aprovaram o aborto e precisou de medicação. "Ela trata o bebê [filho de 1 ano] como boneca, isso choca a gente. São tantos direitos violados, é um crime institucional. O Judiciário não fala, a Secretaria de Saúde não fala, ninguém fala sobre a situação, porque querem esconder a omissão do Estado."
Menina de 12 anos tem filho de ano e está grávida pela segunda vez após estupros.(Imagem: Renato Andrade/Folhapress)
"Precedente preocupante"
O caso foi denunciado à Corte Interamericana de Direitos Humanos por duas instituições: o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres e do Ipas.
Segundo publicou o The Intercept, a advogada Beatriz Galli, do comitê, afirmou que a Defensoria do Estado, ao pedir a nomeação de um defensor para o feto, estaria criando uma anomalia, um precedente perigoso, em vez de atuar na proteção da criança, nem cumpre o ECA.
No documento apresentado ao órgão, há relatos de "evidências de automutilação e outros sintomas de efeitos na saúde mental da menina".
Prisão
No dia 20 de janeiro, dois suspeitos de estuprarem a criança foram presos preventivamente.
Um deles é tio da menina. O segundo é vizinho da avó da menina.
Agora, a polícia deve recolher material genético para confirmar a suspeita.
Segundo a delegada responsável pelo caso, há sinais de exploração sexual, e eles podem ou não ser responsáveis pela segunda gravidez, mas já é certo que ambos estupraram a vítima.
Residência
A família vive na zona Rural do Piauí, em uma casa de barro com uma sala, um quarto e cozinha. O chão é de terra batida.
Segundo a Folha, no local moram sete pessoas: a mãe, o pai, a menina, seu bebê, e os irmãos da menina, de um, três e sete anos. O bebê, portanto, é apenas um pouco mais novo que o irmão caçula da garota.
Todos dormem em um único quarto entre camas, colchões no chão e redes
Menina grávida pela 2ª vez após estupro vive em casa de barro na zona rural do Piauí com a família.(Imagem: Renato Andrade/Folhapress)
Defensoria pública
A Defensoria Pública do Piauí publicou nota nesta quarta-feira, 1º, confirmando que foi nomeado defensor para atuar em favor do feto. Disse, ainda, que não houve negativa ou falta de atuação para garantir o aborto legal no caso. A entidade disse que não dará mais esclarecimentos em razão de segredo de Justiça. Leia a íntegra do texto:
A Defensoria Pública do Estado do Piauí, em atenção às manifestações veiculadas na imprensa sobre o caso de menina de 12 anos grávida em Teresina, vem informar o que segue.
No caso concreto mencionado, não houve qualquer negativa ou falta de atuação da Defensoria Pública para garantir o direito ao aborto legal.
Com efeito, desde que tomou conhecimento do caso, a Defensoria Pública atuou em defesa dos interesses da menor, adotando todas as providências necessárias para proteger os seus direitos, inclusive propondo ação judicial visando, dentre outros objetivos, a análise acerca da viabilidade da interrupção da gestação.
Na realidade, houve a atuação de 03 (três) Defensores Públicos diferentes, sendo que um atuou em defesa dos interesses da menor, outro em defesa dos interesses do pai da menor e, por fim, outro membro atuou em defesa dos interesses do nascituro.
Em síntese, a Defensoria Pública do Estado do Piauí teve atuação concreta e efetiva no caso, inclusive tendo sido obtida decisão judicial determinando a realização da interrupção da gestação, a qual, após recurso, foi reformada monocraticamente em segundo grau.
Cumpre destacar, ainda, que, por se tratar de processo que tramita sob segredo de justiça, é inviável externar maiores detalhes, bem como dar publicidade a todos os atos processuais.
O "aborto legal" é um procedimento de interrupção de gestação permitido pela lei brasileira, e que deve ser oferecido gratuitamente pelo SUS.
O Código Penal é claro no sentido de que não é crime o aborto praticado em duas circunstâncias: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, e quando a gravidez é resultante de estupro, contanto que com o consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Vale frisar que, no Código, não há qualquer vedação com relação à idade gestacional. Veja o que diz a lei:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Além do que previsto no CP, o STF também já debateu o tema, ampliando as hipóteses em que o aborto não é criminalizado, considerando inconstitucional criminalizar a hipótese de aborto de feto anencéfalo.
Código Penal descriminaliza aborto em caso de estupro.(Imagem: Arte Migalhas)
Aborto legal?
Em entrevista ao Migalhas, a advogada Ana Carolina Moreira Santos, criminalista e mestranda em Direito Médico, explica que o aborto não é considerado "legalizado" no Brasil porque não há uma lei que diga que é legal.
"Mas ele não é criminalizado, é isso o que diz [a lei]. Então, hoje, nossa doutrina chama isso de 'aborto legal'."
A advogada explica que, em relação ao crime de estupro, para que o procedimento seja realizado, é verificada a narrativa da gestante e os indícios de veracidade dessa narrativa, o que deve ocorrer dentro do próprio ambiente de atendimento à Saúde.
Ela também afirma que não é necessária sequer a apresentação de boletim de ocorrência, inclusive como forma de não causar ainda mais sofrimento à mulher em decorrência do ato de violência do qual ela foi vítima.
"Todo aborto é crime"
Recentemente, o Ministério da Saúde editou cartilha para orientar profissionais da área com relação ao aborto, com orientações conservadoras sobre o tema. Para a especialista, a pasta comete equivoco ao criminalizar todos os tipos de aborto.