A ministra do STF (Supremo Tribunal Federal) Cármen Lúcia pediu para o presidente da Corte, Luiz Fux, marcar o julgamento de uma
notícia-crime contra o presidente Jair Bolsonaro. O chefe do Executivo é acusado de praticar crime de “genocídio” contra indígenas em sua atuação durante a pandemia de covid-19.
O julgamento vai avaliar se a PGR (Procuradoria-Geral da República) deve ou não abrir um inquérito para investigar a conduta do presidente em relação aos povos indígenas.
O chefe da PGR, Augusto Aras, manifestou-se contra a abertura do inquérito. Entretanto, após apresentação de recurso, o plenário virtual começou a analisar o caso. Após solicitação do ministro Edson Fachin, o processo passou para o plenário comum.
A notícia-crime foi apresentada pelo advogado André Barros. Sua defesa, feita pelo advogado Luís Maximiliano Telesca, argumenta que o presidente contribuiu ativamente para a disseminação do coronavírus entre povos indígenas ao vetar trecho de lei que previa assistência em aldeias durante a crise sanitária, com fornecimento de água potável e insumos médicos.
Para Aras, o presidente agiu de acordo com a Constituição. “O que o noticiado [Bolsonaro] fez, portanto, foi cumprir o seu dever de vetar parcialmente projeto de lei. Caso não agisse assim, poderia ser responsabilizado“, afirmou.
O julgamento do tema no plenário do Supremo deve ser realizado somente no 2º semestre, quando termina o mandato de Augusto Aras, já que existem muitos processos na agenda da Corte.
INTEGRA DA NOTICIA CRIME CONTRA BOLSONARO
EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
STF PETIÇÃO 9020
ANDRÉ MAGALHÃES BARROS, brasileiro, advogado, inscrito na OAB/RJ - 64495, com escritório na cidade do Rio de Janeiro, à rua Senador Dantas 117, sala 610, Centro, vem apresentar a Vossa Excelência NOTÍCIA-CRIME contra JAIR MESSIAS BOLSONARO, Excelentíssimo Senhor Presidente da República, pelos fatos e fundamentos seguintes:
Em 11 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas declarou que o genocídio é um crime contra o Direito Internacional e contra a Humanidade. Signatário da Convenção, promulgada pelo Decreto nº 30822, de 6 de maio de 1952, o Brasil tipificou o genocídio através da Lei 2889, de 1º de outubro de 1956.
A criminalização do genocídio em escala planetária ocorreu em razão dos assassinato de milhões de judeus, comunistas, homossexuais, eslavos, ciganos, Testemunhas de Jeová e negros, torturados até a morte nos campos de concentração, vítimas do nazifascismo, ideologia que pregava o extermínio de raças, etnias e grupos considerados inferiores e concentrava todos os poderes nas mãos de ditadores, como Hitler e Mussolini.
O crime de genocídio é definido no artigo 1º da Lei 2889/1956:
“Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo;”
Em razão das condições de extrema vulnerabilidade e alto risco dos povos indígenas e comunidades quilombolas, o Congresso Nacional decretou medidas fundamentais de vigilância sanitária e epidemiológica para a prevenção do contágio e disseminação da Covid-19, através da Lei 14021/2020.
Jair Bolsonaro encaminhou ao Presidente do Senado Federal a Mensagem nº 378, publicada em Diário Oficial, do dia de 7 de julho de 2020, que consiste na prova de crime de genocídio. Jair Bolsonaro vetou, aos povos indígenas e comunidades quilombolas, o seguinte:
- acesso universal à água potável;
- distribuição gratuita de materiais de higiene, de limpeza e desinfecção de superfície;
- oferta emergencial de leitos hospitalares e de unidade de terapia intensiva (UTI);
- aquisição ou disponibilização de ventiladores e de máquinas de oxigenação sanguínea;
- inclusão do atendimento de pacientes graves nos planos emergenciais das Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde;
- provimento de pontos de internet para evitar o deslocamento aos centros urbanos;
- distribuição de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas;
- programa específico de crédito para o Plano Safra 2020;
- inclusão no Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA);
- planos de contingência aos indígenas isolados ou em contatos recentes.
O Presidente da República tem total consciência de que vetar aos povos indígenas e às comunidades quilombolas o acesso universal à água potável, no meio da pandemia da Covid-19, é crime de GENOCÍDIO.
Recordamos que a Lei 2889/1956 define o genocídio no artigo 1o: “quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: (...) c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;”.
Sem querer discutir o que é mais hediondo, negar água ou envenenar água, a Lei de Genocídio (2889/1956) aplica à letra “c” do artigo 1º a pena prevista no artigo 270 do Código Penal, cujo nomen juris é: “Envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal”. Percebe-se que nem mesmo o legislador foi capaz de vislumbrar a conduta de se negar o acesso universal à água potável.
A crueldade e o sarcasmo das razões do veto ao acesso universal à água potável saltam aos olhos:
“A propositura legislativa, ao dispor sobre ações específicas a serem executadas no Plano Emergencial no que tange à implementação do acesso universal a água potável, institui obrigação ao Poder Executivo e cria despesa obrigatória ao Poder Público, ausente o demonstrativo do respectivo impacto orçamentário e financeiro, violando assim, as regras do art. 113 do ADCT.”
As razões dos demais vetos seguem na mesma linha. Quando ninguém imaginava que chegaria à Presidência da República e suas inacreditáveis palavras nem eram levadas a sério, as declarações de Bolsonaro comprovam que o mesmo já desejava cometer os crimes de genocídio contra os povos indígenas e as comunidades quilombolas:
“Pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios” Correio Braziliense, 12 Abril 1998
“Não tem terra indígena onde não têm minerais. Ouro, estanho e magnésio estão nessas terras, especialmente na Amazônia, a área mais rica do mundo. Não entro nessa balela de defender terra pra índio” Campo Grande News, 22 Abril 2015
“[reservas indígenas] sufocam o agronegócio. No Brasil não se consegue diminuir um metro quadrado de terra indígena” Campo Grande News, 22 Abril 2015
“Em 2019 vamos desmarcar [a reserva indígena] Raposa Serra do Sol. Vamos dar fuzil e armas a todos os fazendeiros” No Congresso, publicado em 21 Janeiro 2016
“Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola” Clube Hebraica, Rio de Janeiro, 3 Abril 2017
“Pode ter certeza que se eu chegar lá (Presidência da República) não vai ter dinheiro pra ONG. Se depender de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola.” Estadão, 3 Abril 2017
Destruir povos indígenas e comunidades quilombolas tem a finalidade de beneficiar grileiros, garimpeiros, madeireiros, o latifúndio e o agronegócio. Em sete estados da Amazônia, existem mais de duas mil autodeclaradas propriedades privadas em áreas indígenas, algumas inclusive de povos isolados. No início deste ano, Bolsonaro expressou um pensamento que reflete a ideologia nazifascista:
“Com toda certeza, o índio mudou, tá evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós.” UOL Notícias, Janeiro 23, 2020;
Segundo dados coletados entre janeiro e novembro de 2019 pelo Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinte e uma terras indígenas com registros da presença de povos isolados foram invadidas por madeireiros, garimpeiros, grileiros, caçadores e extrativistas vegetais. Obviamente, as declarações genocidas do Presidente da República e as práticas comissivas por omissão de seu governo incentivam tais atos.
Os vetos à Lei 14011/2020 publicados em Diário Oficial, a invasão de terras e assassinatos de lideranças indígenas e quilombolas, combinados com o crescimento exponencial das queimadas na Floresta Amazônica e no Cerrado são provas e evidências de que a política de Bolsonaro e de seu governo é o genocídio.
Além dos grupos étnicos e raciais, a “arminha” com os dedos aponta para um imenso “grupo nacional”: todos os brasileiros que vivem em condição de extrema vulnerabilidade, alto risco, em outras palavras, os pobres. A desigualdade social está evidenciada em nossa Carta Política, pois constituem objetivos fundamentais da República elencados o artigo 3º da Constituição Federal:
“III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;”.
O Presidente da República sabia que milhões de brasileiros seriam contaminados e teriam de buscar socorro em nosso combalido sistema público de saúde, carente de aparelhos de ventilação mecânica, de leitos de UTI (Unidades de Tratamento Intensivo), com insuficiência de EPIs (equipamentos de proteção individual) para os trabalhadores. Mesmo tendo consciência de tudo isso, exonerou consecutivamente do Ministério da Saúde dois médicos que discordaram do negacionismo científico, principalmente com relação às determinações de isolamento social, uso de máscara e prescrição da cloroquina. Há dois meses, a pasta é ocupada por um General do Exército. Será que algum médico de carreira das Forças Armadas assumiria a pasta? Caso a Bolsa de Valores estivesse em queda há meses e a pasta do Ministério da Economia fosse assumida por um General de carreira, como o Mercado reagiria?
O número de vítimas fatais da Covid-19 alcança mais de mil por dia, tendo ultrapassado a marca de 80 mil pessoas, mais de 2 milhões de contaminados, sem falar na pública e notória subnotificação dessa Pandemia Racial e Genocídio Nacional do segundo país com maior número de mortos do mundo, ficando atrás somente dos Estados Unidos da América.
Deve-se consignar que o Presidente da República vem infringindo determinações do poder público destinadas a impedir a propagação do vírus desde o início da pandemia no Brasil. Em março, desrespeitando todos os protocolos de segurança e evidências científicas, sem máscara, realizou atos políticos na porta do Palácio do Planalto, abraçou e cumprimentou pessoas de todas as idades, realizou vários passeios formando aglomerações pelo Distrito Federal e Entorno. Além de ter estimulado a circulação do vírus, agindo dessa maneira, fez apologia de crime e incentivou seus seguidores por todo o país. Assim, ele torna-se o maior responsável pela disseminação da Covid-19 no país, já que ele é a autoridade suprema da República.
Este advogado protocolou, no STF, contra Jair Bolsonaro, as notícias-crime números 8740, 8749 e 8755, respectivamente, nos dias 22, 26 e 30 de março de 2020, baseado no artigo 268 do Código Penal: "Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa".
As três notícias-crime foram encaminhadas ao Procurador-Geral da República, que pediu o arquivamento. Em seguida, três Agravos Regimentais foram interpostos, considerando que os pedidos de arquivamento foram feitos pelo Vice-Procurador-Geral da República, autoridade sem legitimidade para tal. Além disso, os referidos pedidos não foram encaminhados à instância de revisão ministerial para fins de homologação, o Conselho Superior do Ministério Público Federal, como manda o novo artigo 28 do Código de Processo Penal, nem foram processados e julgados pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, como estabelece o artigo 5º, inciso I, do Regimento Interno do STF.
Não podemos deixar o julgamento desses crimes contra a Humanidade nas mãos dos tribunais internacionais ou dos historiadores. Se o Brasil não assumir a responsabilidade de interromper imediatamente este genocídio, carregaremos a mancha da covardia para sempre na História. Aqui, convém recordar Kairós: na mitologia grega, o Deus do momento oportuno, o tempo da oportunidade, na estrutura linguística moderna, a palavra significa, simplesmente, “tempo”. Milhares de brasileiros estão na iminência de perder a vida, correndo perigo da demora. É urgente. O tempo não para.
Quando o Presidente da República começou a infringir as medidas sanitárias preventivas, estimulando o negacionismo científico, ainda em março, muito mais que uma desobediência, um mal exemplo, uma irresponsabilidade, uma ilegalidade administrativa, caso tivesse ficado claro que se tratava, sim, de conduta criminosa, prevista no artigo 268 do Código Penal, milhares de brasileiros não teriam morrido nem haveria milhões de contaminados pela Covid-19.
A História do Brasil é maculada por genocídio, violência e racismo desde o “descobrimento”: durante o processo de colonização, os portugueses realizaram um verdadeiro massacre sobre os povos originários, incluindo a transmissão de gripe, na Diáspora Africana, o país teve o maior número de negros escravizados do mundo e, mais recentemente, milhares de pessoas foram torturadas, assassinadas e desaparecidas pela política de Estado da Ditadura Militar. Há famílias que até hoje não encontraram nem realizaram o sepultamento dos corpos de seus entes queridos, desaparecidos políticos. A situação atual é semelhante, pois as pessoas que perdem familiares e amigos, além de não poderem sequer se consolar com um abraço, não podem enterrar os mortos pela Covid-19.
A falta de medicamentos, até mesmo de anestésicos em situação de intubação, o número ínfimo em relação à demanda de leitos de UTI e de aparelhos de ventilação mecânica, em suma, a agonia da falta de ar de milhares de brasileiros, consiste em tortura até a morte. Essas circunstâncias terríveis fazem ecoar as últimas palavras pronunciadas por George Floyd - “Eu não consigo respirar (I can’t breath)”– que, junto com o lema “Vidas Negras Importam (Black Lives Matter)”, tornaram-se uma bandeira da luta contra o racismo no mundo.
Vidas negras importam. Vidas indígenas importam.
Ninguém sobrevive sem água. Negar aos povos indígenas e comunidades quilombolas o acesso universal à água potável é matar. Voltando ao citado artigo 1º da Lei do Genocídio (2889/1956), do qual já foi mencionada a letra “c”, apontamos também “a” e “b”:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
Os crimes de genocídio praticados pelo Presidente da República são de ação penal pública incondicionada, a qual deve ser promovida privativamente pelo Procurador-Geral da República, sendo competente para processar e julgar o Plenário do Supremo Tribunal Federal.
Pelo exposto, vem requerer a Vossa Excelência que a presente NOTÍCIA-CRIME seja encaminhada ao Procurador-Geral da República.