O crime de Desacato, disposto no artigo 331 do Código Penal, se torna motivo de discussão de tempos em tempos. Muitas pessoas temem incorrer em desacato e inclusive deixam de criticar o serviço de determinado agente público em decorrência de referido crime. Muitas vezes este também é utilizado pelo servidor, sem real necessidade, para coagir determinadas pessoas, pois o tipo penal é muito abrangente, podendo colocar basicamente qualquer crítica dirigida ao servidor como desacato.
Quantas pessoas não conhecem ou ouviram falar da famigerada placa descrevendo o artigo 331 do Código Penal fixada em repartições públicas? Inclusive pregada em local bem visível. Diga-se de passagem, trata-se de um dos crimes mais autoritários e não isonômicos do Código Penal.
Referido crime, para a doutrina especializada, possui raízes no Direito antigo, mais especificamente no Direito Romano, onde havia a repreensão de ofensas feitas contra magistrados, que à época era um crime gravíssimo, punido com a deportação ou até a pena de morte.[1]
Com o decorrer do tempo, referido delito ganhou um aspecto mais abrangente, se afastando do crime de injúria e atingindo outras classes de pessoas. Seu conceito também se ampliou para abarcar situações em que a ofensa é realizada contra o funcionário público quando este está agindo dentro do ofício ou quando se ache em exercício da função, onde quer que esteja, ou fora da função, mas em razão, ou seja, por motivo dela (ver exposição de motivos do Código Penal).[2]
Desacatar significa insultar, humilhar, espezinhar o funcionário público ofendendo o decoro e o prestígio da função. Segundo o ensinamento de Magalhães Noronha: “Consiste em palavras, gritos, gestos, escritos (presente o funcionário), vias de fato e lesões corporais.”[3] O bem jurídico protegido é a dignidade, o respeito devido à função pública, a probidade administrativa.
Feitas estas considerações iniciais sobre o crime em testilha, menciona-se o fato de que atualmente existem discussões que enveredam pela inaplicabilidade do crime de desacato em face do disposto no artigo 13 (liberdade de expressão) do Pacto de São José da Costa Rica, conforme passaremos a explicar.
A adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica se deu pelo Decreto Legislativo 27 de 25 de setembro de 1992 e promulgado pelo Decreto presidencial 678 de 06 de novembro deste mesmo ano. Com isso, segundo nosso entendimento, referido tratado estaria no mesmo nível de normas constitucionais, apesar de referida posição não ser uníssona.
O STF, por sua vez, após o julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343-SP de relatoria do Min. César Peluso e voto vista do Min. Gilmar Mendes, fixou entendimento de que os tratados de direitos humanos têm natureza infraconstitucional e supralegal, posição diferente da anterior adotada pela Corte que equiparava os tratados a leis ordinárias.
Este é o entendimento exarado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal atualmente, vide:
“PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. (...) RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. ”
Infere-se de referidas decisões do Supremo Tribunal Federal que devem ser afastadas as normas jurídicas da legislação infraconstitucional que conflitem com as normas de tratados internacionais cujo objeto sejam os Direitos Humanos.
É o que ocorre no presente caso com o crime de Desacato, pois sua aplicação viola diretamente o artigo 13[4] da Convenção Americana de Direitos Humanos, que trata da liberdade de pensamento e expressão.
Segundo Luiz Flávio Gomes e Valerio de Oliveira Mazzuolli referido dispositivo foi confeccionado com o seguinte objetivo, vide [5]:
“A disposição convencional em comento está voltada para o Estado, que às vezes restringe (sem poder) esse direito do cidadão, censurando-o ou privando-o de externar seu pensamento ou de expressar sua opinião. Trata-se de direito que constitui um dos pilares da sociedade democrática de direito e uma das principais condições para que os integrantes de um Estado possam desenvolver-se plenamente, sem o temor de censura e opressão. ”
Neste sentido, na data de 1995 a CIDH já havia elaborado relatório se posicionando no sentido de que as leis de desacato são incompatíveis com o artigo 13 da Convenção, pois são abusivas, servindo de meio para silenciar ideias e opiniões impopulares, reprimindo assim o debate crítico que auxilia no melhor funcionamento das instituições democráticas.[6]
Nesta esteira, no ano de 2000[7], a Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez por bem aprovar a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão. Mencionada declaração deu uma interpretação definitiva ao artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, sendo que o Princípio de nº 11 da declaração passou a prever o que segue:
“Os funcionários públicos estão sujeitos a um maior controle por parte da sociedade. As leis que punem a manifestação ofensiva dirigida a funcionários públicos, geralmente conhecidas como ‘leis de desacato', atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação. ”
Corroborando com este entendimento, e merecendo a menção, temos Recomendação Conjunta nº 02/15 de 23 de abril de 2015, da Defensoria Pública do Espirito Santo, que segue a seguinte posição em consonância com a da CIDH, vide:
“A incriminação por desacato, delito previsto no artigo 331 do Código Penal, afronta o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), ao impedir que o cidadão manifeste-se criticamente diante de ações e atitudes dos funcionários públicos, no exercício de sua função. Desta forma, RECOMENDA-SE aos Defensores Públicos que sustentem a absolvição do indivíduo, no bojo das ações judiciais, utilizando como instrumento o controle de convencionalidade”.
Portanto, caso se impute a alguém a prática do crime constante no artigo 331 do Código Penal, este indivíduo que fez uma manifestação pública de desapreço ao funcionário público, deverá ser absolvido diante da violação do artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica.
Por fim, verifica-se que o Brasil, neste ponto, se encontra atrasado no quesito de aplicação do controle de convencionalidade. Poucos são os artigos ou obras acadêmicas a mencionar e discutir referida celeuma, muito menos verifica-se a aplicação destes preceitos pelo judiciário pátrio, algo que, se espera, seja alterado.[8]
Fábio Paiva Gerdulo é Pós-Graduado em Direito e Processo Penal Pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduando em Direito Constitucional pela PUC-SP (COGEAE). Graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro da Comissão de Direito Penal Econômico da OAB-SP. Advogado na banca Florêncio Filho advogados.
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