Na virada de 1979 para
1980, o Bananão vivia um momento especial.
Naquele verão, os exilados
pela ditadura militar estavam voltando ao Brasil, beneficiados pela Lei da
Anistia, e a abertura política prometida pelo general Ernesto Geisel estava
começando.
No Rio de Janeiro, as praias acolhiam frequentadores atípicos,
como o jornalista e ex-guerrilheiro Fernando Gabeira, que ganhou os holofotes da
mídia ao ser flagrado usando uma vanguardista sunga de crochê.
Na
verdade, a peça era a parte de baixo de um biquíni de sua prima, a apresentadora
e jornalista Leda Nagle, em cuja casa Gabeira estava morando.
Vindo da gelada
Estocolmo, Fernando Gabeira estava louco para ir à praia e usou a primeira coisa
que lhe caiu na mão.
Deu no que deu.
Shows gratuitos nas areias
cariocas mostravam a cara do recém-nascido rock nacional, que ganhava impulso
com a mudança na linguagem das rádios FM.
Tudo isso em meio a uma
inflação em descontrole.
Em fevereiro de 1980, durante o chamado “Verão
da Abertura”, a gaúcha Verônica Maieski – acompanhada do namorado – quase foi
linchada na praia de Ipanema por banhistas revoltados com o fato de ela estar
praticando topless.
Ao tirar a parte de cima do biquíni, Verônica atraiu
a curiosidade dos marmanjos de plantão, que passaram a dirigir-lhe ofensas e
atirar nela copos cheios de areia e latas de cerveja.
Ela foi expulsa de
Ipanema por mais de 100 vagabundos, aos gritos de “joga pedra na Geni, joga
bosta na Geni”, aquele refrão grudento da música “Geni e o Zeppelin”, de Chico
Buarque.
O caso terminou na delegacia.
Na semana seguinte, um
grupo de mulheres protestou na Praia de Ipanema em prol do topless, para que
pudessem tomar sol em pé de igualdade com os homens, sem sexualizar os
seios.
Até então, as meninas só podiam mostrar os seios em bailes de
carnaval.
A iniciativa não durou mais que um verão, devido às pressões da
sociedade, mas foi acompanhada pelo Topless Literário, uma manifestação poética
nas areias da praia, organizada pelo grupo Gang, braço performático do Movimento
de Arte Pornô.
O Movimento de Arte
Pornô era formado por um grupo de jovens poetas que faziam livros artesanais e
os vendiam de mão em mão, mas que em vez de ter como paradigmas os poetas
marginais da geração anterior (Chacal, Geraldinho Carneiro, Cacaso, Chico Alvim,
etc) cultuavam os escrachados Catulo, Marcial, Bocage, Gregório de Matos e
similares.
Entre 1980 e 1981, a Gang realizou uma série de intervenções
em praças, praias e teatros no Rio de Janeiro, incluindo uma série de encontros
de poesia às sextas-feiras na Cinelândia.
As vivências e descobertas do
grupo eram publicadas na revista Gang, com três edições até setembro de
1981.
Uma dessas edições me foi enviada do Rio de Janeiro pelo poeta JB Gomes (sempre ele!), que achei bastante instrutiva.
Havia até um
“Manifesto Pornô (Feito nas Coxas)”, lido pela primeira vez na Feira de Poesia
da Cinelândia, no dia 6 de setembro de 1980, e assinado por Cairo Trindade,
Eduardo Kac, Tanussi Cardoso, Mano Melo, Claufe e Aclyse de Mattos:
●
Antes de dominar a palavra escrita, o homem já desenhava sacanagem nas paredes
das cavernas
● Masturbação literária não gera porra nenhuma
● Arte
é penetração e gozo
● Trepar, parir e criar fazem parte de um mesmo
processo
● O Pornopoema vai pôr no poema
● Os caras do poder
baixam o pau com medo de baixar as calças... e acabar levando pau
● A
rapaziada tá cagando pra literatura oficial
● Pela suruba literária: um
processo concreto da praxis marginal na sacanagem tropical, al, al
● O
poema pornô taí pra abrir as pernas e as idéias
● Viva o BUM da poesia,
em toda arte, em toda parte
Em 13 de fevereiro de 1982 a Semana de Arte
Moderna de 22 estava fazendo 60 anos.
Para comemorar a efeméride, o
Movimento de Arte Pornô resolveu fazer a Passeata Pornô no Posto 9, em Ipanema,
onde todos os integrantes ficaram pelados e por pouco não foram presos por
atentado ao pudor.
Recitando poesias e
encabeçando o movimento estava a Gang Pornô, formada por Cairo Trindade (O
Príncipe Pornô), Eduardo Kac (O Bufão do Escracho), Teresa Jardim (A Dama da
Bandalha), Denise Trindade (A Princesa Pornô e mulher de Cairo), Sandra Terra
(Lady Bagaceira), Ana Miranda (A Cigana Sacana), Cíntia Dorneles e as crianças
Daniel e Joana Trindade (Os Surubins).
Nessa época, eles
realizavam várias performances em locais públicos, e o auge foi a Passeata Pornô
no Posto 9.
Mais tarde o grupo se dispersou.
O cartunista Ota era
amigo dos integrantes e, sabendo de antemão da passeata-surpresa, produziu e
imprimiu em menos de uma semana o gibi Pornô Comics, de 8 páginas, que era
justamente sobre a passeata.
Os personagens eram os
próprios membros da Gang Pornô.
A tiragem foi de cerca de mil
exemplares.
Dois anos depois, em 1984, a história foi republicada na
íntegra na Antolorgia de Arte Pornô, lançada pela Editora
Codecri.
Comentário do cartunista Oto sobre a presepada:
“Eu já
tinha esbarrado com o pessoal da Gang antes nos bares do Rio, mas só foi uns
quinze dias antes da passeata que fiquei sabendo que uma das garotas da Gang, a
Teresa Jardim, era minha vizinha em Santa Teresa.
Acabei ficando amigo
de todo o grupo e decidi fazer o gibi a toque de caixa para homenagear eles.
O gibi foi lançado oficialmente na própria passeata.
O plano
deles era fazer uma roda na praia, declamar as poesias e tirar a roupa.
Se a Polícia
aparecesse, todo mundo mergulharia no mar e colocaria as sungas e biquínis
dentro da água para evitar o flagrante.
Acabou não acontecendo nada.
Um camburão passou de longe, mas nem tiveram coragem de chegar perto.
A Gang acabou se dissolvendo.
Cairo e Denise foram para um lado e
Kac para o outro, Teresa foi morar em Friburgo, Sandra Terra foi pra Macaé, e a
Ana sumiu.
O que foi feito deles?
Bem, Cairo e Denise
continuam casados até hoje e fazendo poesias, Kac está morando em Washington,
Teresa continua em Friburgo até hoje e cheia de filhos.
A Ana é
secretária de cultura em alguma cidade do Nordeste e a Sandra faleceu.
Os Surubins já estão
na casa dos trinta anos.”
Do “verão da Abertura” pra cá, Cairo Trindade
estudou Direito e Comunicação, publicou cinco livros de poesia, participou de
várias antologias, teve duas peças de teatro encenadas e trabalhou como ator nas
peças D. Quixote, Hair, Hoje é Dia de Rock e O Arquiteto e o Imperador da
Assíria.
Depois que dissolveu a Gang, ele e Denise começaram a fazer
recitais e performances poéticas pelo Brasil afora, com A Dupla do
Prazer.
Em 1993, ele montou uma Oficina de Criação Literária, onde
leciona cursos de pequena duração para escritores, poetas e roteiristas, num
espaço ao ar livre, em sua varanda com vista para o mar, ao lado da estação do
metrô, em Copacabana.
Homem dos sete instrumentos, Cairo também dirige a
Gang Edições e a Editora Contemporânea, além de ser copydesk e colaborador da
Agenda da Tribo, de São Paulo.
Por conta de tudo isso, virei macaca de
auditório do Caio Trindade e começamos a trocar figurinhas já se vai um bom par
de anos.
E o cara continua militante em tempo integral do acostamento
poético, cagando e andando solenemente pro mainstream, como todo rocker que se
preza e tem um nome a
zelar lazer.
Quer dizer, nossos
ídolos continuam os mesmos!
No último Rock in Rio, Cairo Trindade
comandou o primeiro happening poético da história do festival, devidamente
registrado no YouTube para que os eternos invejosos não possam dizer que
tratava-se apenas de mais uma “história de pescador”.
Curtam porque vale
a pena: