Nota introdutória
Este texto parte da análise de um livro recém-publicado, em que três autores defendem ideias liberais ou conservadoras, enquanto criticam o pensamento e a prática política de esquerda, mas nele não se detém. Porque seus argumentos permitem ampliar a discussão para duas questões ainda mais importantes: a insuficiência do pensamento conservador (apesar de quaisquer possíveis virtudes e da necessidade da crítica à esquerda) e as suas muitas vertentes. Entre elas, a que chamo de obscurantismo.
1. Direita, volver!
A esquerda surgiu, historicamente, durante a Revolução Francesa. Mas não tinha, então, o significado de alternativa ao sistema capitalista na economia e à democracia representativa na política – mesmo porque, o primeiro não estava inteiramente desenvolvido e a segunda não existia. A esquerda como a reconhecemos nasceu na segunda metade do século XIX – e teve como certidão de nascimento o Manifesto comunista de Marx e Engels (1848). Ela, porém, logo morreria, soterrada pela queda do muro de Berlim (novembro de 1989). Mas se o socialismo como alternativa de poder ao capitalismo deixou então de existir, isto não resultou nas duas consequências mais lógicas, ou necessárias: 1) o abandono de um (agora) tardoesquerdismo tão impotente quanto renitente e, afinal, caricato (cuja figura exemplar é o “companheiro bolivariano” Hugo Chávez); 2) uma nova crítica radical do capitalismo, livre do fracasso histórico e do ranço ideológico da esquerda (e baseada, talvez, nos pressupostos do ambientalismo – se este conseguisse conceber um novo modelo socioeconômico, o que parece tão improvável quanto a múmia de Lênin se erguer na Praça Vermelha).
Enquanto o pensamento de esquerda sobreviveu como uma fantasmagoria ideológica, assombrando principalmente (mas não exclusivamente) a academia, em particular as ciências humanas, o pensamento de direita revelou-se incapaz de ir muito além da cansativa repetição de uma obviedade histórica: o próprio fato de que a esquerda fracassou. Haveria uma justificativa para tal reiteração da direita: a insistência da mesma esquerda em seu discurso esvaziado, de negar ou desdenhar o capitalismo apesar de não poder mais sustentar um modelo alternativo. Assim, se o discurso de esquerda se recusa a incorporar a principal lição da história contemporânea (ou seja, que o capitalismo é o pior sistema socioeconômico, fora todos os demais), a direita parece disposta a não deixar o discurso da esquerda em paz. Além disso, e talvez mais importante, há as práticas residuais “de esquerda” ainda sustentadas ou defendidas por tal discurso, como o ridículo mas não inócuo “socialismo bolivariano” de Chávez, ou o “aparelhamento” do Estado brasileiro pelo lulo-petismo.
Por que virei à direita – três intelectuais explicam sua opção pelo conservadorismo(São Paulo, Três estrelas, 2012) contém exemplos das principais vertentes do discurso conservador. Como destaca a “orelha”, João Pereira Coutinho discute, ainda e mais uma vez, “os riscos das utopias propagadas pelas esquerdas”. Já Luiz Felipe Pondé, mais metafísico, insiste em que “o pensamento progressista tem uma falha essencial: ignora aquilo que é próprio do ser humano”. Denis Rosenfield, por fim, ao (re)analisar a “teleologia da esquerda, que vê o Estado como a encarnação máxima da moral, faz também dura crítica à ‘democracia participativa’ implementada pelo PT”.
2. Como virar à direita e se separar
João Pereira Coutinho, na verdade, revisita o conhecido receituário do (e alguns dos autores clássicos sobre o) “cético”, que, neste caso, é outro nome para o não-rousseauniano. Tenho plena simpatia pela antipatia de Coutinho (característica dos liberais) com o Rousseau de “os homens nascem bons e a sociedade os corrompe”. Porque este pressuposto é falso e autoritário (além de mera paráfrase do mito judaico-cristão do Paraíso e da queda): falso por não corresponder aos fatos, autoritário por se travestir de verdade axiomática. E porque apenas o nazifascismo seria capaz de cometer mais crimes do que o “campo rousseauniano”, nascido dessa crença do “homem bomversus sociedade má”.
Um dos méritos do texto de Coutinho é reiterar, a partir de Michael Oakeshott, o contraponto entre “fé” e “ceticismo” em política, além de explicitar que a “fé” é um mal que acomete, na verdade, tanto a esquerda quanto a direita, na forma de utopias cuja base é a crença (ou a “fé”) de que tal ou qual sistema “corrigirá” a sociedade, para adequá-la à “bondade natural” do homem. Daí o totalitarismo: pois para corrigir a sociedade é preciso, ora, corrigir a sociedade.
O texto de Luiz Felipe Pondé, em seguida, é, sob alguns aspectos, muito parecido ao de Coutinho. Há, porém, diferenças fundamentais. Começando pelas semelhanças mais evidentes, ambos os textos, de caráter ao mesmo tempo analítico e memorialístico, chegam à mesma conclusão/afirmação sobre seus autores: Coutinho se diz um “estrangeirado” em seu Portugal natal, com isso querendo dizer-se anglicizado: “As múltiplas referências anglo-saxônicas [...] denunciam-me como um ‘estrangeirado’” (p. 47). Pondé diz-se a mesma coisa: “Penso como um britânico” (p. 81). Não é por acaso, nem é novidade: trata-se do bom e velho pensamento liberal inglês, da linhagem que liga Edmund Burke e David Hume a Isaiah Berlin. O primado do indivíduo, do ceticismo e do empirismo versus a primazia do coletivo, da fé e da teoria/ideologia. Ler os dois textos em seguida, porém, é revelador: pois suas semelhanças, incluindo a lista de autores citados, servem afinal para destacar suas profundas diferenças.
Há direitistas e direitistas. Só o esquerdista mais insano (ou mais estúpido) seria capaz de afirmar que Churchill e Mussolini significam a mesma coisa. Se todo fascista é conservador, nem todo conservador é fascista. Alguns (na verdade, muitos) são liberais. E ser liberal significa, de certa forma, não ser, sequer, de fato conservador. A direita é, talvez, ainda menos homogênea ou monolítica do que a esquerda.
Pois a esquerda, cujos métodos variam do reformismo gradualista da social-democracia “clássica” ao revolucionarismo voluntarista bolchevique, tem em comum a crença na existência (e no reconhecimento, pela própria esquerda) da verdadeira “natureza humana”, a bondade “natural” rousseauniana. O papel da política seria, então, criar uma sociedade que não a “corrompesse”, para usar o termo de Rousseau, como todas as sociedades históricas. No limite, isso leva, como dito, ao totalitarismo, ou seja, ao stalinismo (cujo verdadeiro nome deveria ser leninismo). Há, porém, o totalitarismo de direita, cuja expressão máxima é o nazismo. Nazismo que não deixa de ser, também, rousseauniano. A diferença fundamental está no nazismo ser particularista, e não universalista. Acredita, assim, na “bondade” ou “virtude” ou “pureza” de parte da humanidade, a “raça ariana” (corrompida, então, não por certa organização social, mas por outra “raça”, a judaica). E assim chegamos a uma diferença pouco conhecida ou reconhecida entre esquerda e direita: esta é, ao fim e ao cabo, mais contraditória. Pois se, no fundo, toda esquerda é rousseauniana, parte da direita também o é, enquanto outra parte é radicalmente anti-rousseauniana. Esta parte se chama liberalismo.
Tão importante quanto reiterar os conhecidos males do rousseaunismo/esquerdismo e o possível antídoto do liberalismo, o que os três textos a seu modo fazem, seria, no entanto, apontar para as insuficiências fundamentais do próprio liberalismo, o que apenas Coutinho esboça.
Como referido no início, se o fim do socialismo como alternativa de poder ao capitalismo não matou o tardoesquerdismo, tampouco fez surgir uma nova crítica radical do capitalismo, livre do fracasso histórico e do ranço ideológico da esquerda. Faz sentido: pois, obviamente, essa nova crítica, se não poderia vir então da esquerda, tampouco pode, apesar disso, vir da direita. Se a direita é perfeitamente capaz de fazer a crítica radical do esquerdismo como prática e como ideologia, como nos três ensaios do livro, é inteiramente incapaz de fazer a crítica radical do capitalismo. Mesmo porque, esta é uma característica do pensamento de esquerda. Dados o fracasso histórico deste e a incapacidade inata daquela (incluindo o liberalismo), fica o capitalismo livre de qualquer crítica abrangente, apesar de ela ser imperiosa. Isto também explica certa insuficiência dos ensaios do livro.
3. O conservadorismo é um humanismo – logo, não serve
Capitalismo é produtivismo e consumismo. Dadas a inelasticidade física do meio ambiente terrestre e a elasticidade histórica da população humana e da produção capitalista, que na verdade é consumo, nas duas pontas (consumo dos produtos gerados mas também da energia e dos insumos geradores), o capitalismo é, no limite, insustentável. Como a esquerda fracassou em sua crítica e a direita é inatamente incapaz dela, resta, ou restaria, o ambientalismo. Este, porém, é incapaz, se não de fazer a crítica radical do capitalismo, ou seja, do consumismo, de levar tal crítica à sua consequência lógica, a concepção de um sistema socioeconômico alternativo. Porque isto implicaria em um sistema político que o implementasse. Aqui a diferença fundamental entre esquerdismo e ambientalismo se insinua: o esquerdismo, a partir do rousseaunismo, tem o homem, a história humana, a sociedade como foco e razão de ser. Já o ambientalismo tem um foco e uma razão diferentes, além de maiores ou mais abrangentes: a humanidade mais o meio ambiente terrestre. O esquerdismo é um humanismo. O conservadorismo, outro. Face aos conhecimentos contemporâneos, todo humanismo é uma forma de ignorância. Ou de simplismo.
Enquanto o esquerdismo é mudancista, ou seja, pretende mudar a sociedade para se adequar a certo ideal da condição humana, o ambientalismo é mudancista porque antimudancista, ou conservador. É surpreendente como não se costuma notar serem os termos conservador e conservacionista, originalmente, sinônimos. A diferença em seus usos se dá em função dos objetos de conservação: os ditos conservadores se preocupam em conservar a sociedade, os chamados conservacionistas se ocupam em preservar o meio ambiente. Se a história determinou o fracasso do pensamento de esquerda, essa diferença de foco evidencia a insuficiência do pensamento de direita. “After such knowledge, what forgiveness?”, como diria Eliot.
O conservadorismo político é, hoje, insuficiente porque atrasado, e atrasado porque, à semelhança do esquerdismo, mantém uma obsessão e uma cegueira “humanistas”. Pondé é, neste sentido, um caso limite e exemplar (daí a possível pertinência de se deter sobre ele): seu pensamento navega e naufraga numa insistência monótona, cansativa e algo fanática em “pensar sobre o homem”. Na prática, em denunciar como a modernidade é enganosa ao haver pretendido (ao menos segundo Pondé) “solucionar o humano”: “O que caracteriza a modernidade é a utopia de que a gente vai organizar a agonia. Não resolvem. O ser humano é agonia. O ser humano não é alguma coisa que tenha solução”. [1] De fato, não tem. Não, porém, como acredita cegamente Pondé, porque esteja “envolto em mistério” e toda essa velha balela dos crentes: “A natureza humana [...] sempre subentende um certo mistério” (a “natureza humana” e apenas ela, obviamente). [2] Mas porque se trata de um falso problema, ou de um falseamento do problema. Noutras palavras, de uma ilusão de ótica.
Sendo apenas uma espécie, ou seja, um ponto em duas redes imensuráveis, uma estendida no tempo, o continuum da história da vida, outra estendida no espaço, ocontinuum da biosfera, o ser humano pouco importa, no sentido de que importa pouco, ou seja, não detém informação importante, isto é, suficiente, que dirá determinante. Frise-se que não quero com isso dizer que se trata de falta de informação por parte do ser humano, mas sim que toda informação possível sobre o ser humano seria insuficiente para sequer começar a compreender ou descrever o ser humano (que dirá uma realidade maior ou mais abrangente), na medida em que este não apenas não existe no vácuo como não existe por si – ou em si. E aqui não me refiro a qualquer “dimensão espiritual” ou “transcendência”, mas à biologia.
Não somos seres e, portanto, no limite não somos humanos, no sentido de não constituirmos qualquer ser individual. Primeiro, porque parte significativa de nossa massa corporal é formada por bactérias. E não apenas bactérias parasitas, como as que habitam a boca. A maioria são bactérias mutualistas, que se aproveitam do hospedeiro enquanto este se aproveita delas: desde a pele, onde bactérias não-agressivas ocupam os espaços ecológicos impedindo a instalação de bactérias patogênicas, até os intestinos, onde a famosa flora intestinal, que não é flora, mas fauna, faz parte importante do trabalho digestivo (ou seja, de nossas funções fisiológicas mais fundamentais). Segundo, porque nosso DNA não é inteiramente nosso. Parte importante dele é constituído por antigos vírus, incorporados ao longo da história biológica, alguns antes mesmo do surgimento do Homo sapiens. Como não existe solução de continuidade entre as gerações, ou seja, como cada ser descende de um anterior, a maior parte de nosso DNA é anterior à própria espécie (daí 98% dele serem idênticos ao dos chimpanzés, que o herdaram igualmente de um ancestral comum). Terceiro, porque algumas das organelas de nossas células, como as mitocôndrias, eram originalmente bactérias parasitas, depois incorporadas pelo citoplasma: daí possuírem seu próprio DNA, que passa incólume pela fusão dos núcleos do espermatozoide e do óvulo na concepção.
Paralelamente, o sequenciamento genético do homem de Neandertal (Homo neanderthalensis) levou a duas constatações adicionais: ele constituía uma subespécie; ela era próxima o bastante para permitir o cruzamento com o Homo sapiens (o que de fato ocorreu, como demonstrado pela detecção subsequente de marcas genéticas neandertais em europeus e asiáticos). Conclusão: não somos seres individuais (mas, na verdade, colônias com pernas) nem uma espécie “pura”.
O atraso de certo pensamento conservador, de que Pondé é hoje o representante mais notório, revela-se, afinal, mais profundo do que o de outros conservadores. Pois além de pretender “pensar o ser humano”, como se ainda suficiente, insiste em que o caminho para fazê-lo passa pela religião, pela crença em Deus ou coisa parecida, como se ainda nos tempos da escolástica. Se ao lado dessa velha “espiritualidade”, que não passa da forma mais radical de narcisismo humanista (apenas humanos têm alma; Adão foi criado à imagem e semelhança de Deus; etc.), ainda houvesse espaço para um pensamento ambientalmente informado, abrangente ou includente, ela seria apenas ociosa, e afinal irrelevante. É o caso de ambientalistas “espiritualizados”, que veem nisto um índice a mais de alguma sensibilidade superior. Em um conservador como Pondé, porém, a crença em Deus serve como importante reforço do narcisismo humanista, ou seja, da ignorância orgulhosa.
4. A inveja narcísica e o chifre do unicórnio
No contexto do livro, em que o liberalismo é defendido com rigor e argúcia por Coutinho (enquanto Rosenfield se detém no caso particular da esquerda brasileira), Pondé revela-se, afinal, um liberal inconsistente, ou falso, porque não é um cético consistente, ou verdadeiro.
Assim como os esquerdistas acreditam haver e creem conhecer a essência ou a natureza humana, que seria a bondade rousseauniana, Pondé acredita haver e crê conhecer a mesma coisa, com a única diferença de uma troca de sinal, para a “maldade” no sentido cristão, ou decaimento pelo pecado original.
Ainda criança, comecei a ter esse temperamento de desconfiar das utopias, por perceber nelas um ódio essencial ao mundo tal como ele é – ódio que não sinto. Para mim, o mundo era antes de tudo uma das faces da insuficiência humana, carregando consigo a deformação de nossa dor crônica e infinita. [3]
É difícil entender, a princípio, que Pondé não perceba suas gritantes inconsistências. Depois, desconfia-se fazerem parte da receita (que se descobre, por fim, não ser original). Aqui ele se apodera de um dos principais argumentos dos céticos, dos laicos, dos descrentes e da ciência – que rejeitam a crença e os deuses, justamente, por aceitar o mundo tal como ele é, enquanto a religião, como se sabe, o odeia, repele e “condena”. O cristianismo, por exemplo (que Pondé não cansa de propagandear), vê o mundo real, o mundo do dia a dia, como um lugar de pecado, corrupção e concupiscência, e rejeita “a carne” em nome do “espírito”, o mundo material em nome do “reino do céu”, o presente em nome do futuro (qualquer semelhança com as utopias políticas não é coincidência). Numa palavra, rejeita a vida e adora a morte, que chama de verdadeira vida. Não satisfeito em aplicar o famoso argumento contra a crença religiosa às utopias, mas às utopias somente, livrando, assim, a crença religiosa, Pondé afirma em seguida que o “mundo tal como ele é” é, afinal, insuficiente e deformado: “O mundo é antes de tudo uma das faces da insuficiência humana, carregando consigo a deformação de nossa dor crônica e infinita”…
A dor provocada por aquela tragédia e o silêncio raivoso [do irmão do morto] são exemplos do que entendo como condição do homem diante de Deus. Relendo o mito da queda de Adão e Eva, muitos anos depois, vi que esse sentimento é a matriz do pecado: a revolta contra Deus era inevitável. É essa inevitabilidade da revolta, sustentada por uma inveja atroz da imortalidade dos deuses, que me fascina. [4]
A mim não fascina, mas espanta, por ser, no limite, incompreensível. Como se pode, em sã consciência, invejar o inexistente? Seria o mesmo que um cavalo invejar o chifre do unicórnio. Se invejasse o chifre do rinoceronte, vá lá. Mas um cavalo que invejasse o unicórnio estaria invejando uma miragem. Ou um mito. Tal cavalo não teria um verdadeiro problema existencial, já que unicórnios não existem, mas psicológico. A diferença pode ser sutil, mas é real. Se nosso cavalo imaginasse o unicórnio e desejasse ser como ele, estaria expressando um desejo, uma fantasia. Mas o passo seguinte, sentir inveja de seu objeto imaginário, de sua própria autoimagem idealizada, não é evidente nem necessário. É, na verdade, infantil – portanto, deveria ser normal (ou da norma, além da normalidade) apenas em crianças, não em cavalos nem em adultos. Pois seria o mesmo que um menino “invejar” o Super-homem. Essa “inveja” de uma fantasia pode ser verdadeiramente angustiante para uma criança, mas adultos são indiferentes a isso. Não porque ser adulto signifique ser perfeitamente lúcido, mas sim imperfeitamente fantasista: a imaginação infantil é mesmo maior. Um adulto pode invejar, e muitas vezes inveja, vidas que edulcora, mas habitualmente não vai além disso: acreditar que certa celebridade vive uma vida perfeitamente maravilhosa não é o mesmo que acreditar que tal pessoa possa levitar. Quem perderia tempo se angustiando por não poder levitar? Principalmente, angustiando-se por sentir inveja de certa pessoa que acredita poder levitar? Afinal, sabe-se que ninguém pode levitar. É contra a natureza das coisas. Ora, a imortalidade não é menos, mas muito mais fantasista do que a levitação. Apesar disso, a maioria das pessoas não é crente, ou seja, não acredita na existência real de seres imortais, os deuses? Sim. Mas, em primeiro lugar, a crença na existência de algo não é suficiente para que esse algo exista de fato; em segundo lugar, a verdade não é democrática. A verdade não depende da quantidade dos que a afirmam, mas da qualidade dos argumentos que a apontam (daí a fábula A roupa nova do rei). Um verdadeiro liberal sabe bem disso, como bem o sabia Alexis de Tocqueville, ao apontar a “ditadura da maioria” como um dos perigos da democracia moderna. Pondé, aliás, cita e recita Tocqueville, o que naturalmente não basta para torná-lo um liberal verdadeiro.
Ao contrário de Coutinho e também de Rosenfield, Pondé não se satisfaz, portanto, com a rejeição das utopias políticas da modernidade, mas dá mais um passo, assumindo, agressivamente, a rejeição da própria modernidade. Tal rejeição não evidencia o liberal, mas esconde (mal) o obscurantista.
5. Ponderações sobre um obscurantista contemporâneo I
Eis uma afirmação não trivial. É necessário demonstrá-la. E demonstrar, assim, como a defesa do conservadorismo político – ao menos, de certo conservadorismo –, apesar de toda a crítica de que a esquerda seja merecedora, ainda guarda suas próprias armadilhas. Desmascarar certo obscurantismo antirracionalista e antimodernista que macula parte importante do pensamento conservador – representada por Pondé no livro – é afinal não apenas pertinente a ele como mais importante do que sua análise direta.
Mesmo porque, a possível relevância do pensamento obscurantista de Pondé está em sua falta de originalidade. Ele é, na verdade, apenas o mais midiático dos obscurantistas de plantão no Brasil (além de aqui se diferenciar dos demais autores do livro). Estender-se sobre seus argumentos tem, portanto, o possível valor da exemplaridade.
O senhor acredita em Deus?
Pondé: Sim. Mas já fui ateu por muito tempo. Quando digo que acredito em Deus, é porque acho essa uma das hipóteses mais elegantes em relação, por exemplo, à origem do universo. Não é que eu rejeite o acaso ou a violência implícitos no darwinismo – pelo contrário. Mas considero que o conceito de Deus na tradição ocidental é, em termos filosóficos, muito sofisticado. Lembro-me sempre de algo que o escritor inglês Chesterton dizia: não há problema em não acreditar em Deus; o problema é que quem deixa de acreditar em Deus começa a acreditar em qualquer outra bobagem, seja na história, na ciência ou em si mesmo.[5]
Sim, acredito em Deus. Mas… 1) Já fui ateu. 2) Porque sou elegante: “Acho Deus uma das hipóteses mais elegantes em relação à origem do universo”. Bobagem. A narrativa mítica para a origem do Universo é, na verdade, banal, arcaica e popular. Vamos a ela…
As cinco maiores religiões têm algo de fundamental em comum. Judaísmo, cristianismo, islamismo, hinduísmo e budismo possuem, no centro de suas concepções teológicas, a ideia, algo óbvia, da necessidade de uma causa das causas. Parece complicado, mas é, na verdade, simples. E não necessariamente elegante.
Se tudo tem uma causa, uma regressão na longa cadeia de causas e efeitos levaria, ou a uma causa primeira, autogerada, ou ao infinito. É evidente que a ideia de uma cadeia infinita de causas e efeitos é mais difícil de ser concebida e transmitida do que a de uma cadeia de causas e efeitos com um ponto de origem identificável – e, além disso, parecido com o homem. Não surpreende, portanto, que esta tenha sido a hipótese “elegante” escolhida por todas as grandes religiões.
Há, claro, diferenças fundamentais, antes que os adeptos dos “inconscientes coletivos” e similares se alegrem. Porém a estrutura conceitual básica dos mitos de origem de todas as grandes religiões é bastante semelhante: uma causa das causas original, não-causada e parecida com o homem. Na verdade, se as grandes religiões são cinco, os grandes mitos da criação são apenas dois. O judaico, adotado também pelo cristianismo e pelo islã, e o hindu, adotado pelo budismo.
O mito judaico é conhecido: o Universo existe porque existe um Deus, que não se sabe bem por que, resolve um belo dia criar o mundo. Sua semelhança com o homem está explicitada na Bíblia, ainda que às avessas, pela afirmação de o homem ser a imagem d´Ele. No caso do hinduísmo, a semelhança mais sutil de Brahma, a causa das causas, o Uno pleno etc., com o mesmo homem está no motivo pelo qual Ele decide, um dia, se dividir, deixando de ser Neutro para se tornar Macho e Fêmea, e daí gerar as Formas, isto é, a matéria, o mundo. O motivo é a solidão de Brahma, e o fato de que Ele “não tinha nenhum prazer”.[6] Ingênuo, por um lado, e contraditório, por outro: pois se insiste na Plenitude de Brahma, e é de se imaginar que o Pleno não conheça, por definição, nem a solidão nem a falta de prazer. Mas estas são concepções anônimas, populares, frutos de especulações não movidas nem pela experimentação nem pelo rigor. Numa palavra, mitos. E mitos podem muito bem ser ingênuos e contraditórios, ainda que não se deva explicitar poderem ser contraditórios e ingênuos. “Eu era um tesouro oculto e desejava ser conhecido, por isso criei as criaturas”: o “eu” desejante (mais uma vez…) é aqui o próprio Alá, que assim teria se expressado a Maomé sobre a origem do mundo, segundo o misticismo islâmico.[7]
Depois de afirmar a elegância superior contida em tudo isso (deixando desta vez implícito seu desdém obscurantista pela explicação científica), Pondé acrescenta que “o conceito de Deus na tradição ocidental é, em termos filosóficos, muito sofisticado”. Imaginei, ao ler isto, que sairíamos dos mitos de origem em si para, por exemplo, alguma referência a Tomás de Aquino. Não me pegaria desprevenido, nem de todo despreparado, pois li Aquino o suficiente para saber que muito do que se diz sobre ele, ou a partir dele, não resiste a uma ida à fonte (por exemplo, que ele elabora a separação entre fé e razão; isto é verdade se se acrescenta que o faz para subordinar a razão à fé). Mas não: depois de um golpe en passant e mal disfarçado no darwinismo (outra marca do obscurantista), Pondé se sai com uma velha referência a Chesterton, tão usada e surrada quanto a de Fiódor “Se não há Deus tudo se permite” Dostoiévski: “Não há problema em não acreditar em Deus; o problema é que quem deixa de acreditar em Deus começa a acreditar em qualquer outra bobagem, seja na história, na ciência ou sem si mesmo”. Sempre achei esta afirmação de Chesterton um dos exemplos mais acabados, ora, de obscurantismo. Além de se tratar de um sofisma, como de hábito nesse tipo de argumento (incluindo o de Dostoiévski). O sofisma está na redução implícita do conhecimento a outra forma de opinião. Refiro-me aos conceitos gregos de episteme e doxa. A religião, a fé, o mito, não é conhecimento, no sentido de não ser conhecimento demonstrável ou testável de qualquer maneira, mas, então, apenas discurso, opinião – no limite, literatura. A ciência não é, por seu lado, nem mera opinião nem um tipo de crença nem, muito menos, “outra bobagem”. Stephen Hawking: “Há uma diferença fundamental entre a religião, que se baseia na autoridade, e a ciência, que se baseia na observação e na razão”. A frase de Hawking não tem valor por ele ser um dos maiores físicos da história (não se trata, portanto, de um argumento “de autoridade”), mas porque ela é robusta em si. Para demonstrá-lo, basta inverter os termos e constatar o absurdo do resultado: “Há uma diferença fundamental entre a religião, que se baseia na observação e na razão, e a ciência, que se baseia na autoridade”.
Aqui se evidencia a radical dicotomia contemporânea entre religião e ciência, entre fé e lucidez, entre mito e comprovação, entre opinião e conhecimento, contra a qual os obscurantistas de vários matizes (incluindo relativistas e construtivistas) tanto se batem. Frisei contemporânea porque o debate, neste caso, é viciado por uma permanente retomada de suas condições passadas, a partir, principalmente, dos problemas causados pela Igreja para a pesquisa de Galileu. Não que essas questões passadas estejam ultrapassadas, no sentido de não serem mais verdadeiras ou pertinentes: tudo o que foi dito nos últimos séculos sobre os antagonismos fundamentais da religião em relação à ciência (nesta ordem) continua tão verdadeiro e tão pertinente quanto quando dito a primeira vez. A religião se baseia em crenças, isto é, em certezas, daí afinal se basear em respostas e em dogmas, enquanto a ciência se baseia em questionamentos, ou seja, em dúvidas, daí afinal se basear em perguntas e em pesquisas. Isto deveria ser evidente, e, na verdade, apenas não o é por conta da insistência multissecular dos obscurantistas em pôr a ciência em questão. Noutras palavras, a religião não é, na verdade, sequer uma preocupação para a ciência, enquanto a ciência é uma verdadeira obsessão para a religião. Isto é, para os crentes, como Pondé.
6. Ponderações sobre um obscurantista contemporâneo II
Há, portanto, outra razão para citar aqui Hawking: o golpe en passant de Pondé no darwinismo, comum nos obscurantistas. Não sei ao certo a posição de Coutinho e Rosenfield sobre o darwinismo, mas tenho razões para acreditar serem seus defensores. Já Pondé, não surpreendentemente, é um defensor da “alternativa” do criacionismo, ainda que, como de hábito, às vezes o assuma, outros vezes pareça negá-lo, como aqui: “Não é que eu rejeite o acaso ou a violência implícitos no darwinismo – pelo contrário”. Atente-se, porém, para a formulação ambígua e condescendente, além de pretensiosa: “Não é que eu rejeite o darwinismo…”. Tanto o rejeita que é incapaz de compreendê-lo minimamente: qualquer estudante de primeiro ano de biologia sabe que o acaso e a violência são, na verdade, explícitos no darwinismo. Compare-se, em todo caso, com outra passagem do mesmo autor:
A controvérsia que opõe o darwinismo ao criacionismo [...] – ou teoria do “design inteligente”, herdeira direta da união entre o “primeiro motor” aristotélico e o Deus de Abraão – não é apenas uma querela sobre como a poeira cósmica começou a pensar, mas uma discussão acerca do sentido profundo da vida.[8]
Não há nenhuma controvérsia opondo o darwinismo ao criacionismo, mas o contrário, o que não é indiferente: o criacionismo se opõe, agressivamente, ao darwinismo. Pondé, como um crente em Deus, deveria ser, necessariamente, um criacionista, pois como ele mesmo afirma, Deus é uma “hipótese para a origem do Universo”. Acontece que há hipóteses excludentes: no caso do surgimento da vida, ou Deus a criou, ou a matéria inanimada regida pelo acaso. Não há como ser ambos. Pondé, de fato, desconfia do darwinismo: “O darwinismo é a teoria da autossuficiência da matéria”.[9] Sua inconsistência e sua confusão obscurantistas, porém, fazem com que acredite poder servir a dois amos. Assim, a depender do dia, de seu humor ou do texto seu que se consulte, ele defenderá, ora o darwinismo, como no livro em questão (em que concede sentir “simpatia pela teoria de Charles Darwin” [p. 61]), ora o criacionismo, como na passagem acima, em que manifesta mais do que simpatia, mas faz dele verdadeira justificativa.
Porém não se trata, afinal, do darwinismo, e sim da própria biologia. Porque não existe biologia sem darwinismo. O problema é ser impossível conceber um ataque minimamente consistente ao gigantesco edifício da biologia, que inclui a paleontologia, a genética, a embriologia, a fisiologia, a anatomia comparada, a etologia, a bioquímica e um gigantesco etc. O darwinismo é a base conceitual unificadora de todas as ciências biológicas, que, por um lado, sem ele sequer podem existir, e que, por outro, o corroboram em seus vários campos de pesquisa. Portanto, ao atacar o darwinismo (ou defender o criacionismo), os crentes em geral e os obscurantistas em particular estão, na verdade, atacando o conjunto das ciências biológicas. Não convém, porém, explicitá-lo, primeiro, porque soa, ora, obscurantista; segundo, porque indica a imensa robustez do darwinismo; terceiro, porque demonstra implicitamente a fraqueza e a insensatez do ataque, que não pode sequer nomear seu verdadeiro alvo, o edifício das ciências biológicas, de que o darwinismo é o alicerce e o cimento. Mas por que, afinal, a necessidade de atacar a biologia?
Porque a biologia não distingue o homem dos demais animais. A biologia é a ciência da vida em seu conjunto. E as grandes religiões são antropocêntricas. A controvérsia que opõe o criacionismo ao darwinismo (e não o contrário), não é, portanto, uma discussão acerca do sentido profundo da vida, como pretende Pondé, mas do sentido profundo da vida humana.
Eis, enfim, o antagonismo fundamental entre as grandes religiões e a biologia, que centraliza o antagonismo (real, apesar dos relativistas) entre as religiões e a ciência: a biologia não reconhece nenhum sentido profundo da vida humana, que é apenas parte da vida terrestre, enquanto as religiões existem para afirmar o sentido especial da espécie (o ambientalismo, ao contrário, é completamente coerente com a biologia – da qual faz parte, aliás, a ecologia). Para que as religiões tenham algum sentido, a vida humana deve ter um significado especial. Daí a biologia, na figura do darwinismo, ter de ser atacada. Não que possa ser fácil ou convincentemente atacada. Daí, enfim, a obsessão e a mal disfarçada frustração dos obscurantistas.
7. Saudades da Idade Média
Para mim, a religião é uma fonte de hábitos morais, e historicamente oferece resistência à tendência do Estado moderno de querer fazer a cura das almas, como se dizia na Idade Média – querer se meter na vida moral das pessoas.[10]
Eu poderia aqui falar em pura e simples ignorância histórica, mas não o farei. Prefiro pensar em obscurantismo, em sofisma, em falseamento. Mesmo porque, são argumentos não originais. A religião não oferece historicamente nenhuma resistência à “tendência do Estado moderno de querer fazer a cura das almas”. Porque não há tal “tendência”, senso lato, no Estado moderno. Este é por demais multiforme, em termos históricos, para poder ser assim reduzido (que semelhança pode haver entre a República de Weimar e a “República Popular” de Pol Pot no Camboja?). Porque se trata de mais um ataque geral e irrestrito à modernidade. E porque a defesa da religiãocomo fonte de “hábitos morais” é o último recurso do obscurantista. Para começar, não há religião no singular. Para intermediar, existem e existiram religiões que defendem e defendiam “hábitos morais” como a poligamia, a morte de adúlteras, o infanticídio, o sacrifício humano e um interminável etc. Para finalizar, porque em termos históricos a religião é, na verdade, uma fonte inesgotável de disputas culturais e de guerras, para não falar de genocídios: o nazismo, por exemplo, não criou o antissemitismo alemão, mas sim teve no antissemitismo alemão uma de suas causas. E o antissemitismo alemão tem como causa profunda, por sua vez, o antissemitismo europeu, que é, na verdade, o antissemitismo cristão – criado e difundido como elemento central da cultura e da história europeias pela Igreja.
Um conhecido especialista em história do cristianismo não poderia ser mais explícito a esse respeito, ao comentar textos fundamentais de importantes autores cristãos dos primeiros séculos:
Estamos no início de uma forma de ódio antijudaico que não havia aparecido no palco da história antes do advento do cristianismo, e que foi construído sobre uma visão [...] de que as Escrituras judaicas [na verdade] testemunham sobre Cristo, que foi [portanto] rejeitado pelo seu próprio povo e cuja morte, por sua vez, leva à condenação desse povo.[11]
Ao contrário do que afirmam antirracionalistas como Pondé, a ideia de que todo um povo – incluindo os bebês – possa ser “culpado” de algo, não vem da racionalidade política – ou de qualquer racionalidade –, mas da irracionalidade mítica (a primeira referência conhecida a um genocídio está no Velho Testamento, em que é perpetrado por Deus através do dilúvio). O método do genocídio nazista foi o da moderna racionalidade instrumental, porém o objeto desse genocídio nasceu da irracionalidade mítica. E antes da modernidade.
A famosa mutação do antissemitismo religioso medieval em antissemitismo “racificado” ou “biológico”, ligado a modernos conceitos “científicos” de raça e eugenia, então se relativiza: o antissemitismo moderno não é idêntico ao medieval, mas tampouco lhe é inteiramente estranho; mesmo porque, é dele diretamente originado. Há, portanto, muitos aspectos relevantes da modernidade que não nasceram nela ou dela, mas dos quais ela é, na verdade, herdeira. Um conservador como Pondé deveria saber disso. Entre esses aspectos, está o próprio totalitarismo.
Quando estados religiosos como o Afeganistão sob o Taleban voltam a existir, torna-se mais fácil imaginar a vida na Europa cristã. Por exemplo, episódios de brutal vontade totalitária, como a expulsão de toda a comunidade judaica espanhola pelos “reis católicos” (não por acaso). Se esse episódio, em pleno século XV, já possui algo da nascente ideia moderna de Estado nacional, tem muito de protototalitarismo cristão medieval – cujas manifestações incluem da conhecida censura do Index Prohibitorum às menos conhecidas destruições de comunidades “heréticas”, como a dos cátaros. A “caça às bruxas” (tampouco uma criação original do Estado totalitário moderno) começara, em todo caso, muito antes – mais exatamente, no século IV:
Todos os povos sobre os quais exercemos regência bondosa e moderada devem [...] converter-se à religião comunicada aos romanos pelo divino apóstolo Pedro [...]. Apenas aqueles que obedecem a esta lei poderão [...] chamar-se cristãos católicos. Os demais, que declaramos verdadeiramente tolos e loucos, carregarão a vergonha de uma seita herética. Tampouco poderão ser chamados igrejas seus locais de reunião. Por fim, que os persiga primeiramente o castigo divino, porém depois também a nossa justiça punitiva.[12]
De alguma maneira, a justiça punitiva por sentença celestial vigorará até 1789 (Revolução Francesa, nêmesis histórica dos conservadores), pois os reis absolutistas o eram por “direito divino”. Nada, porém, impede que Pondé, isto é, que um obscurantista, ataque desdenhosamente a racionalidade moderna e a modernidade em si:
A modernidade é uma adolescente, uma menina de 14 anos, que chega a um lugar e começa a organizar. Essa é a imagem. Imagine essa menina, que entra na empresa e começa a administrá-la. Joga fora o que foi feito até hoje, começa a inventar todos os procedimentos.
É a modernidade. Perde-se o quê nesse processo? Perde-se o que uma adolescente de 14 anos perderia administrando uma empresa. Quase tudo.[13]
Mas talvez se ganhe algo: de Galileu a Einstein, passando por Newton e Darwin e chegando à descoberta recente do bóson Highs, base do Modelo Padrão da física contemporânea, ao lado do fim da servidão medieval e da própria emergência do capitalismo, que os verdadeiros liberais não desprezam, ao contrário, pois liberou as maiores forças produtivas (e destrutivas) da história, para usar a expressão de Marx (gerando, por exemplo, da medicina à energia atômica, e da Revolução Industrial à arte moderna, entre otras cositas más). A modernidade foi, obviamente, a maior e mais poderosa conquista da história da humanidade. Apenas um cego, um louco ou um obscurantista nega convictamente o óbvio.
8. O antimodernismo é um obscurantismo
A modernidade é uma experiência radical do nada, dissolução da tradição [...], destruição da crença na validade do mundo espiritual, uma verdadeira transcendência para o nada.
Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo, que não reconhece nada como definitivo, e toma como medida última das coisas o eu e os desejos do eu.
A religião é realmente a declaração universal da liberdade do homem sobre a servidão imposta por outros homens, e da servidão aos seus próprios desejos, que é uma outra forma de servidão humana.
Estes três parágrafos, que parecem perfeitamente articulados como um silogismo, o primeiro condenando a modernidade como “destruição da crença na validade do mundo espiritual” (no que tem felizmente razão), o segundo apontando o que toma então o lugar do “mundo espiritual”, ou seja, “o ego e os desejos”, o terceiro fechando o círculo argumentativo ao reafirmar a religião como libertação desses desejos, não pertencem, apesar de tudo, ao mesmo texto. Na verdade, sequer são do mesmo autor. Trata-se de uma colagem.
O primeiro parágrafo é, de fato, de autoria de nosso midiático filósofo brasileiro; o segundo, porém, tem como autor o papa Bento XVI; já o terceiro pertence a Sayyid Qutb, o principal ideólogo da Irmandade Muçulmana egípcia, de cuja ideologia fundamentalista se alimentam todos os grupos radicais islâmicos, como o Hizbolah, o Hamas e a própria Al Qaeda.[14]
Não é por acaso que o antimodernismo radical de um filósofo brasileiro contemporâneo se revela próximo da visão de extremistas islâmicos (além de mais próximo destes do que de outras vertentes conservadoras) e do papa. O próprio fundador da Irmandade Muçulmana, Hassan Al-Banna, pode então sintetizar com precisão esse giro argumentativo, que começou com a afirmação de que “a modernidade é uma experiência radical do nada” e terminou com sua redução à servidão vã dos desejos: “Todos os prazeres trazidos pela civilização contemporânea não resultarão em nada, senão dor”.[15] Pondé assinaria tranquilamente esta conclusão, que parece ter saído de sua própria pena: dois obscurantistas são mais parecidos entre si do que dois liberais.
9. A ignorância singular de Aristóteles e a pluralidade das mentes conservadoras
“A ideia de que um cara que escreveu um livro há 150 anos evidentemente sabe mais do que Aristóteles causa risadas numa mente conservadora”.[16] Não sei se isso é evidente, a não ser que esse “cara” tenha escrito há 400 anos e se chame Galileu: neste caso, sim, ele evidentemente sabe mais e melhor do que Aristóteles. Galileu publicou, em 1638, a obra fundadora da física moderna e, de certo modo, da própria ciência moderna, osDiscorsi e dimostrazioni matematicheintorno à due nuove scienze attenenti alla mecanica & i movimenti locali. Já Aristóteles escrevera, 2 mil anos antes, um livro que por 2 mil anos comprometeu grandemente o conhecimento ocidental, não apenas pelo que diz, mas pelo que não faz.
Tudo o que Aristóteles afirma em uma de suas principais obras, a Física, é virtualmente inútil, pois irreal, errado, falso, chame-se lá como quiser. Destaque para suas descrições das leis dos movimentos:
Podemos assumir que todo movimento é ou natural ou não-natural, e que o movimento que é não-natural para um corpo é natural para outro como, por exemplo, é o caso dosmovimentos para cima e para baixo, que são naturais e não-naturais para o fogo e para a terra respectivamente. Daí segue-se necessariamente que o movimento circular, sendo não-natural para esses corpos, é o movimento natural de alguns outros. Além disso, se, de um lado, o movimento circular é natural para alguma coisa, essa coisa deve certamente ser algum corpo simples e primário que é levado a se mover com um movimento circular natural, assim como o fogo é levado a se mover para cima e a terra para baixo.[17]
Tudo isto é Aristóteles, e tudo isto é bobagem. Não por acaso, Aristóteles jamais chegou perto do empirismo, ou seja, do experimentalismo – que não inexistia por completo na Grécia clássica: tratou-se, ao fim e ao cabo, de uma opção intelectual, derivada do idealismo de seu mestre, Platão. Todo o “conhecimento” de física de Aristóteles, enfim, deriva da pura especulação (além de certa tradição conservadora de seu tempo). Daí a física moderna nada dever a Aristóteles, mas tudo a Galileu.
Outro problema da afirmação de Pondé é pressupor a existência de uma “mente conservadora” (que concordaria então necessariamente com seu desdém pelo conhecimento moderno). Obviamente, ele está citando o título de Russel Kirk, The conservative mind. Mas isto nada justifica, pois Pondé se apodera do título e o tira de contexto, além de omitir tratar-se de uma citação, para afirmar a unicidade do conservadorismo, do qual ele se pretende um representante. Pior: para dizer que o conservadorismo condena ou desdenha a modernidade, como ele próprio. Porém, não apenas o conservadorismo é plural (todo fascista é conservador, mas nem todo conservador é fascista), como, sendo plural, não pode ter em Pondé um representante. Este pode, no máximo, representar uma parte do espectro conservador (as diferenças com Rosenfield e, principalmente, com Coutinho, nos textos do livro em especial, são mais do que evidentes). E, de fato, ele a representa: a parte antirracionalista, antimodernista, anticientificista e obscurantista.
Fui amigo de outro representante dessa parte do espectro conservador, o falecido poeta Bruno Tolentino. O que apenas reforça a pluralidade dos conservadores. Pois mesmo integrando a corrente de pensamento de Pondé, Tolentino dele se distingue de dois modos fundamentais: tinha um enorme e verdadeiro senso de humor, enquanto o humor de Pondé tende para o choque áspero e fácil; não escrevia textos de divulgação para defender o antirracionalismo, o antimodernismo, o anticientificismo e o obscurantismo, mas poemas. E Tolentino, afinal, escreveu alguns sonetos belíssimos. Isto levaria a uma nova discussão, impossível de ser feita aqui, sobre as relações entre ética e estética (Leni Riefenstahl, Ferdinand Céline, Ezra Pound etc.) e a uma conclusão cabível: a beleza é um argumento autoevidente e suficiente. O mesmo não pode, modernamente, ser dito de Deus. Nem, felizmente, das crenças dos radicais, sejam de esquerda ou de direita.
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