Prédios abandonados ou inconclusos podem ter uma nova destinação. Existem alternativas no direito, arquitetura e engenharia a fim de resolver esse problema
Edifício Galeria XV de Novembro é um dos casos emblemáticos por estar inacabado há 56 anos ANA PAULA APRATO/JC
Infiltrações, estruturas debilitadas e muita sujeira. Assim podem ser definidos os esqueletos de Porto Alegre, prédios cujas obras foram interrompidas por algum tipo de problema, geralmente de ordem financeira. Mais do que meros tijolos amontoados, eles muitas vezes representam feridas expostas a céu aberto por anos a fio. Entretanto, a causa não está perdida. Existem alternativas no direito, arquitetura e engenharia que buscam mudar esse cenário.
“Hoje, as técnicas de recuperação estrutural estão muito avançadas. Para condenarmos um prédio, ele precisa estar com uma série de patologias construtivas graves”, atesta Mario Nasi, perito da Nasi Engenharia. Apenas em 2011, a empresa realizou laudos de mais de 50 prédios porto-alegrenses não finalizados ou em condições precárias. Um dos vistoriados foi o Edifício Galeria XV de Novembro, considerado um dos casos emblemáticos do município por estar inacabado há 56 anos. “Embora necessite de manutenção, o prédio é recuperável. Para isso, é preciso ter intervenções, como criar áreas de reforço e tratar a corrosão das armaduras”, explica Nasi.
Apesar do veredicto da perícia, a revitalização do XV de Novembro exige o desate de um nó complexo em relação à propriedade do local. “Há mais de 300 números de matrícula, um para cada comprador da época”, destaca a procuradora-geral adjunta da cidade, Simone Somensi. Foram realizadas reuniões com representantes dos comerciantes da galeria e com Sérgio Figueiredo – uma das pessoas que detêm a posse a partir do segundo piso -, mas não houve consenso. “Por isso, o município estuda alternativas para o uso desse prédio”, completa Simone. Atualmente, a Procuradoria-Geral do Município (PGM) está criando uma estratégia jurídica a fim de colaborar com uma solução para o espaço. A proposta se encontra na fase final de elaboração, mas não tem data definida para ser divulgada.
Os irmãos Marques, Sérgio e Sônia Figueiredo alegam ter comprado, em 1989, o edifício, com exceção do térreo, onde hoje funcionam estabelecimentos comerciais. A procuradoria municipal reconhece a posse do trio, mas faz uma ressalva. “Eles detêm a posse a partir do segundo andar e se declaram proprietários por força de um ato notarial, o que, para mim, não tem o efeito jurídico de transferência de propriedade. Eles não apresentaram matrícula no nome deles”, assinala Simone.
Paralelamente, a família Figueiredo diz estar em negociação com uma construtora para levar adiante um projeto de recuperação. A representante da PGM saúda o ingresso de um investidor e destaca que a prefeitura não interferirá em um provável desfecho favorável. “Caso não fechemos negócio, pretendemos vender alguns terrenos que temos em Torres para pagar a revitalização do prédio”, revela Marques, que habita e atua como corretor de seguros em um dos andares utilizados. Do quarto ao 19º pavimento, as entradas estão bloqueadas.
Excetuando o segmento onde Marques mora e trabalha, o estado de conservação da estrutura é deficiente. Teias de aranha e paredes infiltradas são facilmente perceptíveis nos corredores. Do lado externo, os tons verdes do limo e da vegetação crescente destoam com a cor laranja dos tijolos.
No momento, a intenção dos Figueiredo é vender o espaço, que de forma frequente é alvo de sondagens.
Recentemente, foi ventilado que a Caixa Econômica Federal havia comprado a área para construir residências. O banco, através de sua assessoria de imprensa, nega a transação. De concreto, houve um projeto apresentado pouco tempo atrás pela Brigada Militar para a criação de moradias populares. A iniciativa não prosperou.
Especialistas sugerem formas para resolver questão das obras abandonadas
Os esqueletos espalhados por Porto Alegre atiçam a imaginação dos arquitetos e urbanistas. O caráter desafiador de se consertar algo até então sem perspectiva move alguns dos profissionais das classes, gerando distintas interpretações e sugestões. Independentemente do cunho da retomada, seja comercial, residencial ou social, uma conclusão surge como consenso: não é por falta de projetos e ideias de reformulação que as iniciativas deixarão de ser realizadas.
“O importante é que se tenha uma solução, seja para reformular ou desmanchar. Os esqueletos deixam a paisagem urbana muito ruim e uma sensação de que a cidade está incompleta”, define Jorge Debiagi, vice-presidente da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura seccional Rio Grande do Sul (Asbea-RS). Para reverter a situação, Debiagi defende a criação de uma legislação preventiva ao abandono de obra, algo que, para ele, ainda não existe.
O debate sobre o que fazer com obras inacabadas também chega à universidade. Há quem foque os estudos nos esqueletos, como o arquiteto e urbanista Marcelo Gotuzzo. O profissional cursa mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) com tese sobre iniciativas de comunidades em cima desses prédios. Inspirado em ações realizadas nos Estados Unidos e na Europa, ele acredita que as edificações inconclusas podem ser revitalizadas na forma de empreendimento social.
Desta maneira, os ambientes abrigariam iniciativas do terceiro setor e sediariam, por exemplo, cursos profissionalizantes. A gestão do prédio ficaria a cargo de um agente com experiência na realização de projetos filantrópicos, que abriria espaço para a atuação de entidades oriundas da periferia. “Há bastante prédios abandonados no Brasil, especialmente em áreas centrais das cidades, e muitas iniciativas de grupos que se organizam para diminuir as desigualdades. Na periferia, muitas vezes essas comunidades não aparecem”, constata.
Os projetos também procurariam inovar no formato arquitetônico. “A ideia é usar elementos que, corriqueiramente, a gente não vê no mercado”, diz Gotuzzo. Atualmente, o Autogéré, como é chamada a iniciativa, analisa casos em distintas localidades do País onde seria possível executar a proposta.
Retomada de obras tem sido mais constante
Outro edifício no Centro de Porto Alegre que chama a atenção está localizado na avenida Júlio de Castilhos, ao lado da Igreja Universal. As fachadas estampam a disparidade de realidades. Ao lado de um suntuoso templo, verifica-se uma estrutura abandonada, enferrujada, pichada e cuja caliça caía na rua até meses atrás.
Há situações, porém, onde o reinício da obra é uma realidade. Algumas construções de décadas passadas foram retomadas após os moradores prejudicados decidirem levar a questão à Justiça. A advogada Lourdes dos Santos, do escritório Santos Silveiro, explica que, caso a maioria dos condôminos reivindique, há legitimidade ante a incorporadora para dar sequência à edificação.
Desde a falência da Encol, no final dos anos 1990, o escritório de Lourdes já liderou mais de uma dezena de retomadas, participando de toda a trajetória até se conseguir uma nova empreiteira para a obra. O trâmite, porém, é longo. “É uma equação que chega torta no início. Em um primeiro momento, não se percebe viabilidade. Mas, com um trabalho intenso de negociação, torna-se viável”, analisa.
Esse trabalho envolve uma série de etapas. Primeiro, faz-se uma radiografia do imóvel, verificando-se os motivos da paralisação. Depois, analisam-se as leis da cidade e o plano diretor vigente para vislumbrar possíveis alterações no projeto. Na sequência, buscam-se informações sobre as dívidas hipotecárias e os credores. Ao fim, arranjam-se acordos com a construtora e o agente financeiro que assumirão a responsabilidade. Em geral, a empreiteira contempla os adquirentes prévios e fica encarregada de comercializar os apartamentos restantes. Todas as arestas precisam ser aparadas até o barulho das máquinas voltar a soar.
Decretos podem encaminhar alternativas
No intuito de estancar a criação de novos esqueletos e encaminhar soluções para os existentes, os poderes Executivo e Legislativo de Porto Alegre começam a tomar algumas medidas. Desde o final do ano passado, dois decretos ligados ao tema foram sancionados.
A primeira das iniciativas recentes foi aprovada em 27 de dezembro de 2011. Na oportunidade, passou a vigorar a Lei Complementar nº 683. A proposição, de autoria do vereador suplente Reginaldo Pujol, estabelece, segundo o texto, “benefício de alíquota predial, o terreno cuja edificação não for concluída em virtude de falência do empreendedor ou de sua destituição por abandono de obra, tendo os adquirentes, em condomínio, assumido a conclusão da obra.”
Desta forma, a taxa do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) cobrada para a edificação com trabalho reiniciado é reduzida de 6% para, no máximo, 1,5%. Caso seja necessário, ainda é possível negociar uma diminuição do Imposto Sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). “A lei é retroativa e serve como um estímulo ao construtor que assume a obra”, destaca Pujol.
A economia de custos é significativa se somado o tempo que geralmente leva o trâmite burocrático até a construção começar pela segunda vez. “Um processo rápido de retomada leva de seis meses a um ano. Nos casos mais complexos, o prazo para resolução pode passar de dois anos”, explica Lourdes dos Santos, advogada do escritório Santos Silveiro.
O estado de conservação dos prédios se tornou mais um foco de atuação. Em abril, passou a vigorar o decreto que regulamenta a exigência de laudos de inspeção para edificações abandonadas e malconservadas. “O objetivo é garantir as condições de segurança do edifício para a população. O decreto sistematiza todas as ações a serem tomadas”, destaca o secretário de Obras e Viação, Adriano Borges Gularte.
O regulamento diz que obras inacabadas ou paradas há mais de 180 dias serão obrigadas a apresentar o documento. Após uma chamada, o proprietário tem 90 dias para providenciar os papéis. Caso contrário, cobra-se multa de R$ 300,00 a R$ 4 mil. Se as medidas necessárias não forem tomadas, a prefeitura as executa e, judicialmente, pede ressarcimento.
Negócio na planta exige cuidados extras do comprador
Com a expansão do setor imobiliário no Brasil capitaneada pelos incentivos habitacionais concedidos pelo governo federal, as reclamações às construtoras cresceram. Atrasos na entrega e propaganda enganosa estão entre as queixas mais frequentes.
Menos recorrente, o abandono de obras é outro problema por vezes enfrentado. Seja qual for o motivo, os cenários remetem a uma questão poucas vezes lembrada pelos compradores: os cuidados necessários na hora de adquirir um imóvel na planta.
“É fundamental que o comprador peça o memorial descritivo, que especifica todos os itens do contrato de compra e venda. Além disso, toda documentação envolvendo a tratativa deve ser guardada, incluindo contrato, e-mails trocados com a construtora e até folders.Qualquer registro pode ser aproveitado depois como prova”, afirma Roberto da Silva Rocha, advogado com atuação no ramo imobiliário. Segundo Rocha, o principal obstáculo enfrentado pelos consumidores se refere ao prazo de entrega.
Até pouco tempo atrás, os construtores dificilmente figuravam nas estatísticas de órgãos de defesa do consumidor. Mas a situação tem mudado. De janeiro de 2010 até maio deste ano, apenas o Procon de Porto Alegre recebeu 135 reclamações de variados cunhos sobre 13 companhias. Maioria expressiva delas, 119, contra a Tenda.
Para se precaver de situações incômodas, o diretor institucional da Associação dos Moradores e Mutuários no Rio Grande do Sul, Anderson Machado, recomenda um planejamento por etapas antes de fechar negócio. O primeiro passo consiste em verificar o histórico da empresa, cercando-se de informações junto a outros compradores e meios de defesa ao consumidor.
Na sequência, é importante analisar as especificações da planta do imóvel, como o tamanho e a localização de cada dependência. Por fim, quando da entrega da chave, deve-se considerar se a qualidade da construção corresponde ao que acordado inicialmente.
“As pessoas, muitas vezes, fazem o negócio na emoção. O corretor apresenta várias vantagens e o comprador acha tudo bonito”, constata Machado. O dirigente ainda lembra que, caso o adquirente se sinta lesado em função de um eventual atraso, ele pode solicitar reparação por danos morais e materiais por via judicial. “A carência pactuada por lei é de 180 dias. Então, se a obra atrasar mais de seis meses, o comprador pode recorrer à Justiça”, alerta.