“Vamos, cara. Suba na minha moto”, dirá com um tom de voz de quem está acostumado a dar ordens. O seu autoritarismo é ajudado por esta pistola escondida no cinto, a qual fotografei pouco depois de subir na garupa de sua máquina negra de duas rodas. 'El Confidencial' embarcou para um giro por Caracas com o braço armado do chavismo.
Caracas, domingo, 20 de abril, 15:30.
No bairro 23 de Enero, um lugar populoso onde Hugo Chávez é um deus. Sua face, convertida num símbolo depois de sua morte, aparece desenhada por aqui e acolá, nos muros, nos edifícios, e inclusive na forma de uma tatuagem no decote de uma jovem venezuelana. O fundo musical provém de uma festa na rua, osvallenatos (um estilo popular) preenchem o ar.
Membros do coletivo Tres Raíces posam para uma foto na frente da sede no bairro 23 de Enero em Caracas, Venezuela. Foto: Andros Lozano.
Ao chegar no estacionamento de um antigo ferro-velho, um homem imenso de pele mulata em cujo pescoço brilha um colar de santería (culto africanista) aperta a minha mão com a sua mão direita quente como um vulcão. Com a outra mão sustém um recipiente plástico no qual continuamente cospe sua saliva enegrecida pelo chimó, o tabaco de mascar no qual ele é viciado. O homem que tenho diante de mim é o senhor deste território. Aqui, até mesmo as ratazanas são respeitosas com ele. Conta-me que se chama John. Porém eu sei que está mentindo, sei que ele usa um pseudônimo para esconder a sua verdadeira identidade.
Cheguei neste bairro através de um carro conduzido pelo meu informante, que conseguiu arranjar um encontro depois de três semanas de ligações infrutíferas. Em seguida, com um olhar desafiador, John pergunta o que exatamente eu desejo. Explico a ele que busco conhecer o funcionamento de um 'coletivo', os grupos civis armados que dizem proteger com zelo – e milhares de tiros – a Revolução Bolivariana.
Depois, após fazer uma revista e ser enviado ao terceiro andar numa sala trancada a chave e com seis dos seus garotos de confiança ao meu redor, John, o chefe do coletivo Tres Raíces, aceita a minha proposta. “Vamos, cara – disse-me já na rua. Suba na minha moto. Vou te mostrar quem nós somos aqui”. Graças ao seu beneplácito converti-me no primeiro jornalista espanhol que percorreu Caracas na motocicleta de um líder da guerrilha urbana do chavismo.
O líder do coletivo Tres Raíces. Foto: Andros Lozano.
Sem capacete, montado na sua Kawasaki KLR 650, John segue rua acima do temido bairro 23 de Enero. Segue-nos, também motorizados, cinco dos seus rapazes de máxima confiança. Os transeuntes e motoristas com que cruzamos reconhecem o meu anfitrião; olham-no com uma mescla de receio, temor, respeito e, quiçá, admiração.
Tipos como o que conduz a moto em que vou na garupa, e que afirma “preservar a paz por onde caminha o povo”, são acusados de atuar contra o narcotráfico para tomar seus mercados, ou acusados de ajudar a guarda bolivariana a dispersar – com tiros diretos e o rosto coberto – as manifestações da oposição como as que o país convive faz três meses. “Estamos sob ordens do Governo. Se nos chamarem, lá vamos nós'”, reconhece abertamente. Sabe-se também que os coletivos tem desempenhado um papel central na estratégia chavista durante as eleições, patrulhando armados e de motocicleta – sempre de motocicletas! – para intimidar os eleitores.
Membros de um dos coletivos que convivem no 23 de Enero. Foto: Andros Lozano.
Enquanto conduz por um labirinto de ruas escarpada, nada amistosas para um estrangeiro, John me conta que nasceu e cresceu aqui, entre estas esquinas marcadas por tiros e com a notícia de um novo morto quase a cada amanhecer. Também é aqui onde ele deseja morrer. “Seguirei na luta sempre, não o duvides”. Hoje, na faixa dos 50 anos de idade, veste calças de vaqueiro e uma camisa negra. Dos seus olhos não retira nem por um instante esses óculos de sol que lhe dão um ar de justiceiro matador. Quando lhe pergunto sobre os alegados vínculos com o narcotráfico, ele prefere falar da 'sua' obra.
“Nós temos trazido tranquilidade para este lugar”, me diz, apontando para um parque pelo qual passamos, “nestas ruas tem sido feito justiçamentos públicos. Há dois anos um garoto não podia brincar tranquilo sem o temor de presenciar uma desgraça. Agora, quem estupra, rouba ou mata, recebe aquilo que faz por merecer. O resto é apenas falatório”. Num instante, como que para afogar a conversa por um momento, gira o manete da moto fazendo uma aceleração brusca. É sua forma de me aconselhar a fazer outro tipo de perguntas.
John, o chefe do coletivo Tres Raíces. Foto: Andros Lozano.
Pilotando com maior velocidade, fazendo com que um vento fresco nos golpeie o rosto, John reconhece que, como líder do Tres Raíces, maneja com 'rigor militar' um batalhão de 160 civis armados. Contudo, seu grupo de 'cães' fiéis consiste apena de uma dezena, os mesmos que, conforme dá a entender, frequentemente lhe acompanham para 'abater' os manifestantes que protestam nas ruas.
São eles que protegiam nossa retaguarda esta tarde enquanto percorríamos essas estradas sinuosas que nos levaram para as proximidades do Quartel de la Montaña, de onde Hugo Chávez dirigiu o infrutífero Golpe de Estado de 1992 e que lhe custou dois anos de cárcere. “Com as armas e com nossa vida – confessa sem transparecer temor – defenderemos o legado do comandante. Não nos importa ter perdido uma porção de garotos.”
Neste instante aproveito para perguntar se ele vai me mostrar este revólver que acaba de aparecer entre minhas coxas e as costas dele. Está ali, junto ao seu cinturão. Do meu assento vejo a empunhadura prateada em cima de sua camiseta. Foi um golpe de sorte. Sua pistola descobriu-se por causa de um salto que a moto deu ao cruzar um quebra-mola. “Nunca vou te mostrar minha arma”, disse-me quando chegamos à sede do coletivo. Porém isso não importa mais. Furtei-lhe um par de fotos com minha câmera. “Desce. Tens liberdade para falar com meus garotos...”.
A origem dos coletivos armados
Coletivos como o que lidera John cresceram com a chegada de Chávez ao poder, em 1999. O ex-presidente os viu como a via perfeita para se perpetuar no governo graças ao poder que estes exercíam nos bairros mais pobres. Embora digam defender a democracia e basear-se em valores como a solidariedade e o bem comum, muitos deles – não todos – converteram-se em mini-exércitos autônomos que ditam as suas próprias leis nos bairros de Caracas.
Tal como o Tres Raíces, o coletivo La Piedrita ou o Los Tupamaros são míticos no bairro 23 de Enero. O controle que exercem sem chegar a entrar em conflito entre si lhes permite até mesmo dizer se um policial ou um guarda nacional, os quais são acusados de “corruptos e de estar relacionados ao narcotráfico”, podem pisar no seu território. A diretora do Grupo de Estudos Políticos da América Latina, Natalia Brandler, explica que “os bairros foram convertidos em pequenos feudos onde mandam inclusive acima do Governo Central.”
Seja dito que estes pistoleiros à serviço da causa chavista já existiam desde a década de 70 como grupos de autodefesa que atuavam contra as quadrilhas do crime organizado nas paróquias mais pobres de Caracas. O surgimento de Chávez lhes deu amparo, armas e financiamento através de ajudas camufladas como subvenções sociais. Dinheiro que tem sido usado para custear as motocicletas, telefones celulares, câmeras de vigilância... Chávez chegou a dizer que, uma vez conquistada a presidência do país, os coletivos seriam o braço armado da sua revolução. Agora, com a impunidade que gozam por se tratar de organizações da esquerda marxista, semeiam o terror entre a oposição com o beneplácito do Executivo de Nicolás Maduro.
Logo do Tres Raíces.
Depois de descer da Kawasaki entro na sede do Tres Raíces, um pequeno recinto com paredes brancas em cujo interior um rapaz de 25 anos conserta uma bicicleta. Quando ele se inclina sobre a coroa da bicicleta noto que, tal como seu chefe, ele carrega uma pistola oculta na parte baixa das costas. “Nunca se sabe, cara”, diz com uma piscadela. Ao seu lado, sobre uma mesa, estão vários walkie talkies que eles utilizam “para manter a comunicação durante as operações” contra os traficantes.
“Primeiro tentamos enxotá-los pacificamente dos edifícios de onde manejam seu comércio. Se não vão, empregamos a força”, explica-me agora Alfredo Cánchica, um cinquentão que diz ter ajudado a acabar com a presença dos vendedores de droga em setores do 23 de Enero, como La Cañada, La Zona F, o Bloque 32 ouLa Central, lugares que passaram ao seu domínio.
“O que vocês fazem com a droga confiscada?” A pergunta incomoda Alfredo que titubeia durante alguns segundos. Em seguida, percebo que ele dirige o olhar para John que está atrás de mim e que faz algum tipo de indicação. “Queimamos”, respondeu.
Novamente na rua, de frente à porta da sede, encontro estacionada uma vintena de motocicletas similares à do John, são motos desse tipo que qualquer venezuelano sente temor quando elas se aproximam do cidadão à noite. Na Venezuela são sinônimos de tentativa de assalto, de sequestro ou assassinato, país que recentemente foi assinalado pela ONU como o segundo país no mundo com o maior índice de mortes violentas durante 2013 – 53,7 homicídios para cada 100 mil habitantes (3).
Contíguo à área onde as motos ficam estacionadas, o coletivo tem um ginásio particular. Ao lado de uns halteres pesados está Raimon Mata, um jovem super musculoso e com várias tatuagens pelo corpo. Conta-me que é campeão sulamericano de Full Contact e Kickboxing. O rapaz, que também é membro do Tres Raíces, afirma que os Estados Unidos promove os protestos que o país vivencia desde princípios de fevereiro e com um saldo de mais de 40 mortos, em sua maioria do lado dos manifestantes.
“Os ianques querem desestabilizar o país para se apropriar dos nossos recursos naturais (a Venezuela possui uma das maiores reservas petrolíferas do planeta). Eles estão por trás de cada líder opositor e dosguarimberos (estudantes radicais que organizam barricadas) (4). Por isso são nossos inimigos e atuamos toda a vez que eles saem às ruas. Se querem uma explosão social, nós responderemos”, conclui seco.
“Estamos com os companheiros Bascos. Oxalá existissem 10.000 ETA”
Raimon já viajou várias vezes à Cuba para receber treinamento militar e indoutrinamento ideológico. Assegura-me que outros companheiros estiveram na Colômbia incorporados às FARC, ou no País Basco com o ETA, grupo terrorista que ele louva. “Eles lutam por sua identidade. Nós, para proteger o desejo do povo. Estamos unidos pelo coração com os companheiros Bascos. Oxalá existissem 10.000 ETA”.
Raimon Mata, à esquerda, junto de um companheiro do coletivo. Foto: Andros Lozano.
Enquanto me despeço de Raimon, à nossa frente passa um rapaz alto com ar esquivo. Não faz a barba há uma semana e usa uma camiseta estilo NBA. Ao perguntar seu nome, responde que posso chamá-lo como quiser. “Mas se tirar com a minha cara, te mato”, responde com um meio sorriso irônico. “Algo você fez para se esconder assim”, digo a ele. “Atentei a tiros contra o ônibus da deputada María Corina Machado(novembro de 2011)”, responde orgulhoso. Logo o rapaz foi embora e eu, impelido pela voz de John, volto para a garupa da moto dele.
“Ao cair da noite, terás de ir embora. Mas, antes, quero lhe levar a dois lugares”. John, que noto mais próximo em seu tom de voz, desvia por uma avenida larga costa abaixo. Ele me conta que desde seus 11 anos de idade sabe manejar uma pistola como a que tenho a dez centímetros da minha virilha. Conta-me que já levou oito tiros ao longo de sua vida, mas sem dar detalhes sobre quem fez os disparos. “Isto irá comigo para o cemitério.”
Aos poucos, junto de seus rapazes, chegamos a uma pequena praça onde estacionam suas motos. Encontramos três estátuas. “Estes são Simón Bolívar, nosso libertador frente aos espanhóis; sua companheira amorosa, Manuelita Sáenz; e Manuel Marulanda, fundador das FARC. Junto ao Che, Fidel Castro e Chávez, são nossos modelos”. Rapidamente abandonamos o lugar. São quase seis da tarde e John não quer se despedir de mim sem que eu veja a queima do Judas, uma tradição da Semana Santa venezuelana. A tarde vai-se esvaindo e, novamente na garupa da sua Kawasaki, acelera mais do que nunca. Ao ponto de não nos escutarmos mais.
Chegamos no horário exato. Um boneco de trapos está suspenso por uma corda no meio de uma pracinha repleta de populares. Um homem de uns 70 anos encharca-o com gasolina e, ao dar seis horas no relógio, taca-lhe fogo. Frente ao fervor popular, diz que assim vão acabar “o Henriquito (referindo-se ao Henrique Capriles, líder opositor) e a Corinita (a deputada María Corina Machado)”. John e sua malta de pistoleiros riem às gargalhadas. “Assim será. Acabarão consumidos pelas chamas”, afirma, pouco antes de me dizer adeus, este homem alto, de pele morena e colar de santería que impõe a sua lei com puro chumbo. Já é chegada a noite. O 23 de Enero já não é mais território seguro.
Notas:
1 – Este grafite seria belo, não fosse o conteúdo profano, revolucionário e apologético do genocídio e do materialismo ateísta onipotente (“marxismo”). Tais reproduções despertaram grande indignação na comunidade cristã. De modo diferente aos clérigos brasileiros, os Venezuelanos protestaram vivamente. Para mais imagens: http://blogs.noticierodigital.com/visionciudadana/?p=92
2 – O analista político Heitor de Paola em sua obra prima elucida que eficiência ou incompetência são na verdade parte do ardil estratégico comunista, diz ele: “(…) A grande vantagem de chegar ao governo é que permite utilizar uma nova tática, antes impossível: combinar as pressões 'de baixo' com as pressões 'de cima'. Enquanto no nível político o governo administra o país e controla a rotina de governar – sua eficiência ou ineficiência também são reguladas pelas necessidades de planejamento de longo prazo [continua ele na nota de Rodapé #5 no livro] Por exemplo: a atual (julho/2007) “incompetência” do governo petista para atrair sobre ela [a incompetência] todas as críticas da oposição sem que a sociedade perceba a extrema competência em expandir o processo de tomada do poder via Ong's, MST, demais “movimentos sociais”, etc. (...)” – O Eixo do Mal Latino-Americano e a Nova Ordem Mundial. Cap. II. Pg. 77.
3 – Particularmente não me agrada esse tipo de métrica (tantas mortes por 100 mil), pois ela dessensibiliza a informação e dificulta, se não abstrai completamente, a percepção do dado real. Falar em 53,7 mortes por 100 mil habitantes é o mesmo que dizer que ocorre 1 assassinato para cada grupo de 1.860 venezuelanos. É como se, todo ano, os venezuelanos fossem repartidos em grupos de 1.860 pessoas e uma entre elas fosse sorteada para ser assassinada. Penso que esta outra forma de medir essa situação dá ao leitor uma percepção mais clara dessa grande roleta russa representada pelo descontrole intencional da criminalidade com finalidade revolucionária. Ser assassinado na Venezuela é pouca coisa mais provável do que jogar 10 números e acertar 5 na Dupla Sena da Caixa Econômica Federal.
Para fins de contextualização com o Brasil, importa dizer que a Venezuela é menos violenta do que Salvador, Bahia (1 assassinato para cada 1.650 habitantes); ao passo que Porto Alegre-RS sustenta um índice um pouco melhor (1 assassinato para cada 3.300 habitantes). A despeito dos imensos esforços midiáticos para "vender" a sensação de insegurança e apesar do fomento à criminalidade, São Paulo, capital, é substancialmente mais segura (1 assassinato para cada 8.700 habitantes) sustentando índices similares ao de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. (Dados coletados por mim junto às Secretarias de Segurança Pública estaduais referente ao período 2003~2012, i.e., desde a ascenção de Lula-Dilma-PT).
Um adendo necessário: embora a situação de São Paulo-SP não seja especialmente violenta aos cidadãos de um ponto de vista puramente estatístico o mesmo não pode ser dito em relação à situação da Polícia paulista. Na campanha de execução de policiais do final de 2012 o índice de homicídios dentro do contingente da polícia atingiu a cifra apocalíptica de 1 assassinato para cada grupo de 1.165 policiais! Um policial em 2012 estava exposto a um risco de morte 7.5 vezes mais elevado do que um civil na capital. Este grau de violência suportada pela polícia equivaleria a mais de 35.000 assassinatos só na população paulista, aplicado ao Brasil significaria 171.000 mortes anuais! Não é a toa que naquele ano (2012) houve o maior número de pedido de dispensas em 12 anos! Tudo isso, em síntese, é o Ódio aos Brasileiros.
4 – Embora o jornalista Andros Lozano defina as “guarimbas” como obra de estudantes radicais ele está mal informado. A jornalista Graça Salgueiro, especializada em estudos da América Latina, explana que a tática dos guarimbeiros se trata de “uma resistência pacífica em que as pessoas se concentram nas ruas fechando passagens, SEM O USO DE QUALQUER TIPO DE ARMA OU VIOLÊNCIA”.
Tradução: Francis Lauer