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Ministro Celso de Mello, decano do STF |
O Supremo começa a fazer história ao apontar o caminho da prisão para políticos e poderosos.
Cinco mensaleiros foram condenados e, pela veemência com que os ministros repeliram a corrupção, a tradição de impunidade pode estar no fim.
DANIEL PEREIRA
e LAURA DINIZ
Ex-prefeito de São Paulo, o empresário Paulo Maluf transita com desenvoltura pelos gabinetes do Congresso, onde cumpre seu terceiro mandato como deputado federal. Mas, se deixar o país, o mesmo Maluf será imediatamente preso sob a acusação de desviar milhões de reais dos cofres públicos.
Essa contradição é um exemplo acabado da impunidade que impera no Brasil e chancela a máxima popular segundo a qual políticos e poderosos não se sentam no banco dos réus nem vão para a cadeia. Foi com base nessa tradição degradante que o ex-presidente Lula — não por acaso um aliado de Maluf — se lançou numa ofensiva para desmontar a “farsa do mensalão”, o maior escândalo de corrupção da história política do país.
A meta de Lula era clara: limpar a própria biografia e salvar petistas processados. Inocentar a companheirada ou, pelo menos, adiar o julgamento a fim de garantir a prescrição dos crimes imputados pelo Ministério Público.
Considerado o histórico nacional, o plano lulopetista parecia fadado ao sucesso. Parecia, não fosse uma contundente reação do Supremo Tribunal Federal (STF).
Depois de resistirem às pressões do ex-presidente para que o mensalão fosse julgado após as eleições municipais, numa demonstração clara de que instituições republicanas não se curvam às vontades imperiais de políticos recordistas de popularidade, os ministros do STF condenaram, na semana passada, cinco dos 37 réus do processo.
Oficialmente, a pena não foi imposta, mas já é certo que todos eles serão condenados à prisão em regime semiaberto ou fechado. Isso mesmo: os poderosos, como os ladrões pés-rapados, expiarão os pecados na cadeia. Entre eles, o deputado João Paulo Cunha (PT-SP), ex-presidente da Câmara dos Deputados, o petista Henrique Pizzolato, ex-diretor de marketing do Banco do Brasil, e o empresário Marcos Valério, o principal operador do mensalão.
O grupo foi condenado por corrupção ativa, corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro. Ao votarem, os ministros deixaram claro que a tradição de impunidade — uma marca nacional desde o descobrimento — está seriamente ameaçada, principalmente quando próceres da República desviarem recursos dos contribuintes, como demonstrado no processo, para bolsos privados.
“Agentes públicos que se deixam corromper e particulares que corrompem servidores do estado são, corruptos e corruptores, os profanadores da República, os subversivos da ordem institucional, os marginais da ética do poder”, disse o ministro Celso de Mello, decano do Supremo.
A contundência das palavras não foi um ato isolado. Pelo contrário, a indignação foi a tônica das manifestações.
Para determinarem a culpa dos cinco réus, os onze ministros votaram “condeno” 224 vezes. Entremearam razões jurídiéas com recados claros de que, daqui para a frente, a Justiça será intransigente com quadrilhas especializadas em assaltar o Erário.
Uma mudança de postura e tanto.
Há décadas a legislação prevê os parâmetros de punição para corruptos e corruptores.
Mas a interpretação da lei era feita sob uma ótica extremamente leniente, de modo que só os flagrantes eram punidos. Como corruptos nem sempre assinam recibo, agem entre quatro paredes e evitam deixar rastros, tais flagrantes eram tão comuns como notas de 3 reais.
Essa conveniente blindagem montada sob o argumento da necessidade de provas cabais começou a ruir com o voto da ministra Rosa Weber, caloura do tribunal e indicada pela presidente Dilma Rousseff.
Rosa lembrou que, quanto maior o poder do réu, maior sua facilidade para esconder o ilícito. Daí a necessidade de a Justiça formar seu convencimento como se montasse peças de um quebra-cabeça. Faltava vontade institucional para tanto. Não falta mais.
O Supremo decidiu abraçar as chamadas provas indiciárias — aquelas que não comprovam diretamente um fato, mas, vistas em conjunto e analisadas sob o prisma da lógica dedutiva, fazem crer que o tcil fato ocorreu. Ninguém gravou em vídeo João Paulo Cunha aceitando receber dinheiro de Marcos Valério para beneficiá-lo em uma licitação na Câmara e, depois, no contrato firmado entre a Casa e a agência do empresário.
Mas os dois tinham uma relação próxima antes de o parlamentar se tomar presidente da Câmara. Cunha nomeou a comissão que escolheu o vencedor da licitação.
A agência de Valério, que havia sido desclassificada por falta de capacidade numa concorrência anterior, sagrou-se vencedora em 2003. Durante o processo de licitação, a mulher de Cunha sacou 50000 reais de uma conta de Valério no Banco Rural. Perguntado sobre o saque, o deputado mentiu.
Disse que a esposa fora ao banco pagar uma conta de televisão por assinatura. Depois, mudou a versão, que também não se sustentou porque era baseada em provas forjadas. Sob as barbas do petista, Valério desviou dinheiro da Câmara dos Deputados.“Espantoso”, exclamou o ministro Cezar Peluso.
Essas e muitas outras evidências não deixaram margem para dúvidas na cabeça de nove dos onze ministros do Supremo. Ficaram vencidos apenas os MM ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli.
Condenado por corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro, João Paulo Cunha deve receber pena de prisão, na melhor das hipóteses para ele, em regime semiaberto. Se isso ocorrer, terá de passar a noite na cadeia.
Para o sociólogo Demétrio Magnoli, a condenação do petista tem um peso simbólico relevante. Afinal, quando chefiava a Câmara, Cunha chegou a ocupar interinamente a Presidência da República.
“Se uma figura que chegou a presidir o país por dois dias for para a cadeia, a possibilidade de políticos saírem ilesos diminuirá radicalmente.”
Há também os efeitos práticos.
Julgado pelo STF, Cunha desistiu na semana passada da candidatura à prefeitura de Osasco. Os votos dos ministros também minaram o ânimo dos cardeais petistas.
A análise corrente é de que o rigor adotado pode levar à condenação de todos os políticos, o que inclui o ex-presidente do partido José Genoino, o ex-tesoureiro Delúbio Soares e o ex-ministro José Dirceu, apontado como o “chefe da quadrilha”.
Em conversas com companheiros, até o atual presidente do PT, Rui Falcão, concorda com a tendência de condenação generalizada — apesar de debitá-la na conta de uma suposta motivação política. As teorias conspiratórias sempre servem de muleta para os males petistas.
“Os ministros disseram que teve corrupção, peculato, desvio de dinheiro público.
Foram muito duros.
A tendência é condenar todo mundo.
João Paulo e Genoino estão muito abatidos”, disse um petista íntimo de Lula.
“Não vai sobrar nada.
Está um constrangimento enorme”, acrescenta outro — este interlocutor da presidente Dilma.
Os sinais emitidos não são mesmo animadores para o partido e os demais réus do processo.
Na semana passada, além de rechaçarem a necessidade de uma prova cabal, os ministros traçaram outras premissas desfavoráveis aos ladrões de dinheiro público.
Disseram que para comprovar a corrupção passiva não é preciso que o político ou servidor use o cargo em benefício do corruptor.
Se o político aceita a vantagem indevida, não precisa fazer nada em troca para se configurar a corrupção. “Basta a possibilidade de praticar algum ato de ofício, porque o delito está em pôr em risco o prestígio e a honorabilidade da função”, disse Peluso em seu último voto antes da aposentadoria.
Foi um recado claro: da autoridade pública espera-se compostura, além de devoção ao cargo e ao bem público — e não flertes com interesses privados.
Para se configurar a corrupção ativa, segundo o entendimento da maioria absoluta dos ministros, basta que o bandido ofereça a vantagem ilícita, ainda que o servidor a recuse.
Da mesma forma, o crime de peculato passou a valer em toda a sua extensão: será condenado o servidor que desviar ou se apropriar de dinheiro ou qualquer outro bem, público ou privado, de que tem a posse em razão do cargo.
Foi assim que caiu a casa de Henrique Pizzolato, ex-diretor de marketing do Banco do Brasil, condenado por unanimidade.
Pouco importava se os mais de 70 milhões que ele ajudou a desviar para as contas de Marcos Valério eram públicos ou privados — os ministros entenderam que, sim, eram públicos. Pizzolato tinha acesso aos recursos por ser funcionário do banco e não se comportou com a compostura exigida pelo cargo.
O petista possivelmente será condenado a cumprir pena em regime fechado (cadeia) — assim como Marcos Valério e seus ex-sócios Cristiano Paz e Ramon Hollerbach. Valério, por sinal, já passou duas temporadas na prisão — ambas, no entanto, breves.
“A tese da acusação aponta o desvio de dinheiro público. Se estamos preocupados com a dignidade dos réus, e devemos estar preocupados com a dignidade dos réus, também temos de nos preocupar com a dignidade da vítima, que é toda a sociedade brasileira”, sentenciou o ministro Luiz Fux.
Segundo especialistas ouvidos por VEJA, a mudança de mentalidade dos julgadores reflete os avanços institucionais do Brasil e o aumento da intolerância social com a corrupção.
“O julgamento do mensalão representa um marco porque inverte o que chamamos na sociologia de expectativa de comportamento”, diz o filósofo e professor de ética Roberto Romano.
Antes do julgamento, a expectativa natural dos cidadãos era de impunidade praticamente absoluta.
A regra agora passa a ser a punição. JNTas últimas duas décadas, a polícia e o Ministério Público se fortaleceram na investigação dos crimes contra a administração pública, e a imprensa se aperfeiçoou na revelação das denúncias.
O próprio mensalâo foi descoberto pela imprensa, investigado por uma CPI do Congresso e depois denunciado pelo Ministério Público.
É o que se espera de instituições fortes num regime democrático, por mais que se descontentem os poderosos de turno.
Com o desenvolvimento econômico do país e a melhora das condições de vida dos cidadãos, que inclui mais acesso à informação, a pressão popular contra a impunidade tende a ganhar corpo.
“Mantidas as condições atuais, de aprimoramento da democracia e manutenção da estabilidade econômica, já podemos considerar essa primeira parte do julgamento como o prenúncio de uma era de mais probidade”, prevê Roberto Romano.
Além da punição penal dos réus, a decisão do Supremo subsidiará ações de improbidade administrativa para reclamar que corruptos e corruptores devolvam o dinheiro roubado.
Só assim o crime terá castigo efetivo — carcerário e financeiro.
“Isso é crucial.
Já pensou se Valério sair da cadeia como um ricaço ou se os dirigentes do Banco Rural forem passar férias na Europa?”, questiona Magno-.
“A punição dos culpados e a devolução do dinheiro são igualmente importantes para compor a noção de justiça e mostrar que o crime não compensa”, reforça Romano.
Só assim, alegam os dois, os corruptos pensarão duas vezes antes de roubar. A restituição aos cofres públicos é uma exigência antiga. Consta do Sermão do Bom Ladrão, do padre Antônio Vieira.
O texto reclama o fim da impunidade e foi citado pelos ministros durante o julgamento.
Não foi à toa.
Apesar de escrito há mais de 300 anos, continua atual.
Retrata uma realidade secular que a Justiça brasileira finalmente decidiu encarar de maneira dura e, acima de tudo, corajosa.
by Veja