Maior parte dos policiais britânicos não usa armas; modelo teria dificuldades de ser implantado no Brasil (Foto: EPA)
Um forte controle sobre o acesso a armas de fogo e condições sociais e culturais fizeram com que as polícias da
Inglaterra e do País de Gales disparassem armas apenas três vezes entre maio de 2012 e abril de 2013 – sem matar ninguém.
Os números chamam atenção quando comparados aos de outros países. No Brasil, a conta dos tiros dados por ano nem é feita. Em relação às mortes provocadas por policiais, um levantamento feito pela BBC Brasil apontou que, no ano passado, foram mortas 1.259 pessoas pela polícia em 22 Estados brasileiros que forneceram dados à reportagem.
Mesmo nos Estados Unidos, país desenvolvido como o Reino Unido, a média é de 400 mortos pela polícia a cada ano.
Segundo especialistas ouvidos pela BBC Brasil, três fatores ajudam a explicar a baixa letalidade da polícia britânica: os policiais praticamente não usam armas; os cidadãos (e criminosos) também raramente têm armas; e há menos pobreza e desigualdade social do que no Brasil.
Não andar armada é característica central da identidade da Metropolitan Police - que responde pela região de Londres - desde que ela foi criada, em 1829. No início, alguns policiais tinham armas. Mas, após 1936, apenas oficiais com treinamento específico passaram a usar armas de fogo - hoje, eles estão restritos a cerca de 5% do contingente.
Toda força policial britânica tem uma unidade armada, mas este é o último recurso que costuma ser utilizado - e precisa ser autorizado com antecedência. No dia a dia, o policiais usam armas de menor potencial ofensivo, como Tasers (que contêm o suspeito por meio de um choque elétrico).
"A polícia britânica não quer nem precisa carregar armas de forma rotineira", disse o presidente da ACPO (Association of Chief Police Officers), Hugh Orde.
"Nosso modelo de policiamento depende de uma estreita ligação entre o público e a polícia. O uso mínimo de força e um mínimo de interferência com o cidadão são uma parte vital desse vínculo, gerando confiança e legitimidade", afirma.
Na opinião de Orde, ao olhar para outras polícias do mundo fica óbvio que "trazer armas de fogo na equação do policiamento não resolve o problema dos crimes violentos ou protege policiais de serem feridos ou mortos."
Desarmamento
De fato, os números de policiais britânicos mortos não se comparam aos do Brasil. Desde 2007, apenas dois policiais morreram baleados em serviço na Inglaterra e no País de Gales.
A ausência de armas não torna os policiais britânicos extremamente vulneráveis porque a maior parte dos criminosos também não está armada.
O Reino Unido tem uma das legislações mais restritivas ao uso de arma em todo o mundo. O controle se tornou ainda mais rígido em 1997, um ano após um massacre em uma escola na Escócia ter gerado uma campanha popular que culminou na proibição das armas de fogo no país.
"A posse de armas legais ou ilegais no Reino Unido não está na escala de muitos países, o que é uma coisa boa. Como resultado, a polícia geralmente não encontra infratores transportando ou usando armas com muita frequência", diz Richard Garside, diretor do Centro para Estudos de Crime e Justiça no Reino Unido.
Entre 2012 e 2013 (os dados são calculados por ano fiscal), dos 551 homicídios cometidos no país, apenas 29 foram causados por arma de fogo, segundo dados do ONS (Office for National Statistics). No Brasil, armas de fogo são responsáveis pela maior parte dos homicídios.
Mas os especialistas acrescentam que os baixos índices de letalidade no Reino Unido estão, de uma forma mais profunda, ligados à própria estrutura da sociedade.
"Tem muito mais a ver com a história, a cultura, os níveis de desigualdade. Não temos favelas como as do Brasil. Quando há altos níveis de desigualdade tende-se a ter mais crimes e outros problemas", afirma o professor da Universidade de Wolverhampton Peter Waddington, especialista em polícia e segurança.
"O Reino Unido, comparado a outros países, é relativamente mais pacífico por causa dos nossos arranjos sociais e políticos. A polícia é, em um sentido importante, até irrelevante" acrescenta Garside.
Como exemplo desse arranjo social, Garside aponta, por exemplo, o sistema de saúde britânico, gratuito, como um diferencial em relação até mesmo aos Estados Unidos – país mais rico do mundo, mas onde a polícia mata muito mais do que no Reino Unido. Outro diferencial, diz, é que os Estados Unidos permanecem “profundamente divididos” por questões raciais.
Brasil
Seria possível, então, adotar o modelo britânico no Brasil e ter uma polícia sem armas?
"Você não tem em Londres o tráfico de drogas com fuzil, dando tiro em cima do policial. Os instrumentos da polícia para conter e solucionar os crimes precisam ser proporcionais", diz o coronel Ubiratan Ângelo, da ONG Viva Rio e ex-comandante geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Na opinião dele, o Brasil poderia se inspirar no Reino Unido em relação à legislação sobre o acesso a armas. Ângelo afirma que 60% das armas aprendidas pela polícia foram produzidas de forma legal, mas acabaram caindo nas mãos de bandidos.
"A arma dá uma falsa sensação de segurança. Primeiro, porque ela acaba ficando com os criminosos. Segundo, porque ela só oferece segurança se a pessoa está preparada para usá-la. Ter uma arma no porta-luvas ou guardada em casa não adianta nada, porque o ladrão não avisa quando vai vir", diz.
O diretor do Brazil Institute do King’s College de Londres, Anthony Pereira, também acha que “o Brasil está longe de uma polícia desarmada”, devido ao grande número de armas na sociedade e aos altos índices de homicídio.
"Há cerca de 50 mil homicídios por ano no Brasil. Nestas circunstâncias, será politicamente muito difícil convencer a polícia a andar desarmada", diz.
Pereira, assim como outros especialistas, afirma que a polícia britânica não deve ser idealizada: há suspeitas de corrupção, acusações de preconceito e críticas tanto quanto ao uso de armas Taser como de armas tradicionais – no início do mês, uma pessoa morreu baleada pela polícia, após dois anos desde a última morte.
Além disso, o caso do brasileiro Jean Charles de Menezes, morto por policiais após ser confundido com um terrorista na esteira dos atentados no metrô de Londres em 2005, mostra que ainda há muitos problemas a serem enfrentados.
Mas a noção de policiamento comunitário, diz Pereira, é algo que poderia ser aproveitada pelo Brasil. No Reino Unido, afirma, as delegacias são mais acessíveis às pessoas, a polícia tem reuniões mensais com as comunidades e seu trabalho é complementado por membros civis.
"Se houver pressão política, acho que a Polícia Militar pode caminhar no sentido de se tornar uma polícia mais pacífica e voltada para a comunidade”, afirma.
A abordagem dos temas da violência policial e da violência contra os policiais como parte da cobertura especial da BBC Brasil sobre as eleições de 2014 foi sugerida em uma consulta com leitores promovida pelo #salasocial - o projeto da BBC Brasil que usa as redes sociais como fonte de histórias originais.
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