by Demétrio Rana
Ilustrações Luciana Oliveira
Procure nos mecanismos de busca da internet qualquer referência ao
Campeonato Brasileiro de Vela de 2013. Você não encontrará nenhum
link. O erro não é do Google: a competição não existiu. Mesmo assim, o
governo federal paga, mensalmente, por meio do Bolsa Atleta, algumas centenas
de milhares de reais a velejadores que ficaram nas três primeiras colocações na
disputa de cerca de 60 provas (apenas dez delas olímpicas) desse suposto
campeonato. Esse é só um dos diversos modelos de fraude no Bolsa Atleta
identificados pela reportagem da 2016.
Em reunião do conselho técnico da Confederação Brasileira de Vela
(CBVela) em abril de 2013, a entidade decidiu que só indicaria as dez classes
olímpicas, as quatro pan-americanas e um total de 15 provas da categoria júnior
ao Bolsa Atleta, programa criado no governo Lula e que é a vitrine esportiva da
gestão Dilma. Só no primeiro edital de 2014, referente aos resultados
esportivos de 2013 nas modalidades olímpicas, 6.667 atletas foram contemplados
com valores que vão de R$ 370 (atletas de base e destaques em competições
estudantis) a R$ 3.100 (atletas que estiveram em Londres-2012). Um novo edital,
para as modalidades não olímpicas, foi aberto em agosto. No ano passado, essa
chamada premiou mais 866 esportistas. Aquela decisão da vela, entretanto,
acabou revisada na reunião de julho. Nela, estava presente Claudio Biekarck,
que depois seria vice-campeão brasileiro de Lightning em 2013. Graças às
mudanças nos critérios, ele receberá do governo mais de R$ 11 mil neste ano.
A Associação Brasileira da Classe Lightning foi quem organizou o
“Campeonato Brasileiro de Lightning”, na represa de Guarapiranga, com 15 barcos
de São Paulo, um do Paraná e outro do Rio. O evento não cumpriu o que manda a
Portaria 33, de 18 de fevereiro de 2014, que alterou o 11o parágrafo do artigo
30 da Portaria 164, de 6 de outubro de 2011. “Os eventos indicados, para efeito
de concessão do Bolsa Atleta, serão considerados válidos somente se
apresentarem cinco equipes ou competidores, de estados ou países diferentes,
conforme o caso, à exceção de eventos de modalidades e provas do programa
olímpico ou paraolímpico, que poderão apresentar número inferior de equipes ou
competidores, mediante justificativa da entidade nacional de administração
desportiva, aceita pelo Ministério do Esporte”, diz o texto. De 2011 até
fevereiro, a legislação, no parágrafo 70 do mesmo artigo, exigiu representantes
de cinco Estados mais a federação organizadora (seis Estados, portanto), sem
mencionar o mínimo de competidores de outros países em eventos internacionais.
Para driblar a lei, a CBVela criou um Campeonato Brasileiro de Vela com
32 “etapas” separadas, em datas diferentes (na verdade, os campeonatos de
classes) e com quase 60 provas adultas – contando masculino e feminino. Na
maioria das disputas não olímpicas, como é o caso da Lightning, não havia
barcos de cinco Estados diferentes, o que inviabilizaria a indicação da prova
para o Bolsa Atleta. Via assessoria de imprensa, a CBVela explicou que a
legislação fala em eventos, sem especificar nada sobre etapas. “O nosso
Campeonato Brasileiro teve 14 Estados inscritos”, argumentou a entidade.
Segundo a confederação, o Ministério do Esporte sempre esteve ciente do
mecanismo, apesar de a pasta ser categórica: “A prova precisa ter mais de cinco
competidores ou equipes de estados diferentes”. Não há qualquer referência, no
site da CBVela, a esse suposto Campeonato Brasileiro, nem mesmo nas súmulas
oficiais das competições disponíveis na internet. Questionada, a confederação
não enviou as súmulas das competições para que fosse calculado o número de
atletas que recebem a bolsa.
A postura leniente do Ministério do Esporte (ME) com a CBVela contrasta
com os critérios adotados perante outras modalidades. No começo de setembro,
quando já estavam abertas as inscrições do edital das modalidades não
olímpicas, a Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação (CBHP) notou, por
conta própria, que o ofício enviado pelo ministério, avisando sobre a abertura
do edital, ignorava as alterações na lei promovidas em fevereiro e não citava o
mínimo de países. Aproveitando que estava em Brasília, a diretoria da CBHP foi
ao ME, que reconheceu o erro. Ali, a coordenadora do Bolsa Atleta, Adriana
Taboza de Oliveira, explicou que o mínimo de Estados é por prova, não por
competição.
“A patinação tem muitas provas e na maioria não tem cinco Estados. Em
função de abusos, agora a prova tem que ter cinco Estados. Ela (Adriana)
explicou pessoalmente. A lei fala claramente”, diz Moacyr Neuenschwander Filho,
presidente da CBHP. No mesmo dia, ele redigiu um ofício pedindo que a exceção
aberta a provas olímpicas valha também para aquelas que constam no programa dos
Jogos Pan-Americanos, beneficiando as patinações artística e de velocidade.
A legislação que cobra um mínimo de Estados vem desde 2011, mas nunca
havia sido exigida na patinação, conforme relata seu presidente. Situação
idêntica vivia a Confederação Brasileira de Beisebol e Softbol (CBBS), outra
que cuida de modalidade pan-americana. Os campeonatos brasileiros historicamente
reúnem apenas times de três Estados (São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul),
mas só neste ano os eventos deixaram de ser válidos para o Bolsa Atleta. Se em
2013 foram 279 esportistas contemplados, o número vai cair para zero quando a
próxima lista for anunciada, em novembro.
Considerando apenas o valor de bolsa nacional (R$ 925), o governo
federal pagou irregularmente R$ 3,096 milhões a atletas das modalidades
beisebol (masculino) e softbol (feminino), somente no ano passado. Como
comparação: neste ano, 20 das 29 confederações olímpicas brasileiras receberam
menos de R$ 3 milhões da Lei Agnelo/Piva, principal fonte de recurso das
entidades. “Pode ter havido um erro”,
argumenta o secretário de alto rendimento do Ministério do Esporte, Ricardo Leyser. “Essa regra é para todos. A lei precisa ser cumprida. Se não foi cumprida no outro ano, tem que ser agora.” O “erro” vem desde 2011 e só foi notado agora, apesar de qualquer busca na internet mostrar os resultados do campeonato brasileiro com apenas dois ou três Estados. Questionado, o Ministério não reconheceu o erro. Defendendo-se, alegou que a antiga redação do parágrafo 110 era dúbia, mas não citou o parágrafo 70 da Portaria de 2011: “A entidade nacional de administração de cada modalidade somente poderá indicar evento nacional no qual estejam representadas, no mínimo, cinco unidades da federação distintas da unidade da federação que sediará o evento”. O texto não deixa dúvidas.
Por causa da mudança de
postura do ministério, a Confederação Brasileira de Beisebol e Softbol, que não
recebe verbas da Lei Agnelo/Piva e vive de recursos próprios, acredita que o
fim do apoio via Bolsa Atleta terá efeito cascata, uma vez que o dinheiro era
utilizado, pelos atletas, para pagar viagens, técnicos e inscrições – esta,
sim, sua principal fonte de dinheiro. “Pode ser irreversível para a modalidade,
porque vai haver muita desistência”, lamenta o presidente da CBBS, Jorge
Otsuka. “O único programa esportivo que realmente servia para os atletas
nacionais era o Bolsa Atleta.” Otsuka já estuda mudar o formato do Campeonato
Brasileiro, de forma que times das sete federações estaduais associadas
participem, ainda que com níveis técnicos muito discrepantesargumenta o secretário de alto rendimento do Ministério do Esporte, Ricardo Leyser. “Essa regra é para todos. A lei precisa ser cumprida. Se não foi cumprida no outro ano, tem que ser agora.” O “erro” vem desde 2011 e só foi notado agora, apesar de qualquer busca na internet mostrar os resultados do campeonato brasileiro com apenas dois ou três Estados. Questionado, o Ministério não reconheceu o erro. Defendendo-se, alegou que a antiga redação do parágrafo 110 era dúbia, mas não citou o parágrafo 70 da Portaria de 2011: “A entidade nacional de administração de cada modalidade somente poderá indicar evento nacional no qual estejam representadas, no mínimo, cinco unidades da federação distintas da unidade da federação que sediará o evento”. O texto não deixa dúvidas.
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