Stálin era um visionário: na sua paranoia criminosa, ele conseguiu apagar de fotos "oficiais" os inimigos reais (ou imaginários) da sua estimável ditadura muitos anos antes do Photoshop ser inventado.
Mas não só: com igual engenho, ele próprio aparecia em fotos decisivas, sobretudo na companhia de Lênin, como forma de mostrar ao povo soviético quem era o verdadeiro herdeiro bolchevique (tradução: era ele, e não Trótski).
Passou quase um século. Mas a tentação de "apagar" o passado não larga certas cabeças com deficit de liberdade.
Um caso aparentemente menor mostra como: leio na virtualíssima "Slate" que Ben Affleck, um conhecido ator e "liberal" americano ("liberal" no sentido esquerdista do termo), pediu à PBS (televisão pública norte-americana) que um fato da sua família não fosse incluído no documentário "Finding Your Roots" ("encontrando suas raízes").
O referido documentário, da autoria de Henry Louis Gates Jr., procura revelar ao mundo quem eram os antepassados de várias figuras públicas. E um dos antepassados de Ben Affleck era –ó miséria das misérias!– um proprietário de escravos.
Affleck, depois de um presumível achaque nervoso, pediu à PBS para apagar essa nódoa. A PBS, em grande gesto deontológico que só honra o jornalismo, concordou. Primeiro, porque o antepassado escravocrata de Affleck "não era má pessoa", disse o autor do programa (sem rir).
E, depois, porque Affleck tinha nomes mais interessantes no cardápio –generais, ativistas dos direitos humanos etc.– que não comprometiam a canonização do ator. Para que sujar essa canonização com a ovelha negra, ou branca, da família?
O caso é primoroso porque mostra duas coisas sobre a cabeça de um ator que gosta de debitar grandes lições de moralidade sobre os outros –mas que abomina os espelhos que tem em casa.
A primeira lição é a incorrigível ignorância que existe nessa cabeça: qualquer cidadão de um país com passado escravocrata pode ter antepassados pouco recomendáveis. Os Estados Unidos são um caso.
Portugal seria outro: nunca fiz uma história genealógica da família. Falta de interesse, de tempo, ou ambos. Mas não me espantaria que, nos séculos 16 ou 17, houvesse por lá um Coutinho qualquer que, depois de comprar escravos na África (normalmente de um vendedor negro, que os capturava nas profundezas da selva para os vender na costa), os transportasse depois para as plantações do Novo Mundo.
A ideia de que eu, nascido em 1976, sou responsável por eventuais crimes cometidos por antepassados 300 ou 400 anos atrás só faz sentido na cabeça analfabeta de Ben Affleck.
Confrontado com um antepassado escravocrata, bastava que Affleck usasse algum humor ("felizmente, não o conheci") para que o assunto ficasse encerrado.
Só que "humor" é palavra interdita para um moralista. E esta é a segunda lição: se o caso não servisse para fazer piada, Affleck poderia sempre pedir "perdão" pelos crimes alheios, mantendo o seu halo de santidade.
Essa atitude, aliás, tem sido moda no Ocidente desde que Bill Clinton pediu desculpa pela escravatura; Tony Blair pelas fomes da Irlanda no século 19; ou até João Paulo 2º pelas Cruzadas.
As consciências progressistas sempre aplaudiram essas expiações anacrônicas, talvez por imaginarem que, hoje, ano da graça de 2015, a nossa imaculada conduta jamais será reprovada por quem viver em 2215.
O problema é que, nos Estados Unidos, pedir desculpas não chega. E o milionário Ben Affleck poderia ser confrontado com a indústria das reparações, que nos últimos anos tem exigido quantias exorbitantes à República americana pelos crimes da escravatura.
Perante todos esses dilemas, o que fez Affleck? Simples: para proteger a hipocrisia da imagem (e o recheio da carteira), pediu o exato tipo de censura que ele é sempre o primeiro a condenar. E como sabemos disso?
Ironia final: porque o pedido de censura de Affleck foi revelado pelo WikiLeaks, essa nobre instituição que é o sonho úmido de qualquer "liberal" que se preze.
Não há maior escravidão que esta: sermos vítimas da nossa própria vaidade e estupidez.