Editorial/O Estado de S. Paulo
23 de dezembro de 2012|
Conferência da UIT divide países em um cenário que lembra o da guerra fria – e com os mesmos protagonistas
SÃO PAULO – Uma “cortina de ferro” pode estar sendo baixada para dividir a internet em duas – a aberta e a fechada. Essa perspectiva sombria, que lembra o cenário da guerra fria, inclusive com os mesmos protagonistas, surgiu como resultado da recém-encerrada conferência da União Internacional de Telecomunicações (UIT), órgão da ONU, realizada em Dubai.
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Dos 144 países com direito a voto, 89 aprovaram um novo tratado sobre os ITRs, como são chamados, na sigla em inglês, os regulamentos internacionais de telecomunicação. Os Estados Unidos, seguidos de todos os países da Europa, além de Canadá e Japão, recusaram-se a assinar o documento, sob a alegação de que ele confere aos governos o poder de interferir no livre fluxo de informações na internet. Do lado dos que firmaram o texto estão Rússia e China, além do Irã e de países árabes, todos interessados em impor alguma limitação à web.
O Brasil alinhou-se a esse grupo, com a justificativa, segundo o ministro Paulo Bernardo (Comunicações), de que o novo acordo é uma forma de combater o “monopólio” dos Estados Unidos em relação à governança da internet.
É uma referência ao fato de que o governo americano integra as instâncias decisórias na Icann (Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números), entidade privada sediada na Califórnia cuja função básica, desde 1998, é administrar os domínios da rede no mundo todo, algo essencial a seu funcionamento, mas que não exerce controle nenhum sobre o tráfego de dados na internet.
Já os acordos resultantes da conferência de Dubai, ao abrigarem uma resolução que cita a internet, na prática abrem caminho para que a UIT, uma organização intergovernamental, tenha condições de regulamentar a web.
Trata-se de uma distorção, porque a UIT é responsável por normatizar os serviços de telecomunicações, e a internet não é se não apenas um cliente desses serviços. Um exemplo desse problema é a parte da resolução que aborda o chamado “spam”, isto é, a mensagem eletrônica não solicitada, enviada em massa. Para os opositores do acordo, a definição do que é um spam, se deixada aos governos, será sempre arbitrária e muito possivelmente contrária à liberdade de expressão. Além disso, uma UIT com mais poder sobre a internet seria muito útil para as grandes empresas de telecomunicações interessadas em participar das novas formas de ganhos com a web. Por outro lado, uma vez que deixem de ser apenas meio de transmissão e passem a ter influência sobre o tráfego de dados, essas empresas poderão romper a neutralidade da rede, impondo tarifas diferenciadas para cada tipo de serviço. Tais pedágios contrariam os princípios de igualdade da internet.
Não se discute que os governos devem agir para garantir a segurança, a proteção de dados e o respeito à propriedade intelectual na internet. No mais, a atuação deve ser indireta, tal como no sistema adotado pelo Brasil, em que o Comitê Gestor da internet, do qual o governo é apenas uma parte, serve como órgão consultivo sobre a web, sem ter qualquer poder executivo sobre ela. Além disso, desde 1995 a internet está formalmente fora da Lei Geral de Telecomunicações, sendo considerada apenas um “serviço de valor adicionado”. É justamente a ausência de controles oficiais que torna a internet dinâmica, capaz de inovar continuamente, e o modelo brasileiro está entre os melhores do mundo para mantê-la assim.
Contudo, a título de tirar dos Estados Unidos o suposto controle político da internet, países com tradição autoritária tentam legitimar internacionalmente um controle do tráfego de informações na web. O resultado é que a própria UIT, entidade que interfere em questões básicas das telecomunicações, como a coordenação de recursos de telefonia e do uso do espectro de radiofrequência, sairá enfraquecida desse confronto, algo que não aconteceu nem durante a guerra fria propriamente dita. E o governo brasileiro, movido por seu eterno objetivo ideológico de se contrapor aos Estados Unidos, assinou o tratado e aprovou a resolução sobre a internet sem reservas, legitimando esse atentado.