Em 27 de abril de 1976, episódio deixou 41 mortos na Capital e entrou para a história como um dos piores incêndios do país
Aquele 27 de abril de 1976 era para ser um dia normal de compras numa das principais lojas de departamentos de Porto Alegre. Por volta das 14h, cerca de 300 pessoas se movimentavam à procura de roupas, utilidades domésticas e instrumentos musicais. No sétimo andar, clientes frequentavam o restaurante, e outros eram atendidos na barbearia.
Foi quando uma fumaça começou a ser percebida no terceiro pavimento, acima do térreo e da sobreloja. Em pouco tempo, chamas de até 800 graus Celsius assombravam a loja – por fora, formava um bloco único, mas, na verdade, era um conjunto de quatro prédios que haviam passado por ampliações e reformas. Na esquina da Avenida Otávio Rocha com a Rua Doutor Flores, o fogo nas Lojas Renner se transformaria na maior tragédia da Capital e num dos 10 maiores incêndios do país. Foram 41 mortes e cerca de 60 feridos.
Página inicial mostra os passos do trabalho da perícia - Foto: Ascom/IGP
Em menos de meia-hora, peritos do então Instituto de Criminalística – órgão pertencente à Polícia Civil e à Secretaria de Segurança Pública do RS – já observavam o local. Dois dias depois, tiveram acesso ao prédio, iniciando um levantamento que duraria oito dias. Também ouviram testemunhas e analisaram registros fotográficos. Onze quesitos, elaborados pela autoridade policial, deveriam ser respondidos. O principal deles era o quinto: pode serdeterminada a causa que deu origem ao incêndio?
Os nove andares – uma área de 8 mil m2 – foram vistoriados por peritos criminais com formação em Engenharia. Nos escombros, eles observaram o que sobrou das estruturas de alvenaria, divisórias internas de madeira, redes hidráulicas, escadas e elevadores. As instalações elétricas receberam maior atenção. Tomadas foram desmontadas em busca de indícios de curto circuito. A única irregularidade da rede elétrica foi encontrada em um aparelho de ar condicionado do quarto pavimento. Uma pequena gota de ferro fundido, com aspecto semelhante a uma pérola, indicava um curto circuito. Mas o laudo concluiu que o curto foi consequência da ação das chamas, ou do calor da grade metálica, e não a causa do incêndio.
Os peritos também avaliaram as condições arquitetônicas do local. A escada social possuía um metro de largura – metade do que preconizavam as normas técnicas de segurança da época – insuficiente para a evacuação. As janelas, fechadas hermeticamente, armazenaram os gases tóxicos e impediram o acesso dos bombeiros aos andares mais altos. E as cortinas metálicas “corta-fogo”, em modelo que demandava que fossem desenroladas, sequer foram usadas.
Do alto, o fotógrafo criminalístico Roberto Bacelar conseguiu mostrar a dimensão da tragédia - Foto: Roberto Bacelar/IGP
Três dos quatro blocos que formavam o prédio desabaram. O fotógrafo criminalístico Roberto Bacelar conseguiu caminhar por vãos de cerca de um metro de altura, que separavam os andares. “Como em todos os trabalhos, procurei fazer imagens que cobrissem 360 graus, com fotos que mostrassem os ângulos retos, os horizontais e verticais. Lembro de subir no prédio ao lado para fotografar os escombros” rememora o aposentado de 82 anos. As 178 fotos que ilustram os laudos produzidos pelos peritos são de Bacelar, que recorda ter usado uma câmera Rolleiflex, com rolo de filme de 120 milímetros. A revelação era feita na Seção de Fotografia do Instituto. “Esse incêndio marcou a todos pela grandeza. São perícias especiais, que marcam a carreira”, comenta o fotógrafo.
Os prédios ao redor da loja também foram periciados. O perito criminal Ciro Russowsky foi o responsável. “O Armazém Riograndense, que ficava ao lado, veio todo abaixo”, relembra. O perito afirma que a perícia em incêndios requer conhecimentos de Química, Física e Engenharia. “Naquela época as perícias eram mais artesanais, mas não dispensavam o conhecimento científico”, pontua Russowsky.
O laudo teve como relator o perito criminal Gilberto Morás Marques, como co-relator João Bosco Abs da Cruz e como revisor Paulo Roberto do Amaral Holsbach. Assinado em 14 de julho de 1976, foi entregue à 1ª Delegacia de Polícia da Capital. Na página 20, trouxe a conclusão sobre a causa do incêndio: “ação de corpo ígneo (cigarro ou palito de fósforo) caído ou lançado, acidental ou propositalmente sobre material combustível”.
O fogo teria iniciado nos fundos do 1º andar, próximo à escada de emergência – onde estavam embalagens plásticas, palha e o depósito de tintas e solventes que, pelo impulso de uma fagulha, provocaram grandes explosões. O laudo relata que 15 extintores de incêndio usados foram encontrados no lance de escadas imediatamente superior ao do 1º andar. Isso levou os peritos à conclusão de que a escada acabou obstruída logo no início do fogo, e serviu como uma chaminé, que propagava a fumaça verticalmente para andares mais elevados. Os documentos fornecidos pela empresa que fazia a manutenção nos extintores afirmam que a quantidade destes equipamentos era até maior do que a necessária – mas a posição em que estavam impediu que fossem usados. Por ironia, no dia do incêndio, estava sendo feita uma vistoria nos extintores.
O episódio que marcou para sempre a história da Capital provocou intensos debates sobre segurança e prevenção contra incêndios, desencadeando uma série de mudanças e aperfeiçoamentos na legislação. E desde aquela época, o trabalho técnico e científico da perícia se mostrou fundamental para desvendar fatos, apontar causas e contribuir à evolução das normas públicas de proteção da sociedade.
As 178 fotos que ilustram os Laudos produzidos pelos peritos são do fotógrafo criminalístico, Roberto Bacelar Crédito: Ascom/IGP
Texto: Angélica Coronel/IGP
Edição: Carlos Ismael Moreira/SSP