sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Psicopatocracia: o governo dos maus









Texto baseado na obra "Political Ponerology", de Andrew Lobaczewsky, psiquiatra polonês que viveu e sobreviveu em um campo de concentração sob o regime nazista.
Psicopatocracia ou, simplesmente, Patocracia é um fenômeno macrossocial no qual prolifera o mal, na forma de uma anomalia hereditária, chamada psicopatia, que é essencial para a gênese e sobrevivência de tal Estado.
O termo psicopata, em geral, nos trás à mente a imagem de indivíduos sadicamente violentos, criminosos comuns, como os mostrados nos filmes. Mas, os traços de personalidade característicos da psicopatia cobrem, na verdade, um espectro muito mais amplo de indivíduos do que a maioria das pessoas tem conhecimento.
Mais ou menos, uma em cada vinte e cinco ou trinta pessoas é psicopata. A psicopatia não está presente apenas em criminosos, mas também em pessoas bem sucedidas socialmente. São indivíduos muito egocêntricos, sem empatia pelos demais, e incapazes de sentir remorso ou culpa por seus atos. Muitas vezes, são superficialmente encantadores e sedutores, dando a impressão de possuir as qualidades humanas mais nobres. Ou seja, mantém um disfarce ou máscara na superfície que esconde sua verdadeira natureza. Em geral, os psicopatas gostam de ser admirados e bajulados, alguns costumam ser pedófilos e não sentem vergonha quando são descobertos. Estão presentes em todas as classes sociais, mas tem uma predileção por posições de poder. Não só apreciam as posses e o poder como também sentem um prazer especial a usurpar e tirar dos outros o que possam plagiar, fraudar e obter mediante extorsão ou engôdo. Esta forma de obter o que desejam lhes dá mais prazer do que o que podem desfrutar realizando algum trabalho honesto, em função de sua pouca vocação para o trabalho árduo e sistemático, que requer esforço, estudo e dedicação, como forma de obter o que desejam.
A mentira para o psicopata é como o ar que respiram. Quando são pegos em alguma mentira inventam novas mentiras e não se importam em ser descobertos, pois não são capazes de sentir vergonha nem culpa reais, embora possam até simular estes sentimentos se isto for necessário para dissimular, para manipular ou granjear boa vontade de quem querem trapacear.
Os psicopatas tem uma tendência a se associar com outros como eles, ou seja, formar quadrilhas. Para os psicopatas inteligentes e espertos não é muito difícil se infiltrar nas esferas dos negócios, da política, do direito, do sistema judicial, do governo, dos sistemas acadêmicos e outras estruturas sociais. Mas, tem uma marcada predileção por posições e cargos nos quais não precisem trabalhar muito e possam colocar os outros a trabalhar por eles enquanto se dedicam apenas a "puxar os cordões" a dar ordens. Eles possuem uma espécie de senso de superioridade perverso, que os leva a acreditar que as demais pessoas lhe devem subserviência e adulação de modo a atender seus desejos e supostos direitos superiores, naturais ou até mesmo divinos.
A inteligência média de indivíduos com este desvio é, via de regra, inferior a das pessoas normais, ainda que muitas vezes próxima ou similar. De modo geral, este grupo não contém pessoas de inteligência mais elevada, nem pessoas com grande talento artístico ou científico. Mas, eles tendem a se valer de pessoas de maior talento, manipulando-as ou dominando-as de alguma forma - seja através promessas, de ameaças ou chantagens - para alcançar seus objetivos.
Desde a infância eles aprendem a se reconhecer mutuamente no meio da multidão e desenvolvem uma consciência da existência de outros indivíduos similares a eles, com os quais tendem a se associar para tirar proveito das fraquezas e ingenuidades das pessoas comuns. São conscientes de que são diferentes à medida que se familiarizam com suas distintas maneiras de lutar por seus objetivos. Seu mundo está dividido sempre entre "nós", os "espertos" ou "especiais", e "eles", os "otários", ou "pessoas comuns".
Os psicopatas sonham com um mundo no qual sua maneira muito singular e radical de experimentar e perceber a realidade (isto é, mentindo, enganando, destruindo, usando os demais, etc.) é o modo dominante de ação, no qual sua supremacia estaria, consequentemente, assegurada. Neste mundo, as demais pessoas, os "outros", especialmente os mais capacitados tecnicamente, deveriam ser postos a trabalhar para alcançar seus objetivos, de preferência sob forma de subjugação e subserviência inconteste. Os psicopatas odeiam ser contrariados ou terem suas ideias e vontades contestadas ou questionadas, apreciam a obediência cega e a idolatria, tendem a se enfurecer e se tornar agressivos quando contrariados.
Os psicopatas gostam muito de disfarçar seus propósitos e projetos na forma de discursos e ideologias que falam em revolução e renovação, coisas como criar um "novo mundo" ou um "novo governo" sob novas denominações que escondem suas reais intenções, que é a criação de um sistema no qual possam ser dominantes, de preferência de modo permanente. Desta forma, quando chegam ao poder, tendem a fazer de tudo para se perpetuar, muitas vezes não se importando de fazer mal, caluniar, desqualificar, humilhar, prender e até matar os seus opositores se for necessário. Assim, se cria um abismo entre as massas mais morais e os iniciados da elite psicopática. Os segredos e as intenções de tais iniciados permanecem ocultos das massas, inclusive do proletariado da organização, normalmente transformados em seguidores fanatizados disposto a tudo para apoiar e defender seus idolatrados líderes.
Um observador que olha as atividades de tal organização do lado de fora tem tendência a subestimar o papel do líder e sua função supostamente autocrática. Os publicitários, os meios de comunicação e os aparatos de propaganda são mobilizados para causar uma opinião externa favorável a eles. O líder depende dos interesses da organização e, em especial, dos iniciados do comando maior, muito mais do que ele mesmo sabe que depende. É um ator com um diretor. Em uniões macrossociais, esta posição em geral é ocupada por um indivíduo privado de certas faculdades críticas (fantoche); iniciá-lo profundamente nos planos e cálculos criminais seria contraproducente, de modo que só lhe é fornecido um conhecimento e treinamento superficial suficiente para que assuma o papel que lhe é destinado e galhardamente aceito pela possibilidade de chegada ao poder. Um grupo de indivíduos psicopáticos que se escondem nos bastidores manejam o suposto líder. Se o líder não cumpre com o papel que lhe é atribuído pode ser afastado de seu posto ou até mesmo eliminado (desmoralizado, preso ou morto) pelo comando maior.
Assim vai se estabelecendo uma sociedade na qual os traços centrais da psicopatia, o egocentrismo, a falta de preocupação real com os demais, a superficialidade, a dominação, a manipulação e o narcisismo patológico vão sendo cada vez mais tolerados e valorizados. Neste contexto, muita gente que pode ter nascido "normal" vai se convertendo no que se poderia chamar de "psicopatas secundários", a partir da influência que os psicopatas vão exercendo na sociedade e na cultura com promessas de "um mundo melhor", de uma "sociedade perfeita" ou coisa do gênero, coisa para a qual se valem inclusive de intelectuais aderentes a suas causas capazes de adorná-las com teses sociológicas e filosóficas extremamente elaboradas que lhes dá uma aparência de sofisticação e qualidade pseudocientífica.
Quando o processo psicopático abarca toda a classe governante de uma sociedade ou nação, estamos diante de um fenômeno social chamado Patocracia, que só pode ser compreendido através da ciência da Ponerologia Política. Neste contexto, uma pequena minoria mentalmente doente toma o controle de uma sociedade de gente normal. Assim, indivíduos privados de capacidades suficientes para sentir e entender a maioria das pessoas e que, ainda por cima, também possuem deficiências no que se refere à imaginação técnica e às habilidades práticas (faculdades indispensáveis para administrar assuntos econômicos e políticos) vão assumindo os cargos gerenciais do governo, o que, mais cedo ou mais tarde, acaba levando a uma crise excepcionalmente grave em todas as áreas, tanto dentro do país em questão, como no que concerne às relações internacionais. Internamente, é possível que a situação se torne insuportável até mesmo para aqueles cidadãos que eram capazes de se construir um modo de vida relativamente cômodo e tranquilo para si e suas famílias.
Uma pessoa normal, que se vê privada de um cargo elevado, administra isto através de algum tipo de trabalho que lhe permita ganhar a vida através de suas habilidades. Mas, os patocratas, que nunca possuíram nenhum talento prático em especial, não tem esta possibilidade. Se a normalidade for restabelecida eles e seus semelhantes estariam sujeitos a juízo, estariam ameaçados de perda de sua liberdade, e não somente de um cargo ou privilégio. Para os psicopatas esta é uma visão conhecida e um pesadelo. Portanto, uma sistemática destruição psicológica, moral, econômica e, até mesmo, se necessário, biológica, desta maioria de gente normal é uma questão de sobrevivência dos patocratas.
Muitos meios servem a este fim, começando pelos campos de concentração, pandemias e a guerra contra um inimigo inventado, que devastará e debilitará o poder humano que coloca em perigo o governo dos patocratas. Uma vez mortos, os soldados serão decretados heróis dignos de serem venerados, "mártires da revolução" ou coisa do gênero, ícones que são endeusados e utilizados para forjar uma nova geração fiel à patocracia. Além de tudo, os patocratas dão muito pouca importância ao sofrimento, o derramamento de sangue e até à morte da gente comum. A ideologia, portanto, deve prover uma justificativa correspondente para o direito alegado de conquistar e se manter no poder. O expansionismo deriva da própria natureza da patocracia, e não de uma ideologia, porém, este fato precisa estar disfarçado de uma ideologia que possa ser difundida e aceita. Em dado momento, algumas pessoas, que no começo achavam atrativa a ideologia original, passam a se dar conta de que, na verdade, estão tratando com outra coisa. Este desencanto que experimentam tais pessoas que se deixaram seduzir e iludir de modo a aderir a tal ideologia pode ser extremamente amargo.
Depois de algum tempo, algumas pessoas da sociedade podem começar a desvendar, entender e a reunir algum conhecimento sobre esta nova realidade e suas propriedades psicológicas e, pouco a pouco, aprendem a perceber os pontos fracos de tal sistema. Os intentos da minoria patológica por se manter no poder está, portanto, sempre ameaçado pela sociedade de gente normal, cuja consciência crítica pode se manifestar. Começam a se aconselhar mutuamente sobre estes temas, deste modo regenerando lentamente os sentimentos e vínculos sociais e a confiança recíprocra. Em dado momento, um novo fenômeno ocorre: a separação entre os patocratas e a sociedade de gente normal. Estes últimos tem a vantagem no que se refere ao talento, às habilidades profissionais e o sendo comum saudável. Consequentemente, possuem algum trunfo em suas mãos. O mundo de gente normal sempre é superior ao outro quando se necessita uma atividade construtiva, tal como a reconstrução de um país devastado, na área da tecnologia, da organização da vida econômica e do trabalho científico e no campo médico. O psicopatologista não se surpreende pelo fato de que o mundo de gente normal seja dominante no que concerne a suas habilidades e talentos. Para a sociedade, no entanto, isto representa um descobrimento que cria esperança e gera tranquilidade psicológica. Uma vez que nossa inteligência é superior à dos psicopatas, podemos reconhecê-los e entender como pensam e atuam.
Ao entender este mecanismo, começamos a ter uma ideia melhor de como os psicopatas são capazes de conspirar e se articular de modo a alcançar seus intentos. Em uma sociedade em que o mal não é estudado nem devidamente entendido eles facilmente alcançam o auge e continuam a condicionar as pessoas normais a aceitar seu domínio e suas mentiras sem questionar. É muito difícil identificar um psicopata habilidoso, mas há algumas pistas que podem ser úteis. Uma delas é justamente a habilidade de mentir, negar a mentira e tentar ocultá-la sob o manto de uma nova mentira ou meia-verdade. Aliás, os psicopatas amam meias-verdades, pois é muito mais fácil mudar o significado de uma meia verdade do que o de uma verdade ou mentira completa. Uma característica muito comum na história pessoal de um psicopata é o prazer em maltratar animais ou outras crianças (bullying). A presença deste traço é praticamente um sinal patognomônico de psicopatia. Se alguém os apresentou em sua história de vida estes traços é muito provável que estejamos diante de um psicopata.
Observação: Embora o autor tenha se baseado em fatos vividos durante o nazismo este é um estudo genérico sobre um fenômeno sociológico histórico não atribuído especificamente a nenhum governo histórico passado ou atual em particular. Cabe a cada um e à sua consciência, sagacidade e capacidade de análise a eventual associação entre o fenômeno aqui descrito e casos reais da história política da humanidade.
Fonte: Political Ponerology, Andrew Lobaczewsky
Casos ilustrativos:

domingo, 30 de novembro de 2014

Desde a legalização, Uruguai não registra mortes de mulheres por aborto

Segundo Ministério da Saúde do País taxa é uma das menores do mundo

Do R7, com agências internacionais
Aborto foi legalizado no Uruguai em dezembro de 2012AP Photo/Matilde Campodonico
Desde a legalização do aborto no Uruguai, em dezembro de 2012, até a maio de 2013, nenhuma mulher faleceu vítima do procedimento. No período, 2.550 abortos foram realizados no país. A informação foi publicada pela UPI (United Press Internacional) na última semana.

Aborto é a quinta causa de mortalidade materna, segundo Conselho Federal Medicina
Segundo o Ministério da Saúde Pública uruguaio, dez em cada mil mulheres entre 15 e 44 anos já fizeram pelo menos um aborto. O subsecretário da Saúde Pública, Leonel Briozzo, informou, ainda, que o dado coloca o país entre os que registram as menores taxas do procedimento ao lado dos países europeus.
Despenalização do aborto
Na prática, a nova lei despenaliza o aborto antes das 12 semanas se forem seguidos os procedimentos regulados pelo Estado.
As mulheres podem solicitar um aborto em qualquer centro sanitário público ou privado, que a partir de dezembro de 2012 foram "obrigados a realizar a intervenção e garantir que o procedimento seja feito por terceiros em
casos de objeção de ideário", destacou à Rádio Carve Leticia Rieppi, diretora de Saúde Sexual e Reprodutiva do Ministério de Saúde Pública.
As autoridades sanitárias uruguaias publicaram um manual e um guia de procedimentos que as mulheres, os hospitais, as clínicas e os médicos devem seguir para praticar os abortos.
As mulheres podem solicitar a interrupção voluntária da gravidez até as 12 semanas de gestação, período que é ampliado a 14 semanas em casos de violação.
Em casos de má-formação de fetos ou risco de vida para mãe, esse período não tem restrições.
Uruguaias podem solicitar a interrupção voluntária da gravidez até as 12 semanas de gestaçãoAP
Previamente, as pacientes deverão passar por uma comissão formada por um ginecologista, um psicólogo e um assistente social que darão assessoria sobre os riscos de praticar um aborto e inclusive sobre a possibilidade de continuar com a gravidez e dar a criação para adoção.
Posteriormente, a paciente terá cinco dias para refletir e depois ratificar sua vontade de praticar ou não o aborto, que seguirá os critérios recomendados pela OMS (Organização Mundial da Saúde), acrescentou Rieppi.
Apesar da lei só ter sido regulamentada ao final de 2012, no Uruguai, a cada ano, são realizados mais de 30 mil abortos, segundo números oficias, embora a realidade poderia dobrar esse número, segundo algumas ONGs.

Lei é eficaz para matar mulheres, diz especialista


por Andrea Dip | 17 setembro, 2013

O ginecologista e obstetra Jefferson Drezett, que há mais de 10 anos coordena um serviço de abortamento legal no país explica porque o aborto pode ser considerado um problema de saúde pública


Por que o aborto pode ser considerado um problema de saúde pública?

A gente não classifica um problema como sendo de saúde pública se ele não tiver ao menos dois indicadores: primeiro, não pode ser algo que aconteça de forma rara e excepcional, tem que acontecer em uma quantidade de vezes significativa. E tem que causar impacto real para a saúde das pessoas. Nós temos esses dois critérios preenchidos na questão do aborto. A gente tem a última estimativa de cerca de 220 milhões de gestações acontecendo no mundo a cada ano e tem uma parcela disso que não é planejada que varia entre 30 a 35% deste total. Significa que gente deve ter 45 milhões de gestações não planejadas e muitas vezes não desejadas. Isso termina em um número grande de abortamentos induzidos. A gente calcula em torno de 20 milhões de abortamentos sendo praticados em condições inseguras no mundo. O aborto inseguro também não é uma arbitrariedade, é uma convenção da OMS para quando se interrompe uma gestação sem prática, habilidade, conhecimento e/ou em ambiente sem condições de higiene. O aborto inseguro tem uma forte associação com a morte de mulheres. E aí segundo dados formais da OMS a gente tem quase 70 mil mulheres morrendo por ano em decorrência de aborto inseguro, não é pouca gente.

Essas mortes acontecem em países onde o aborto não é legalizado?

Aí que está o nó: estas 70 mil mulheres não estão democraticamente distribuidas pelo mundo. 95% dos abortos praticados em condições inseguras acontecem em países em desenvolvimento e por coicidência a maioria deles têm leis restritivas em relação ao abortamento. Isso falando de mortes de mulheres. Se falarmos em danos permanentes, sequelas, “não morreu mas quase”, esse número aumenta significativamente. Por isso estamos falando de uma situação que tem toda a necessidade de ser tratada como saúde pública. É claro que você consegue diminuir o número de gestações indesejadas quando melhora a educação, o acesso a bens, à saude, à escola, à educação reprodutiva. Mas mesmo que a gente oferecesse metodos contraceptivos para todas as mulheres sexualmente ativas no mundo, segundo a OMS, se todas usassem direitinho, mesmo assim nós teriamos entre oito e 10 milhões de gestações por falhas dos próprios métodos. Uma coisa que precisa ser entendida é que as mulheres não engravidam porque não são responsáveis ou simplesmente não usam metodos contraceptivos. Dizer isso é pura ignorância. Primeiro porque as mulheres não têm acesso a planejamento reprodutivo nesse país e isso é um fato. Mas se a gente considerar as mulheres usando os métodos rotineiramente, com suas pequenas falhas, o número de gestações não planejadas sobe para 26 milhões. Estes métodos são fundamentais para as mulheres, mas sozinhos eles não garantem que não exista uma gestação indesejada ou até forçada. Isso vai variar de país para país, da educação, acesso a saúde, educação sexual. Temos um problema de saúde pública? Sim.

No Brasil quais são estes números?

Os números que nós temos são aproximados, porque a clandestinidade não nos permite precisão, mas a gente calcula os números de aborto induzido de forma científica. Hoje a gente tem aproximadamente 250 mil internações para tratamento de complicação de abortamento por ano no país. É o segundo procedimento mais comum da ginecologia em internações. Aí a gente calcula quantos abortos de fato devem ter ocorrido para que para que estas complicações tenham acontecido neste número. Este é o cálculo utilizado por vários países e pesquisadores. No caso do Brasil, a gente não deve ter menos de 800 mil abortos induzidos, provocados a cada ano. Também não ultrapassa um milhão. A média fica em um milhão de mulheres se submetendo a procedimentos clandestinos. Veja que aborto clandestino e inseguro não são sinônimos. O que determina a insegurança do aborto não é ele ser clandestino; é não ter prática, técnica ou ser realizado em ambiente inseguro. A diferença entre as chances de morrer em um aborto inseguro é de mil vezes maior. E aí qual é diferença já que no Brasil o aborto é proibido por lei? Depende ae a mulher tem dinheiro para pagar por um aborto seguro, mas muito caro, ou se ela é pobre e vai procurar por métodos inseguros. Acaba se criando uma desigualdade social, uma perversidade, porque uma mulher que tem um nível socioeconômico bom tem acesso a clínicas clandestinas, que não são legalizadas, mas são seguras. Esse aborto seguro pode custar mais de dois mil dólares, enquanto um aborto inseguro pode custar 50 reais. A criminalização do aborto impõe à mulher pobre a busca pelo aborto inseguro e clandestino e para as mulheres ricas a busca pelo aborto clandestino e seguro.

Cinquenta reais é o preço do remédio comprado no câmbio negro?

O aborto com remédio não é tão inseguro quanto se pensa. O mais grave é aquele que manipula o útero, com sondas, agulhas de tricô, venenos, elementos cáusticos cuja dose do veneno que mata o feto é muito próxima da dose que mata a mãe.

Claro que em São Paulo os números são muito menores do que nas regiões Norte e Nordeste do país onde a taxa de aborto em idade fertil é muito maior. No Brasil alguma coisa entre dia sim, dia não, morre uma mulher por complicação de um aborto, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde. Pode haver muitas outras mortes que não foram computadas como tal. Isso deve dar umas 180 mulheres por ano e há quem ache esse número aceitável. Mas a gente acha que uma mulher jovem morrendo em uma situação como essa, que poderia ser totalmente evitada, não é aceitavel. O aborto como questão de saúde pública é uma classificação internacional assumida pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetricia, pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetricia, pela Sociedade Brasileira de Reprodução Humana, pelo Grupo de Estudos de Aborto. Mas se o Ministério da Saúde não entende assim por questões políticas isso é uma tragédia.

Então hoje o que a gente tem do Ministério da Saúde é uma “não posição” a respeito do assunto?


É um evitar absoluto. É público, não estou denunciando nada que ninguém não conheça. No governo da presidente Dilma Roussef há uma proibição de tratar do tema do aborto. O executivo foge totalmente do assunto. E quando toma qualquer atitude que esbarre de relance na descriminalização do aborto, a bancada evangélica se coloca dizendo ‘a senhora se comprometeu conosco a não legalizar’. Agora, qual foi este compromisso, que usou as mulheres como moeda de troca eu não sei.


Jefferson Drezett / Reprodução

A pílula do dia seguinte é considerada abortiva pelos religiosos…

A questão da pílula do dia seguinte eu não sei mais como explicar porque é tão absurdo que chega a estupidez, ao patético. Não existe uma evidência cientifica que coloque a pílula do dia seguinte sob suspeita de ter um efeito abortivo periférico eventual, é uma medicação que não tem nenhuma evidência científica em relação ao aborto.

E a saúde pública está em boa parte nas mãos de instituições religiosas…

Sim. Mas a saúde pública é feita com dinheiro público. Uma Santa Casa não tem o direito de não distribuir uma pílula do dia seguinte ou não fazer uma laqueadura. Eles não abrem mão do recurso público mas querem colocar limitações aos direitos que as mulheres têm em um país laico em função de uma doutrina ideológica ou religiosa. Mas também tem outro dado interessante. Existe uma pesquisa de 2006, que conversou com as secretarias municipais de saúde de quase 800 municipios, uma parte com mais de 100 mil habitantes e uma parte com menos de 100 mil habitantes, sobre o serviço de abortamento legal. Foi perguntado para as secretarias se elas tinham serviços para atender vítimas de violência sexual e a resposta foi de que quase 90% dos municípios com mais ou menos de 100 mil habitantes diziam que sim, contavam com o serviço, tinham profissionais e serviços especializados. A pesquisa foi extensa, se aprofundou e perguntou se estavam cumprindo os ítens como prevenção do HIV, a pílula do dia seguinte e o resultado foi que mais da metade destes serviços que se dizem preparados não fazem a concepção de emergência e quando você pergunta por que, existem justificativas como falta do remédio. O Ministério da Saúde ofereceu os insumos para todos e, se não cumpriu, é responsabilidade do municipio comprar ou pedir. Mais da metade das mulheres que procuravam o serviço depois de um estupro não tiveram acesso a anti-concepção de emergência. Quer dizer, a gente tem uma cultura de violência contra a mulher, absurda, intolerável, injustificável, quando elas nos procuram, a gente é incompetente para protegê-las da gravidez, e quando estão grávidas, a gente é mais incompetente ainda para interromper, mesmo sendo algo previsto pela lei. E aí vem a segunda parte interessante. Quando você pergunta para as secretarias se elas tem o serviço de aborto legal, que faz parte do atendimento, de cara 30% já diz que não faz. Mas é obrigação fazer! 6% se recusam a falar sobre o assunto. Apenas 1,9% já tinha feito um aborto. É bonito dizer que tem, mas os serviços não cumprem as normas. Você diz que vai atender e quando a mulher chega com demandas gravissimas e você não atende isso é muito cruel. É imperdoável, é abandono. Mas qual é o percentual de ginecologistas que você acha que são contra o aborto, favoráveis ao estatuto do nascituro, contra o aborto em qualquer caso? 0,2%. 60% dos ginecologistas deseja no mínimo a ampliação das condições ou a descriminalização total. Se você considerar os que não acham que deveria ser crime, isso dá 80%.

De novo a conta não fecha, né? O que acontece então?

Existe uma questão chamada objeção de consciência. Isso é previsto pelo código de ética profissional e também pela legislação brasileira. Ninguém está obrigado a fazer uma coisa senão por força de lei. E o ginecologista não está obrigado a realizar um procedimento contra sua consciência. Essa liberdade de consciência e de não querer fazer alguma coisa que fere o princípio pessoal é individual, não pode ser coletiva e não é institucional. Uma instituição não pode alegar objeção de consciência. Uma Santa Casa não pode alegar objeção de consciência. Um professor titular de uma universidade importante não teria o direito de impor sua objeção de consciência a seus alunos. Mas isso acontece. Cabe a instituição ter médicos sem essa objeção para realizar esse trabalho.

E a raiz de todo esse embate está nos grupos religiosos?
Acho que tem um peso grande, mas não só. Em qual país o aborto é um consenso? Não é um tema que permite consenso porque existe um feto. A minha convicção não é igual a sua ou a de outra pessoa. Eu não tenho nojo do feto, eu sou obstetra, Cuido de crianças! Mas se eu tenho uma visão diferente de você, e nenhum de nós abre mão da própria visão, por que prevalece a sua? As mulheres terminam fazendo o aborto da mesma forma. Quantos fetos daquele um milhão que a gente perde por ano são poupados pela lei? Algum? Nenhum. E perdemos centenas de mulheres por conta disso. Dizem que quando a gente legalizar o aborto vai virar uma chacina. Mas não existe nenhuma experiência em nenhuma parte do mundo em que o aborto foi descriminalizado e houve uma explosão de abortos. Um dos últimos países que descriminalizou, o Nepal, em um prazo de quatro anos, teve uma queda de complicações relativas ao aborto vertiginosa. E você não tem um número de abortos aumentado. O lugar no mundo onde a mulher menos precisa fazer um aborto é na Holanda, o mesmo país onde o aborto é mais acessivel. A não permissão não reduz o número de abortos. Apenas torna-os clandestinos e traz toda essa tragédia da qual estamos falando. É uma legislação altamente eficaz para matar mulheres, porque obriga a clandestinidade e quem não tem dinheiro morre. E 70 mil mulheres mortas estão aí para mostrar que isso é verdade. A ideia de que a proibição resolve o problema é suficiente para uma parte da população brasileira. Que continuemos perdendo um milhão de fetos por ano. Que continuem morrendo tantas mulheres por ano.

Funciona assim com as mulheres desconhecidas né?

Sim. Uma pesquisa feita pela Unicamp em 2006 trabalhou com um número grande de ginecologistas e perguntou quantos eram favoráveis à descriminalização do aborto. Aproximadamente 15 ou 16% responderam sim. Aí perguntaram quais já tiveram em sua clinica particular uma paciente conhecida que teve uma gravidez indesejada e o procurou e o que ele fez. Se você juntasse médicos que ajudaram, orientaram fizeram o aborto ou encaminharam para um colega fazer, isso subia para 30%. A pesquisa foi além e perguntou se teve alguém da família deles já haviam passado por uma gravidez indesejada e pedido ajuda. O número de profissionais que ajudaram sobe para quase 50%. E a pergunta final era: “O senhor já teve uma parceira ou a senhora mesma já tiveram uma gravidez indesejada?” Quase 2000 profissionais responderam que sim. “E o que o senhor ou a senhora fez? Sobe para 90% o número de interrupções de gestações. Eu prefiro não entender isso como um falso moralismo. Quando eu entendo o motivo eu ajudo mais, e entendo melhor quando é minha filha. Mas nada como estar na própria pele. Em 30 anos de ginecologia, eu nunca ouvi uma mulher que tenha parado de usar o método anticoncepcional só pelo prazer de fazer um aborto. Para engravidar daquele canalha, ficar desesperada e ter o benefício, a satisfação de fazer um aborto. O aborto não é um bem a ser alcançado. As mulheres buscam no aborto soluções para situações extremas. A pergunta não deveria ser se você é contra ou a favor do aborto. Uma mulher que faz o aborto deve ser presa? Essa é a pergunta. E a maioria das pessoas vai responder que não. Então, por que ele é crime? Qual é o sentido?

E só criminaliza a mulher porque o pai da criança nem passa perto disso.

Só para a mulher. O cara não existe, estas são gestações espontâneas. Se o aborto fosse um tema que atingisse os homens essa questão teria terminado há muito tempo. É mais uma vez depositar sobre a mulher toda a responsabilidade do processo reprodutivo. A maior parte dos homens coloca toda responsabilidade pela contracepção para as mulheres e quando elas engravidam de maneira indesejada, esses caras desaparecem. Muitas mulheres talvez não abortassem se não fossem abandonadas pelos parceiros. Não que isso seja a solução. Mas muita mulher aborta porque não tem parceiro, não tem apoio, vai ser descriminada e assim por diante. A sociedade não dá a essa mulher qualquer tipo de acolhimento. Não estou dizendo que esse acolhimento resolveria a gravidez indesejada mas muitas mulheres são impulsionadas a esse aborto por um ambiente totalmente hostil.

E em nenhum momento essa mulher é considerada.

O Estatuto do Nascituro trata a mulher como um detalhe. Deveria substituir a palavra mulher por chocadeira humana. Ou receptáculo de esperma humano. Se for aprovado, o Brasil será o país mais atrasado, conservador e limitado no mundo em direitos reprodutivos.

A Defensoria Pública de São Paulo está defendendo uma mulher que foi denunciada por uma médica quando chegou sangrando ao PS de um hospital público.

A médica também deveria estar respondendo criminalmente, ela não pode revelar sigilo. Eu não sou policial, juiz, sou médico. Enquanto médico eu tenho principios éticos e legais a seguir. Eles determinam que você não pode revelar fato que tenha conhecimento no exercício da profissão. A não ser em circunstâncias especiais, por exemplo, se o profissional estiver sendo processado por um paciente, mas ainda assim eu sou obrigado a lembrar ao juiz que estes dados merecem sigilo. Também por força de lei, um estupro em uma criança ou adolescente, eu tenho a obrigação de comunicar às autoridades mesmo que a família não queira. Não existe sigilo nesta circunstância. Mas na lei de contravenções penais existe o artigo 66 que é absolutamente claro: o médico não tem permissão de revelar uma condição de sigilo que possa estabelecer um processo contra a pessoa. E tem aqueles profissionais que acham que tem que fazer procedimentos sem anestesia que é para a mulher aprender a não fazer mais. Mas o que tem por trás de tudo isso? A falta de clareza de lidar com o aborto como questão de saúde pública. não simplesmente para usar isso como argumento para discutir a descriminalização. É usar para discutir uma assistência humanizada, que não viole os direitos dessa paciente, e uma mudança no aprendizado sobre o abortamento. Na verdade o aborto termina como uma moeda de troca. A vida das mulheres, os direitos das mulheres e autonomia terminam como moeda de troca política. Você me apoia e a gente ferra com todas as mulheres sem nenhuma dor de consciência. A gente faz um conchavo político e que se dane quantas mulheres vão morrer no próximo ano. Eu gostaria que vocês nunca engravidassem sem querer, que nunca precisassem de um aborto, que fosse algo raro e excepcional. Mas que se acontecesse, não se tornassem criminosas por causa disso. Que tivessem a saúde protegida. Que o aborto fosse raro, legal e sempre seguro.

by apublica.org/

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Eu sei, mas não devia



Marina Colasanti

Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(1972)

Marina Colasanti
 nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.

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