sábado, 22 de outubro de 2022

Vacinas para o câncer estarão disponíveis antes de 2030, dizem cientistas por trás de imunizante da Covid-19

Casal é fundador da BioNTech, empresa alemã de biotecnologia que desenvolve aplicações para tumores como o colorretal, o de ovário e o de próstata

Por Bernardo Yoneshigue

17/10/2022 

Vacinas para o câncer estarão disponíveis antes de 2030, dizem cientistas por trás de imunizante da Covid-19. FreePik

Aguardadas como uma nova arma no combate ao câncer, as vacinas terapêuticas para tratamento de tumores podem estar mais perto do que parece de se tornar uma realidade. Segundo o casal de cientistas que fundaram a BioNTech, empresa alemã de biotecnologia responsável pelo imunizante da Covid-19 desenvolvido em parceria com a Pfizer, as aplicações estarão disponíveis para uso em até oito anos.

— Nós sentimos que a cura para o câncer, ou para (ao menos) mudar a vida dos pacientes com câncer, está ao nosso alcance — disse a imunologista Ozlem Tureci em entrevista ao "Sunday with Laura Kuenssberg" da BBC, neste domingo. — Acreditamos que isso acontecerá, definitivamente, antes de 2030 — completou o professor de oncologia Ugur Sahin.

Entre a série de aplicações em testes pela BioNTech, as mais avançadas, na fase 2 dos 3 estágios clínicos, são as injeções para o câncer colorretal, o melanoma (câncer de pele), o melanoma avançado e o câncer de cabeça e pescoço. Há ainda vacinas para o câncer de ovário, de próstata e tumores sólidos na primeira etapa dos estudos com humanos.

— O nosso objetivo é que possamos usar a abordagem de vacina individualizada para garantir que, diretamente após a cirurgia, os pacientes recebam uma dose personalizada e individualizada que induzem uma resposta imune para que as células T (de defesa) no corpo do paciente consigam rastrear as células tumorais restantes e, idealmente, eliminá-las — diz Sahin.

No início da pandemia, a BioNTech firmou uma parceria com a farmacêutica americana Pfizer e, juntas, foram as responsáveis pelo primeiro imunizante contra o novo coronavírus a receber um aval no mundo. Chamada de Comirnaty, a aplicação utiliza o RNAm para induzir os anticorpos e as células de defesa contra o Sars-CoV 2, e faz parte de diversas campanhas de vacinação pelo mundo, inclusive no Brasil.

— O RNAm age como um manual de instruções e permite que você diga ao corpo para produzir o medicamento ou a vacina. Quando você usa o RNAm como uma vacina, ele é como um manual para o 'cartaz de procurado' do inimigo. Neste caso, (são) os antígenos de câncer que distinguem as células cancerosas das células normais — explica Tureci.

Dessa forma, o sistema de proteção do corpo reconhece esses antígenos e passam a produzir defesas para atacá-los. No caso das vacinas da Covid-19, por exemplo, em vez de o imunizante introduzir o vírus inativado ou uma parte dele para que o sistema imunológico o reconheça e crie a proteção, o RNAm utiliza o próprio organismo como “fábrica” da proteína S do coronavírus, que então induz o corpo a produzir as células de defesa e anticorpos para o Sars-CoV-2.

Caso se prove eficaz no combate aos tumores, as vacinas de RNA mensageiro serão uma nova frente menos invasiva no tratamento do câncer, que hoje conta com a quimioterapia, a radioterapia e a imunoterapia como principais alternativas.

A tecnologia inovadora é uma esperança não apenas de aplicações em desenvolvimento para tratar tumores, como também para vacinas que protegem contra o HIV, a zika e outras doenças que têm imunizantes de RNA mensageiro atualmente em fase de testes.

Na BioNTech, por exemplo, há vacinas para tuberculose, malária, HIV e herpes-zóster em fases pré-clínicas. Há ainda uma formulação para o vírus Influenza (gripe) na última etapa dos estudos com humanos.

Outra empresa que conta com um amplo catálogo de aplicações em ensaios clínicos é a Moderna, que também foi impulsionada pelo desenvolvimento de uma vacina para a Covid-19, o primeiro produto da farmacêutica a de fato ser aprovado. Dedicado a vacinas de RNAm, o laboratório conduz testes com vacinas para o vírus da zika, para uma proteção conjunta da gripe com a Covid-19 e para vírus sincicial respiratório (VSR), microrganismo que causa um alto número de hospitalizações e óbitos em crianças pequenas mas ainda não pode ser evitado com imunizantes.

Cientistas criam híbrido do coronavírus em laboratório nos EUA e caso provoca polêmica; entenda

Experimento combinou variante Ômicron com a cepa ancestral da Covid-19 para entender melhor o funcionamento do vírus, mas experimento dividiu opinião de especialistas

Por Bernardo Yoneshigue

19/10/2022 

Simulação do vírus causador da Covid-19, o Sars-CoV-2. NIAD

Há menos de uma semana, pesquisadores da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, publicaram de forma preliminar seu mais recente estudo sobre o coronavírus, e os resultados já despertam uma polêmica que divide especialistas por todo o mundo. O trabalho combinou geneticamente a variante Ômicron do vírus causador da Covid-19 com a versão original do Sars-CoV-2, criando um híbrido. De um lado, houve uma reação ao experimento com críticas e receios em relação aos riscos envolvidos no desenvolvimento de um novo patógeno. Do outro, cientistas reforçaram o objetivo da pesquisa em desvendar o funcionamento do vírus, e ressaltaram a segurança da iniciativa.

A discussão em relação ao estudo, publicado em formato preprint (ainda não revisado por pares) no último dia 14, veio especialmente depois que os resultados indicaram que o híbrido, também chamado de vírus quimérico, apresentou uma taxa de letalidade de 80% em testes com camundongos – enquanto não houve óbitos entre aqueles infectados com a variante Ômicron. Ainda assim, os cientistas ressaltam que a mortalidade foi menor que aquela observada pela cepa ancestral do vírus, descoberta ainda em 2019, que levou 100% dos animais ao óbito.

Segundo os pesquisadores da universidade, o estudo foi conduzido para entender o que leva a Ômicron a ser menos patogênica, ou seja, provocar quadros da doença menos graves que as variantes que a antecederam. Para isso, eles incluíram a proteína S da Ômicron, parte que o vírus utiliza para infectar a célula humana, na cepa ancestral do microrganismo. Eles compararam então o comportamento do híbrido em animais com a versão que circula no mundo atualmente.

Com os camundongos, os pesquisadores observaram que não era a proteína S que tornava a Ômicron menos grave. Isso porque a mutação de fato levou o vírus quimérico a conseguir infectar mais facilmente as células humanas – motivo pelo qual consegue escapar com mais facilidade dos anticorpos das vacinas –, mas manteve o potencial da cepa ancestral em causar doenças graves. Em resumo, “isso indica que, embora o escape vacinal da Ômicron seja definido por mutações na S, os principais determinantes da patogenicidade viral residem fora da S”, escreveram os responsáveis pelo estudo.

A pesquisa não é a primeira que envolveu manipulação genética de um vírus em laboratório. Existe, inclusive, um tipo de estudo controverso no meio científico chamado de “ganho de função”, que amplifica a transmissibilidade e a virulência de vírus existentes para que os cientistas consigam compreender melhor o patógeno e desenvolver terapias contra ele, como vacinas. Porém, a divulgação do experimento despertou críticas de pessoas que temem a possibilidade de o novo microrganismo escapar e se disseminar na população, agravando o cenário da pandemia.

Em resposta, os responsáveis pelo estudo emitiram uma nota em que negaram até mesmo que houvesse o “ganho de função” no experimento e reforçaram a segurança da pesquisa, realizada em laboratórios de biossegurança de nível 3. Eles destacaram a importância dos testes para a saúde pública e negaram a possibilidade de que o híbrido escape da universidade.

“Levamos a sério nossa segurança de como lidamos com patógenos, e o vírus não sai do laboratório em que está sendo estudado. O nosso objetivo é a saúde da população. E este estudo foi parte disso, descobrindo qual parte do vírus é responsável por causar doenças graves. Se pudermos entender isso, poderemos desenvolver as ferramentas de que precisamos para desenvolver melhores terapêuticas”, disse o diretor dos Laboratórios Nacionais de Doenças Infecciosas Emergentes (NEIDL) da universidade, e professor de microbiologia, Ronald Corley, em comunicado.

Especialistas se manifestaram concordando com Corley, e defendendo a condução de experimentos do tipo, que também ocorrem em outras instituições de pesquisa. Porém, alguns avaliam que o estudo, embora de fato não demonstre o risco alarmante que pode dar a entender, é um exemplo de pesquisas que merecem um debate mais profundo pela comunidade científica.
“Não estou sugerindo que estudos como este, usando vírus quiméricos 'vivos' deva ser realizado, pois o equilíbrio risco / benefício geralmente não parece muito convincente para mim. Dito isto, este estudo específico não é tão preocupante quanto pode parecer à primeira vista”, opinou o virologista e diretor do Instituto de Genética da University College de Londres, no Reino Unido, Francois Balloux, em sua conta no Twitter.

Aprovação de autoridade dos EUA é alvo de divergências

Outro ponto que aumentou a polêmica sobre o caso da Universidade de Boston foi o aval do Instituto de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos (NIAD). Isso porque, embora o projeto tenha sido aprovado pelo comitê de saúde pública de Boston e pela análise interna da instituição, os pesquisadores do NEIDL recebem financiamento do NIAD e, por isso, precisariam ter esclarecido os detalhes do estudo com o órgão antes de conduzi-lo.

Em entrevista ao jornal americano especializado em ciência e saúde STAT News, a diretora da divisão de microbiologia e doenças infecciosas do NIAID, Emily Erbelding, disse que os relatórios enviados com os pedidos de subsídios originais da equipe de Boston não especificava a criação de um aprimoramento do coronavírus. Emily indicou que a agência buscaria respostas com a universidade, uma vez que tomou conhecimento sobre os detalhes do estudo por meio de reportagens recentes.

No entanto, após a declaração, os cientistas do NEIDL emitiram outro comunicado, em que afirmaram terem seguido todas as diretrizes do NIAD e explicaram que aquela pesquisa específica não utilizou verba do instituto, tendo sido financiada exclusivamente pela universidade.

“Cumprimos todas as obrigações e protocolos regulatórios exigidos. Seguindo as diretrizes e protocolos do NIAID, não tínhamos obrigação de divulgar esta pesquisa por dois motivos. Os experimentos relatados neste manuscrito foram realizados com fundos da Universidade de Boston. O financiamento do NIAID foi reconhecido porque foi usado para ajudar a desenvolver as ferramentas e plataformas que foram usadas nesta pesquisa; (mas) eles não financiaram esta pesquisa diretamente”, escreveram os responsáveis.

Eles destacam ainda que um motivo que poderia levar à necessidade de detalhamento prévio com o NIAD seria um “ganho de função” no experimento, porém isso não teria acontecido no estudo. “Se em algum momento houvesse evidência de que a pesquisa estava ganhando função, tanto sob o NIAID quanto com nossos próprios protocolos, pararíamos imediatamente (a pesquisa) e relataríamos (ao NIAD)”.

domingo, 9 de outubro de 2022

Ilegalidades, abusos e contradições: Lava Jato completa cinco anos Deflagrada em março de 2014, operação tornou-se sinônimo de arbitrariedade do Poder Judiciário


Leonardo Fernandes
Brasil de Fato | São Paulo | 17 de Março de 2019 às 14:57

Ex-juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol são os nomes mais conhecidos da Lava Jato em Curitiba (PR) - Agência Brasil


A julgar pelos nomes de suas fases, a operação Lava Jato poderia ser confundida com uma obra de teatro em 57 atos. A última dialoga com as críticas aos abusos e arbitrariedades dos últimos cinco anos: “Sem Limites (57ª)”. Outros nomes remetem à origem italiana da estratégia aplicada: “Buona Fortuna” (49ª fase). Finalmente, alguns remetem a táticas de tortura e execução, como “Asfixia” (40ª fase), “Abate” (44ª fase) e “Juízo Final”(7ª fase).

A Lava Jato foi deflagrada em 17 de março de 2014, quando a Polícia Federal (PF) cumpriu os primeiros mandados de prisão contra 17 pessoas, entre elas, o doleiro Alberto Youssef, acusado de comandar um esquema de propinas em contratos entre empreiteiras e a estatal Petrobras.

As investigações ocorrem no âmbito da Justiça Federal do Paraná, onde surgiram as primeiras suspeitas. Dessa forma, a operação ficou sob responsabilidade do juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, Sérgio Moro. O Ministério Público Federal (MPF), então, criou uma força-tarefa especial para comandar os trabalhos de investigação.

Como havia, entre os investigados, políticos com foro privilegiado nas investigações, alguns inquéritos foram remetidos à Procuradoria-Geral da República, em Brasília (DF), e o julgamento desses processos ficou sob responsabilidade do Supremo Tribunal Federal (STF).

No STF, o primeiro relator dos processos da Lava Jato foi o ministro Teori Zavaski, que morreu em um acidente de avião em janeiro de 2017, e foi substituído por Edson Fachin no mês seguinte.

Segundo números do MPF do Paraná, até outubro de 2018, foram 1.072 mandados de busca e apreensão, 227 mandados de condução coercitiva, 120 mandados de prisões preventivas, 138 mandados de prisão temporária e 6 prisões em flagrante. O mesmo balanço aponta 176 acordos de delação premiada, 11 acordos de leniência (espécie de delação premiada voltado para empresas), resultando em 215 condenações de 140 pessoas.




Balanço oficial publicado pelo Ministério Público Federal. Imagem: Portal MPF

O rombo

O Ministério Público e a PF estimam que o esquema de corrupção na Petrobras provocou uma perda de R$ 42 bilhões ao país em desvios, superfaturamento de obras e fraudes em licitações, e outros R$ 6,2 bilhões em pagamentos ilícitos. Os valores contabilizados até o ano passado apontam que a empresa deveria ser ressarcida em R$ 12 bilhões, dos quais cerca de 20% já foram devolvidos.

Um relatório do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP) aponta que o prejuízo econômico causado a toda a cadeia produtiva da produção de petróleo foi três vezes maior do que o impacto gerado pela corrupção. Somente no primeiro ano, a Lava Jato retirou cerca de R$ 42 bilhões da economia brasileira, promovendo “o desmonte de importantes setores da economia nacional, principalmente da indústria petrolífera e da sua cadeia de fornecedores, como a construção civil, a metal-mecânica, a indústria naval, a engenharia pesada, além do programa nuclear” -- segundo o INEEP.

No mesmo ano, a Petrobras anunciou lucro de R$ 80,4 bilhões e uma perda de R$ 6,2 bilhões provocada pela corrupção.

Economistas são unânimes ao reconhecer que a Lava Jato alavancou o desemprego no país. Conforme o relatório do INEEP, somente a indústria naval fechou mais de 50 mil postos de trabalho entre 2014 e 2018: de 82.472 trabalhadores para 29.539, em menos de cinco anos.

A queda é agravada pela política de desinvestimentos da Petrobras, introduzida durante o governo Michel Temer (MDB) sob o argumento de “sanar as contas” da empresa. O plano atual prevê a diminuição de 25% nos investimentos, a privatização das refinarias e distribuidoras, além da implementação de uma política de preços em paridade com o mercado internacional, que eleva os preços ao consumidor.

Antecedentes

Em 2004, dez anos antes da Lava Jato, Sérgio Moro publicou um artigo acadêmico no qual elogiava os métodos e resultados da operação Mani Pulite (em italiano), ou Mãos Limpas (em português), deflagrada na Itália na década de 90. As táticas incluíam uma relação simbiótica entre Poder Judiciário e meios de comunicação para a divulgação de vazamentos seletivos, buscando enfraquecer moralmente os acusados, antes do seu indiciamento.

Sérgio Moro, hoje ministro da Justiça, quando ainda era juiz, cumprimenta o então presidente Michel Temer. Foto: Evaristo Sá/AFP

A operação investigou seis ex-premiês e mais de 500 parlamentares. Críticos da Mani Pulite afirmam que a operação abriu caminho para um período de descrédito da política, que foi aproveitado por "oportunistas". Além disso, houve um processo de sofisticação nas práticas de corrupção dentro das estatais italianas, e as bases da corrupção sistêmica foram preservadas.

A inspiração da Lava Jato também vem dos Estados Unidos. Segundo o cientista político William Nozaki, em 2010, Moro integrou a delegação brasileira participante do chamado Bridges Project, por iniciativa do governo estadunidense, com o objetivo de “trocar experiências de combate à corrupção e lavagem de dinheiro”. O encontro ocorreu dois anos após ser revelado o roubo de dois contêineres com computadores e HDs que continham informações sigilosas da Petrobras relacionadas ao pré-sal.

Meses antes da deflagração da Lava Jato, um ex-analista de sistemas e ex-funcionário da agência de inteligência estadunidense, a CIA, revelou um esquema de espionagem do governo dos EUA contra a então presidenta Dilma Rousseff (PT). "Se por um lado a gente não pode estabelecer nenhuma relação imediata de causa e consequência entre uma coisa e outra, porque a gente não tem prova, por outro lado tem uma coincidência temporal que é muito sintomática. E que precisa ser observada com atenção, porque ela vai revelar pontos de articulação que foram se explicitando mais recentemente nesse acordo que foi feito entre o MPF, as autoridades monetárias americanas e a Petrobras", alerta o pesquisador.

Estado de direito em xeque

Em reportagens publicadas pelo Brasil de Fato ao longo de cinco anos, juristas criticaram as violações de direitos praticadas pela Lava Jato, que colocam em xeque o Estado Democrático de Direito.

Cláudia Maria Barbosa, pós-doutora pela York University, no Canadá, e professora titular de Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), explicou que o modus operandi da Lava Jato ameaça, particularmente, o artigo 5º da Constituição, mas também fere documentos assinados internacionalmente. O direito de ser julgado por um juiz imparcial, por exemplo, está previsto no artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no artigo 8º do Pacto de São José da Costa Rica.

Outro problema apontado pela professora é o fato de que na Lava Jato a delação premiada não é espontânea, como prevê a lei, mas provocada mediante uma ameaça de tortura psicológica. “A delação existe, mas o uso que a Lava Jato faz dela a torna um procedimento ilegal (porque infringe a lei) e inconstitucional (porque agride, por exemplo, a dignidade humana e configura-se como ato de tortura)”.

A vida mansa dos delatores

A delação premiada nada mais é que uma negociação entre Estado e réu. O Estado prevê um acordo e oferece benefícios, como a redução ou a isenção da pena. Em troca, o réu assume que cometeu delitos e fornece indícios que ajudam a demonstrar a participação de terceiros em um ou mais crime.

Na Lava Jato, os delatores têm recebido benefícios maiores do que o previsto em lei, o que causa desequilíbrio na negociação e pode estimular cooperações falsas, segundo especialistas.

Em maio de 2016, o ex-diretor da Transpetro, Sérgio Machado, confessou ao MPF que desviou recursos da empresa durante os 11 anos em que a presidiu. Além de haver enriquecido a família com os recursos ilícitos, ele distribuiu cerca de R$ 100 milhões em propina a Temer e outros 20 políticos, entre eles os senadores Renan Calheiros, Edson Lobão, Romero Jucá, Jader Barbalho e o ex-presidente José Sarney, todos do MDB.

Depois de pagar um multa de R$ 75 milhões à Justiça, Machado foi liberado inclusive do uso de tornozeleira eletrônica, e vive hoje em uma mansão localizada em Fortaleza (CE), de frente para o mar.

Ex-senador Delcídio do Amaral, premiado por delatar na operação Lava Jato. Foto: Andressa Anholete/AFP

O ex-senador pelo Mato Grosso do Sul, Delcídio do Amaral (ex-PSDB e PT), depois de ser preso por determinação do STF e ter o seu mandato cassado pelos colegas, decidiu colaborar com a Justiça. Inelegível até 2027, Amaral registrou em 2018 sua candidatura ao Senado pelo Partido Trabalhista Cristão (PTC) -- ela foi impugnada semanas depois pelo Ministério Público Eleitoral (MPE). Ainda assim, nome e foto de Amaral figuraram nas urnas, e ele recebeu cerca de 110 mil votos, o equivalente a 7,76% do padrão eleitoral daquele estado. Hoje, Delcídio do Amaral vive em São Paulo com a família e cuida de uma propriedade herdada dos pais no Mato Grosso.

Embora tenha sido acusado de haver desviado mais de R$ 350 milhões da Petrobras, Paulo Roberto Costa, ex-diretor de abastecimento da Petrobras, vive hoje em um apartamento de luxo no Rio de Janeiro (RJ). Após delatar, ele teve a substituição da prisão cautelar pela prisão domiciliar com uso de tornozeleira eletrônica, e a fixação do tempo máximo de cumprimento da pena em dois anos, a ser cumprida em regime semiaberto, independentemente da sentença.

O doleiro Alberto Youssef, que confessou ter lavado milhões de reais em propinas provenientes de contratos da Petrobras, teve a pena fixada entre três e cinco anos em regime fechado, com progressão automática para o regime aberto, independentemente da sentença. O MP aceitou a exclusão de quatro imóveis e um terreno da lista de bens apreendidos para pagamento de multa, a autorização para que as filhas usassem bens que são, declaradamente, fruto dos crimes, e a liberação de um imóvel em favor da ex-mulher e outro em favor das filhas. Youssef vive hoje em um apartamento de luxo em São Paulo.

Pedro Barusco, ex-gerente da Petrobras, admitiu em delação haver desviado verbas da empresa por meio de contratos do petróleo desde 1996. Depois de devolver a quantia de US$ 100 milhões, ou cerca de R$ 252 milhões ao MPF, Barusco conseguiu a limitação do tempo de cumprimento de todas as penas pelo prazo máximo de dois anos, independentemente das penas fixadas na sentença judicial. O MPF se comprometeu ainda a trabalhar para que não sejam aplicadas sanções a ele ou a suas empresas em ações futuras. Assim como Paulo Roberto Costa, Barusco vive hoje em um apartamento de luxo no Rio de Janeiro (RJ).

Em agosto de 2018, a Segunda Turma do STF decidiu que não serão recebidas denúncias do Ministério Público que estejam baseadas apenas em delações premiadas. Segundo os ministros, se não houver prova mínima de culpabilidade dos acusados, a ação sequer deverá ser aberta pela Justiça.

Fundação bilionária

Na última semana, o anúncio de criação de uma fundação privada com recursos oriundos da Petrobras para supostamente promover projetos “anti-corrupção”, terminou por expor contradições dos procuradores membros da força-tarefa da operação Lava Jato.

A fundação seria resultado de um acordo entre o MPF no Paraná, a Petrobras e o Departamento de Justiça dos EUA. Segundo o documento, a estatal, onerada por casos de corrupção, teria que pagar mais de R$ 3 bilhões ao Ministério Público e às autoridades estadunidenses. Para a gestão do recurso, o MPF propôs a criação de uma fundação de direito privado, sob controle dos procuradores.

Para William Nozaki, os procuradores praticaram desvio de função ao aceitar os termos do acordo. “Um problema fundamental que se desdobra daí é esse desvio de função do Ministério Público e dos procuradores, na maneira como foi construído esse acordo”.

Segundo Nozaki, o acordo revela a inversão de valores que regem a atuação dos procuradores da Lava Jato, que buscam onerar ainda mais uma empresa que foi anteriormente lesada por práticas de corrupção. “Uma fundação privada gerida por uma corporação regional e localizada, incorporando um volume de recursos de uma empresa que foi lesada pelo processo de corrupção e utilizando, por meio de construção de uma espécie de instituição paraestatal, financiada com recursos públicos. Esse processo é equivocado do começo ao fim”.

Depois das críticas da comunidade jurídica e da repercussão na imprensa, os procuradores anunciaram a suspensão da fundação, mas não esclareceram qual será o futuro do acordo com os EUA. Na segunda-feira (11), o subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado, do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), pediu que o TCU tome providências e verifique a constitucionalidade do acordo.

Moro versus Lula

Em 14 de agosto de 2016, o procurador da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, convocou uma coletiva de imprensa para apresentar a denúncia formal contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Além de apresentar um powerpoint no qual se acusava Lula de ser o “chefe de uma organização criminosa que atuava na Petrobras”, Dallagnol deu a entender que, embora não houvesse provas, havia "convicção" de que Lula era culpado -- sem que fosse dada a ele a chance de se defender.

A coletiva do procurador aconteceu cinco meses depois da primeira ação da Lava Jato contra Lula, ocorrida no dia 4 de março, quando o ex-presidente foi conduzido coercitivamente pela Polícia Federal a prestar depoimento, mesmo não tendo sido intimado pela Justiça. A denúncia apresentada por Dallagnol foi aceita por Moro no dia 20 de setembro de 2016.

O primeiro depoimento de Lula na Lava Jato foi colhido no dia 10 de maio de 2017, quando o ex-presidente denunciou que estava sendo vítima de uma "perseguição política, jurídica e midiática".

No dia 12 de julho de 2017, Moro condenou o ex-presidente a nove anos e meio de prisão, considerando-o culpado pelas acusações de lavagem de dinheiro e corrupção passiva, relativas à reforma de um apartamento triplex no Guarujá (SP), supostamente paga pela construtura OAS em troca de contratos públicos. A defesa de Lula entrou com recurso, alegando cerceamento do direito à defesa e ausência de materialidade para a condenação. Naquele momento, as primeiras pesquisas de intenção de voto para as eleições presidenciais de 2018 apontavam Lula como favorito a se tornar presidente, ainda no primeiro turno.

Após análise do processo em tempo recorde, e em resposta ao recurso da defesa do ex-presidente, no dia 24 de janeiro, três desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) de Porto Alegre (RS) confirmaram por unanimidade a condenação de Lula e ampliaram sua pena para 12 anos e um mês de prisão em regime fechado.

No dia 5 de abril de 2018, após o STF negar um pedido de habeas corpus preventivo, Moro determinou a prisão do ex-presidente, que ocorreu dois dias depois. Desde então, Lula cumpre pena na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba.


Lula é preso no dia 7 de abril de 2018, por determinação do então juiz de primeira instância, agora ministro, Sérgio Moro. Foto: Heuler Andrey/AFP

No dia 9 de julho, o desembargador do TRF4 Rogério Favretto reconheceu a ilegalidade da prisão do ex-presidente e determinou sua soltura imediata. A decisão foi ignorada pelas autoridades da execução penal e, depois da intervenção de Moro, o presidente do TRF4, o desembargador Thompson Flores, cassou a decisão do colega e manteve Lula preso.

Ainda em agosto de 2017, o Comitê de Direitos Humanos da ONU emitiu uma liminar solicitando ao governo brasileiro que oferecesse as condições para que o ex-presidente concorresse as eleições. A determinação não foi cumprida.

Dessa forma, Lula teve sua candidatura cassada pela Justiça Eleitoral no dia 31 de agosto, cedendo o posto ao ex-ministro da Educação, Fernando Haddad (PT). No dia 28 de outubro, o candidato da extrema direita Jair Bolsonaro (PSL) foi eleito presidente da República. Logo após as eleições, nomeou como seu ministro da Justiça o então juiz de primeira instância, Sérgio Moro -- o mesmo que, ao condenar o favorito na corrida eleitoral, abriu caminho à vitória do seu principal oponente.

Edição: Daniel Giovanaz

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