sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Telefones fixos antigos



Standard Electric (chifrudinho)


Aparelho telefônico Standard Electric, no Brasil conhecido também como "chifrudinho", devido ao formato da plataforma de apoio do monofone. A Standard Electric Company é uma empresa americana fundada em Saginaw, Michigan, Estados Unidos, em 1929. Este aparelho foi desenhado em 1937. A fábrica de rádios, equipamentos de comunicação e componentes eletrônicos se instalou no Brasil em 1951, no Rio de Janeiro, no bairro de Vicente de Carvalho, com o nome de "Standard Eléctrica". A partir dos anos 1953/54, até meados dos anos 1960, boa parte das linhas telefônicas automáticas que demandavam aparelhos telefônicos com disco eram instaladas com este modelo de aparelho pela CTB - Companhia Telefônica Brasileira. Era confeccionado em baquelite, material duro e resistente, derivado do petróleo, digamos que "precursor" do plástico. O cordão ou cabo era padronizado de pano, da cor do aparelho. Alguns modelos apresentavam o fio trançado, uma trança de quatro fios pretos lisos, sem o invólucro de pano.



 
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 Standard Electric (chifrudinho) branco


Aparelho telefônico Standard Electric em baquelite branco. Foi uma versão bem limitada do aparelho anterior preto. Considerado "mosca branca", dada a sua raridade, edição limitada. Segundo depoimentos de pessoas que viveram na época, esta versão era mais vista em mansões e em gabinetes de importantes empresas, apartamentos de hotéis e flats de luxo.



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                                                             Standard Electric Sonofone


Aparelho Standard Eléctrica modelo Sonofone. Foi a versão seguinte do modelo "chifrudinho" anterior. Confeccionado já em plástico, começou a ser fabricado em 1965, e a primeira leva era da cor cinza padrão. Foi produzido em larga escala a partir de 1970. Nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro eram os mais instalados, lembrando que nesta época a companhia telefônica instalava a linha e cedia o aparelho em regime de comodato. Aparelhos telefônicos não eram vendidos em loja ao gosto do freguês como são hoje desde a década de 90.  Em meados da década de 70 começaram a ser fabricados na versão "luxo" nas cores verde, vermelho (é o caso deste da foto) e azul claro. As tampas rosqueáveis do monofone eram sempre brancas em quaisquer das cores deste modelo.




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 PTT modelo W65 de parede (Holanda)


Este aparelho foi fabricado pela empresa holandesa PTT, que era parceira da sueca Ericsson e da alemã Krone. Há componentes nele de ambas as empresas. Modelo W65 (a letra W indicava que era a versão "de parede" do modelo PTT 65). Informações obtidas no site holandês www.telefoonmuseum.com. É muito semelhante com o design da marca Standard Electric, fácil de associar e confundir, mas não é.






A foto acima foi extraída do site telefoonmuseum.com, ilustrando o modelo de mesa, PTT 65, que lembra muito o Standard Electric Sonofone:

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Standard Electric Sonofone (teclas)


O desenho é igual ao do Sonofone, mas esta versão argentina é de teclas funcionando com tom ao invés de pulse. É uma bela versão rara de um telefone eletrônico e mecânico ao mesmo tempo. A grande vantagem é que interage com centrais digitais, ao contrário dos telefones de disco decádicos (pulse).



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                                              Standard Electric argentino modelo "sapo"

                                                              
Como no Brasil, por muito tempo as linhas telefônicas na Argentina eram instaladas e o aparelho telefônico era de propriedade da empresa EntelDepois de muita pesquisa, descobri que o desenho do aparelho era o mesmo, mas houve duas empresas que o fabricaram: a Standard Electric e a Talleres Ciudadella, entre 1968 e 1980. Este da foto foi fabricado pela Standard Electric. É popularmente conhecido no país de origem como "sapo", dada a semelhança de seu bojo ao réptil supracitado.



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                                                                       Ericsson DBH


O primeiro desenho  data de 1931. Eram aparelhos semelhantes a este modelo. Marcou a chegada da telefonia automática (uso de disco e não mais manivela). Começou a ser fabricado em maior escala na Suécia em 1951. A Ericsson inaugurou sua fábrica de São José dos Campos em 1955, mas, ainda assim, todos os aparelhos deste modelo aqui no Brasil anteriores ao ano de 1960 eram importados da Suécia. A partir deste ano, começaram a ser fabricados também aqui. Por isso, debaixo do aparelho se constar "Made in Sweden", indica que foi importado deste país pela Ericsson do Brasil e é anterior a 1960. Todos os aparelhos onde esteja impresso "Ericsson do Brasil" foram fabricados aqui e são posteriores a 1960 até 1965. Há versões com fio de pano (como este da foto, de 1947) ou em espiral como no modelo seguinte de parede
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 O modelo da foto abaixo é o precursor de todos ou outros, do ano de 1931. Imagem retirada do site ericssonhistory.com:


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                                                            Ericsson DBH de parede
                                             

Versão do telefone anterior, mas de parede, já com fio em espiral, pois os modelos anteriores eram com os fios de pano. Este modelo de parede era mais visto em áreas operacionais de empresas, fábricas e comércios.

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                                                                     Ericsson DLG (Dialog)
                           


Este modelo foi desenhado e fabricado na Suécia entre 1961 e 1979. No Brasil, apareceu em 1970 importado deste país, com os fios na cor cinza e o centro do disco vermelho (foto abaixo, no fim desta postagem). A partir de 1977/78 começou a ser fabricado aqui em larga escala, até 1988, dividindo espaço com os aparelhos GTE Starlite também de disco que serão mostrados a seguir. Nos primeiros anos da década de 1980 sairam versões de luxo nas cores vermelho, azul e verde em tons "petróleo", que são mais raros por serem edições de luxo. Este aparelho está sendo muito procurado hoje por admiradores de "design vintage" tido como "retrô", e vendido em algumas lojas do gênero pintado com tinta automotiva com as mais variadas cores.




 Abaixo, foto retirada do site ericssonhistory.com do modelo recém-lançado em 1961, na Suécia:



E este, logo abaixo, foi o primeiro modelo que apareceu no Brasil em 1970, citado no texto acima do descritivo deste modelo:




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                                                             Ericofon / Cobra / JK



Modelo inteiriço, uma só peça, repare ao fundo a campainha externa, que é aquela caixinha branca, muito rara, pois era um item opcional. Era muito usado como extensão, nos dormitórios. Os fios com a linha eram conectados nesta caixa externa com a campainha, ou no caso de extensão era ligado direto. Foi introduzido no mercado institucional na Suécia pela Ericsson em 1954 e residencial em 1956, revolucionando o design dos telefones. Otimizou o uso dos telefones de cabeceira nos leitos hospitalares pela praticidade de somente erguê-lo e discar virando-o. Ao ser erguido, já está com o tom de discar. Basta colocá-lo na mesa e desliga, pois liga e desliga através do botão vermelho no centro do disco. Em seu país de origem era conhecido como "Cobra" pelo formato "naja" de sua cabeça. No Brasil é conhecido como "JK", pois o presidente Juscelino Kubitcheck encantou-se com o modelo durante a construção de Brasília, e mandou importar um lote da Suécia em 1957. Também foi com este aparelho que foi inaugurada a central telefônica da nova capital em abril de 1960. Neste evento, com um aparelho deste modelo o então prefeito de Brasília Israel Pinheiro fez uma ligação para o presidente Juscelino no Rio de Janeiro.



Na foto abaixo, do site telephonetribute.com, exemplos de cores disponíveis:


 Por ter feito sucesso também nos Estados Unidos, a empresa Western Electric, sob licença da Ericsson LM da Suécia,  também começou a fabricá-lo:




O Ericofon fabricado nos Estados Unidos vinha com os números impressos por fora dos discos e letras por dentro, segundo o padrão americano vigente.


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                                      Badisco Ericsson sueco com campainha tipo "cigarra"


Badisco é um telefone de mão com a finalidade de testar e verificar o funcionamento de linhas telefônicas nas centrais públicas, postes, permitindo ao técnico um exame mais preciso, detectar defeitos. Este modelo é da Suécia, da marca Ericsson LM. Não há data registrada no aparelho, não foi encontrado registro em minhas pesquisas.
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                                                             Siemens Tartaruga preto
                                      

Aparelho Siemens & Halske, desenvolvido na Alemanha em 1954. Chegou ao Brasil por volta de 1967/68, nas cores preto e roxo. Tem o fio trançado, de plástico preto e campainha alta e agradável.






A foto publicitária da época divulgava também as cores disponíveis na Alemanha: vermelho, cinza, creme verde claro e preto.



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                                                         Siemens Tartaruga verde
  

A partir de 1970 começaram a ser fabricados no Brasil pela Siemens em maior escala este modelo verde, com fio flexível e não mais trançado como na década de 60 importados. Pela cor verde, dado o seu formato, recebeu o apelido de "tartaruga". Era encontrado predominantemente em escritórios comerciais, aeroportos e repartições públicas.


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                                                           Auso Siemens Grillo (Itália)
 

O telefone Grillo Auso Siemens foi projetado pelos designers Marco Zanuso e Richard Sapper no ano de 1965, sendo reconhecidamente um clássico do estilo moderno. É o precursor dos "flip phones (telefones dobráveis - que são seguramente a fonte onde se inspiraram os designers modernos para desenvolver muitos dos atuais celulares). Fabricado entre 1965 e 1968.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                


A foto da propaganda italiana da época indica que havia várias cores do modelo:




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Siemens Auso italiano


Fabricado entre 1962 e 1968, este foi o primeiro aparelho telefônico instalado em regime de comodato aos assinantes italianos. Adquirido na Argentina em 2012, considerando que muitos argentinos são descendentes diretos de italianos...



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                                                                                RFT


Este modelo começou a ser fabricado na Alemanha Oriental, na época comunista.  Segundo o site henderson-tele.com, data de 1959. Foi produzido em baquelite até 1974. Posteriormente foi produzido em plástico injetado em várias cores. Entre 1959 e 1962 o fio era trançado, e não em espiral como este modelo das fotos.







 Foto abaixo extraída do site henderson-tele.com, do modelo anterior a este, fabricado entre 1959 e 1962, com o fio trançado e o centro do disco branco com detalhes:


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                                                  DeTeWe - Deutsche Telephon Werke
                                              
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A Deutsche Telephon Werke Aktiengesselschaft & Co. foi fundada em Berlim em 1887. Este modelo de telefone foi criado em 1932 pretendendo ser um modelo mais compacto. Nos anos 40 e 50 foi fabricado em baquelite branco e preto. Houve variações também no formato do monofone. Este aparelho da foto, que faz parte da coleção é dos anos 50, e já foi restaurado, segundo fotos de sites europeus de compra e venda.




 Segundo o site britishtelephones.com, a versão anterior é este aparelho da foto abaixo:


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                                                                    GTE Stirlite







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                                                               GTE Starlite teclas





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                                                                     ITT americano





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                                                                      Equitel Masterset




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                                                                  Equitel Standard


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                                                                      Gradiente Smart















quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

"No entanto, quero me pronunciar em termos práticos como cidadão, distintamente daqueles que se chamam antigovernistas: o que desejo imediatamente é um governo melhor, e não o fim do governo. Se cada homem expressar o tipo de governo capaz de ganhar o seu respeito, estaremos mais próximos de conseguir formá-lo" - Henry David Thoreau



DESOBEDIÊNCIA CIVIL
por
Henry David Thoreau
Aceito com entusiasmo o lema “O melhor governo é o que menos governa” e gostaria que ele fosse aplicado mais rápida e sistematicamente. Levado às últimas conseqüências, este lema significa o seguinte, no que também creio: “O melhor governo é o que não governa de modo algum” e, quando os homens estiverem preparados, será esse o tipo de governo que terão. O governo, no melhor dos casos, nada mais é do que um artifício conveniente; mas a maioria dos governos é por vezes uma inconveniência, e todo o governo algum dia acaba por ser inconveniente. As objeções que têm sido levantadas contra a existência de um exército permanente, numerosas e substantivas, e que merecem prevalecer, podem também, no fim das contas, servir para protestar contra um governo permanente. O exército permanente é apenas um braço do governo permanente. O próprio governo, que é simplesmente uma forma que o povo escolheu para executar a sua vontade, está igualmente sujeito a abusos e perversões antes mesmo que o povo possa agir através dele. Prova disso é a atual guerra contra o México, obra de um número relativamente pequeno de indivíduos que usam o governo permanente como um instrumento particular; isso porque o povo não teria consentido, de início, uma iniciativa dessas.
Esse governo norte-americano — que vem a ser ele senão uma tradição, ainda que recente, tentando-se transmitir inteira à posteridade, mas que a cada instante vai perdendo porções da sua integridade? Ele não tem a força nem a vitalidade de um único homem vivo, pois um único homem pode faze-lo dobrar-se à sua vontade. O governo é uma espécie de revólver de brinquedo para o próprio povo; e ele certamente vai quebrar se por acaso os norte-americanos o usarem seriamente uns contra os outros, como uma arma de verdade. Mas nem por isso ele é menos necessário; pois o povo precisa dispor de uma ou outra máquina complicada e barulhenta para preencher a sua concepção de governo. Desta forma, os governos são a prova de como os homens podem ter sucesso no ato de oprimir em proveito próprio, não importando se a opressão se volta também contra eles. Devemos admitir que ele é excelente; no entanto, este governo em si mesmo nunca estimulou qualquer iniciativa a não ser pela rapidez com que se dispôs a não atrapalhar. Ele não mantém o país livre. Ele não povoa as terras do oeste. Ele não educa. O caráter inerente do povo norte-americano é o responsável por tudo o que temos conseguido fazer; e ele teria conseguido fazer consideravelmente mais se o governo não tivesse sido por vezes um obstáculo. Pois o governo é um artifício através do qual os homens conseguiriam de bom grado deixar em paz uns aos outros; e, como já foi dito, a sua conveniência máxima só ocorre quando os governados são minimamente molestados pelos seus governantes. Se não fossem feitos de borracha da Índia, os negócios e o comércio nunca conseguiriam ultrapassar os obstáculos que os legisladores teimam em plantar no seu caminho; e se fôssemos julgar estes senhores levando em conta exclusivamente os efeitos dos seus atos — esquecendo as suas intenções —, eles mereceriam a classificação dada e as punições impostas a essas pessoas nocivas que gostam de obstruir as ferrovias.
No entanto, quero me pronunciar em termos práticos como cidadão, distintamente daqueles que se chamam antigovernistas: o que desejo imediatamente é um governo melhor, e não o fim do governo. Se cada homem expressar o tipo de governo capaz de ganhar o seu respeito, estaremos mais próximos de conseguir formá-lo.
No final das contas, o motivo prático pelo qual se permite o governo da maioria e a sua continuidade — uma vez passado o poder para as mãos do povo — não é a sua maior tendência a emitir bons juízos, nem porque possa parecer o mais justo aos olhos da minoria, mas sim porque ela (a maioria) é fisicamente a mais forte. Mas um governo no qual prevalece o mando da maioria em todas as questões não pode ser baseado na justiça, mesmo nos limites da avaliação dos homens. Não será possível um governo em que a maioria não decida virtualmente o que é certo ou errado? No qual a maioria decida apenas aquelas questões às quais seja aplicável a norma da conveniência? Deve o cidadão desistir da sua consciência, mesmo por um único instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador? Por que então estará cada homem dotado de uma consciência? Na minha opinião devemos ser em primeiro lugar homens, e só então súditos. Não é desejável cultivar o respeito às leis no mesmo nível do respeito aos direitos. A única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo. Costuma-se dizer, e com toda a razão, que uma corporação não tem consciência; mas uma corporação de homens conscienciosos é uma corporação com consciência. A lei nunca fez os homens sequer um pouco mais justos; e o respeito reverente pela lei tem levado até mesmo os bem-intencionados a agir quotidianamente como mensageiros da injustiça. Um resultado comum e natural de um respeito indevido pela lei é a visão de uma coluna de soldados — coronel, capitão, cabos, combatentes e outros — marchando para a guerra numa ordem impecável, cruzando morros e vales, contra a sua vontade, e como sempre contra o seu senso comum e a sua consciência; por isso essa marcha é muito pesada e faz o coração bater forte. Eles sabem perfeitamente que estão envolvidos numa iniciativa maldita; eles têm tendências pacíficas. O que são eles, então? Chegarão a ser homens? Ou pequenos fortes e paióis móveis, a serviço de algum inescrupuloso detentor do poder? É só visitar o Estaleiro Naval e contemplar um fuzileiro: eis aí o tipo de homem que um governo norte-americano é capaz de fabricar — ou transformar com a sua magia negra —, uma sombra pálida, uma vaga recordação da condição humana, um cadáver de pé e vivo que, no entanto, se poderia considerar enterrado sob armas com acompanhamento fúnebre, embora possa acontecer que


“Nem um rufar se ouviu
nem um silente toque,
enquanto seu corpo à
muralha levamos.
Nem um soldado disparou
seu tiro de adeus
sobre o túmulo onde nosso
herói nós enterramos”.*

Desta forma, a massa de homens serve ao Estado não na sua qualidade de homens, mas sim como máquinas, entregando os seus corpos. Eles são o exército permanente, a milícia, os carcereiros, os polícias, posse comitatus, e assim por diante. Na maior parte dos casos não há qualquer livre exercício de escolha ou de avaliação moral; ao contrário, estes homens nivelam-se à madeira, à terra e às pedras; e é bem possível que se consigam fabricar bonecos de madeira com o mesmo valor de homens desse tipo. Não são mais respeitáveis do que um espantalho ou um monte de terra. Valem tanto quanto cavalos e cachorros. No entanto, é comum que homens assim sejam apreciados como bons cidadãos. Há outros, como a maioria dos legisladores, políticos, advogados, funcionários e dirigentes, que servem ao Estado principalmente com a cabeça, e é bem provável que eles sirvam tanto ao Diabo quanto a Deus — sem intenção —, pois raramente se dispõem a fazer distinções morais. Há um número bastante reduzido que serve ao Estado também com a sua consciência; são os heróis, patriotas, mártires, reformadores e homens, que acabam por isso necessariamente resistindo, mais do que servindo; e o Estado trata-os geralmente como inimigos. Um homem sábio só será de fato útil como homem, e não se sujeitará à condição de “barro” a ser moldado para “tapar um buraco e cortar o vento” ele preferirá deixar esse papel, na pior das hipóteses, para as suas cinzas:
“Nasci nobre demais para ser
propriedade,
Para ser segundo no comando
Ou serviçal utilizável e instrumento
De qualquer soberano Estado deste mundo”**
Os que se entregam completamente aos seus semelhantes são por eles considerados inúteis e egoístas; mas aqueles que se dão parcialmente são entronizados como benfeitores e filantropos.

Que comportamento digno deve ter um homem perante o atual governo vigente nos Estados Unidos? A minha resposta é que ele inevitavelmente se degrada pelo fato de estar associado a ele. Nem por um minuto posso considerar o meu governo uma organização política que é também o governo do escravo.

Todos reconhecem o direito à revolução, ou seja, o direito de negar lealdade e de oferecer resistência ao governo sempre que se tornem grandes e insuportáveis a sua tirania e ineficiência. No entanto, quase todos dizem que tal não acontece agora. Consideram, porém, que isso aconteceu em 1775. Se alguém me dissesse que o nosso governo é mão porque estabeleceu certas taxas sobre bens estrangeiros que chegam aos seus portos, o mais provável é que eu não criasse qualquer caso, pois posso muito bem passar sem eles: todas as máquinas têm atrito e talvez isso faça com que o bom e o mau se compensem. De qualquer forma, fazer um rebuliço por causa disso é um grande mal. Mas quando o próprio atrito chega a construir a máquina e vemos a organização da tirania e do roubo, afirmo que devemos repudiar essa máquina. Em outras palavras, quando um sexto da população de um país que se elegeu como o refúgio da liberdade é composto de escravos, e quando todo um país é injustamente assaltado e conquistado por um exército estrangeiro e submetido à lei marcial, devo dizer que não é cedo demais para a rebelião e a revolução dos homens honestos. E esse dever é tão mais urgente pelo facto de que o país assaltado não é o nosso, e pior ainda, que o exército invasor é o nosso.

William Paley, uma autoridade em assuntos morais, tem um capítulo intitulado Duty of submission to civil government (O dever de submissão ao governo civil), no qual soluciona toda a questão das obrigações políticas pela fórmula da conveniência; e diz: “Enquanto o exigir o interesse de toda a sociedade, ou seja, enquanto não se possa resistir ao governo estabelecido ou mudá-lo sem inconveniência pública, é a vontade de Deus que tal governo seja obedecido — e nem um dia além disso. Admitindo-se este princípio, a justiça de cada ato particular de resistência reduz-se à computação do volume de perigo e protestos, de um lado, e da probabilidade e custos da reparação, de outro”. Diz ele que cada um julgará esta questão por si mesmo. Mas parece que Paley nunca levou em conta os casos em que a regra da conveniência não se aplica, nos quais um povo ou um indivíduo tem que fazer justiça a qualquer custo. Se arranquei injustamente a tábua que é a salvação de um homem que se afoga, sou obrigado a devolvê-la, ainda que eu mesmo me afogue. De acordo com Paley, esta é uma circunstância inconveniente. Mas quem quiser se salvar desta forma acabará perdendo a vida. O povo norte-americano tem que pôr fim à escravidão e tem que parar de guerrear com o México, mesmo que isso lhe custe a existência enquanto povo.

As nações, na sua prática, concordam com Paley, mas haverá quem considere que Massachusetts esteja agir corretamente na crise atual?

“Uma rameira de classe,
uma roupa prateada na lama,
Levanta a cauda do vestido,
e arrasta no chão a sua alma.”

Em termos práticos, os que se opõem à abolição em Massachusetts não são uns cem mil políticos do sul, mas uns cem mil comerciantes e fazendeiros daqui, que se interessam mais pelos negócios e pela agricultura do que pela humanidade e que não estão dispostos a fazer justiça ao escravo e ao México, custe o que custar. Não discuto com inimigos distantes, mas com aqueles que, bem perto de mim, cooperam com a posição de homens que estão longe daqui e defendem-na; estes últimos homens seriam inofensivos se não fosse por aqueles. Estamos acostumados a afirmar que os homens em geral são despreparados; mas as melhorias são lentas, porque os poucos não são substantivamente mais sábios ou melhores do que os muitos. Não é tão importante que muitos sejam tão bons quanto você, e sim que haja em algum lugar alguma porção absoluta de virtude; isso bastará para fermentar toda a massa. Há milhares de pessoas cuja opinião é contrária à escravidão e à guerra; apesar disso, nada fazem de efetivo para pôr fim a ambas; dizem-se filhos de Washington e Franklin, mas ficam sentados com as mãos nos bolsos, dizendo não saber o que pode ser feito e nada fazendo; chegam a colocar a questão do livre comércio à frente da questão da liberdade, e ficam quietos lendo as cotações do dia junto com os últimos boletins militares sobre a campanha do México; é possível até que acabem por adormecer durante a leitura. Qual é hoje a cotação do dia de um homem honesto e patriota? Eles hesitam, arrependem-se e às vezes assinam petições, mas nada fazem de sério ou de efetivo. Com muito boa disposição, preferem esperar que outros remedeiem o mal, de forma que nada reste para motivar o seu arrependimento. No melhor dos casos, nada mais farão do que depositar na urna um voto insignificante, cumprimentar timidamente a atitude certa e, de passagem, desejar-lhe boa sorte. Há novecentos e noventa e nove patronos da virtude e apenas um homem virtuoso; mas é mais fácil lidar com o verdadeiro dono de algo do que com seu guardião temporário.

Toda a votação é um tipo de jogo, tal como damas ou gamão, com uma leve coloração moral, onde se brinca com o certo e o errado sobre questões morais; e é claro que há apostas neste jogo. O caráter dos eleitores não entra nas avaliações. Proclamo o meu voto — talvez — de acordo com meu critério moral; mas não tenho um interesse vital de que o certo saia vitorioso. Estou disposto a deixar essa decisão para a maioria. O compromisso de votar, desta forma, nunca vai mais longe do que as conveniências. Nem mesmo o ato de votar pelo que é certoimplica fazer algo pelo que é certo. É apenas uma forma de expressar publicamente o meu anêmico desejo de que o certo venha a prevalecer. Um homem sábio não deixará o que é certo nas mãos incertas do acaso e nem esperará que a sua vitória se dê através da força da maioria. Há escassa virtude nas ações de massa dos homens. Quando finalmente a maioria votar a favor da abolição da escravatura, das duas uma: ou ela será indiferente à escravidão ou então restará muito pouca escravidão a ser abolida pelo o seu voto. A essa altura, os únicos escravos serão eles, os integrantes da maioria. O único voto que pode apressar a abolição da escravatura é o daquele homem que afirma a própria liberdade através do seu voto.

Estou informado de que haverá em Baltimore, ou em outro lugar qualquer, uma convenção para escolher um candidato à presidência; essa convenção é composta principalmente por editores de jornais e políticos profissionais; mas que importância terá a possível decisão desta reunião para um homem independente, inteligente e respeitável? No fim das contas, ainda poderemos contar com as vantagens da sua sabedoria e da sua honestidade, não é mesmo? Será que não poderemos prever alguns votos independentes? Não haverá muitas pessoas neste país que não freqüentam convenções? Mas não é isso o que ocorre: percebo que o homem considerado respeitável logo abandona a sua posição e passa a não ter mais esperanças no seu país, quando o mais certo seria que seu país desesperasse dele. A partir disso ele adere a um dos candidatos assim selecionados por ser o único disponível, apenas para provar que ele mesmo está disponível para todos os planos do demagogo. O voto de um homem desses não vale mais do que o voto eventualmente comprado de um estrangeiro inescrupuloso ou do nativo venal. Oh! É preciso um homem que seja um homem e que tenha, como diz um vizinho meu, uma coluna dorsal que não se dobre aos poderosos! As nossas estatísticas estão erradas: contou-se gente demais.

Quantos homens existem em cada mil milhas quadradas deste país? Dificilmente se contará um. A América oferece ou não incentivos para a imigração de homens? Os homens norte-americanos foram rareando até à dimensão de uma irmandade secreta como a dos Odd Fellows, cujo integrante típico pode ser identificado pelo seu descomunal caráter gregário, pela manifesta falta de inteligência e de jovial autoconfiança; a sua preocupação primeira e maior ao dar entrada neste mundo é a de verificar se os asilos estão em boas condições de funcionamento; antes mesmo de ter direito a envergar roupas de adulto ele organiza uma coleta de fundos para as viúvas e órfãos que porventura existam; em poucas palavras, é um homem que só ousa viver com a ajuda da Companhia de Seguros Mútuos, que lhe prometeu um enterro decente.

De fato, nenhum homem tem o dever de se dedicar à erradicação de qualquer mal, mesmo o maior dos males; ele pode muito bem ter outras preocupações que o mobilizem. Mas ele tem no mínimo a obrigação de lavar as mãos frente à questão e, no caso de não mais se ocupar dela, de não dar qualquer apoio prático à injustiça. Se me dedico a outras metas e considerações, preciso ao menos verificar se não estou fazendo isso à custa de alguém em cujos ombros esteja sentado. É preciso que eu saia de cima dele para que ele também possa estar livre para fazer as suas considerações. Vejam como se tolera uma inconsistência das mais grosseiras. Já ouvi alguns dos meus conterrâneos dizerem: “Queria que eles me convocassem para ir combater um levante de escravos ou para atacar o México — pois eu não iria” no entanto, cada um destes homens possibilitou o envio de um substituto, fazendo isso diretamente pela sua fidelidade ao governo, ou pelo menos indiretamente através do seu dinheiro. O soldado que se recusa a participar de uma guerra injusta é aplaudido por aqueles que não recusam apoio ao governo injusto que faz a guerra; é aplaudido por aqueles cuja ação e autoridade ele despreza e desvaloriza; tudo funciona como se o Estado estivesse suficientemente arrependido para contratar um crítico dos seus pecados, mas insuficientemente arrependido para interromper por um instante sequer os seus atos pecaminosos. Estamos todos, desta forma, de conformidade com a ordem e o governo civil, reunidos para homenagear e dar apoio à nossa própria crueldade. Se ruborizamos ante o nosso primeiro pecado, logo depois se instala a indiferença. Passamos do imoral ao não-moral, e isso não é tão desnecessário assim para o tipo de vida que construímos.
O mais amplo e comum dos erros exige a virtude mais generosa para se manter. São os nobres os mais passíveis de proferir os moderados ataques a que comumente está sujeita a virtude do patriotismo. Sem dúvida, os maiores baluartes conscienciosos do governo, e muito freqüentemente os maiores opositores das reformas, são aqueles que desaprovam o caráter e as medidas de um governo, sem no entanto lhe retirar a sua lealdade e apoio. Há gente coletando assinaturas para fazer petições ao Estado de Massachusetts no sentido de dissolver a União e de desprezar as recomendações do presidente. Ora, por que eles mesmos não dissolvem essa união entre eles e o Estado e se recusam a pagar a sua cota de impostos? Não estão eles na mesma relação com o Estado que a que este mantém com a União? E não são as mesmas as razões que evitaram a resistência do Estado à União e a resistência deles ao Estado?

Como pode um homem se satisfazer com a mera posse de uma opinião e de fato usufruí-la? Pode haver algum usufruto da opinião quando o dono dela a vê ofendida? Se o seu vizinho o vigariza e lhe subtrai um mero dólar, você não se satisfaz com a descoberta da vigarice, com a proclamação de que foi vigarizado e nem mesmo com as suas gestões no sentido de ser devidamente reembolsado; o que você faz é tomar medidas efetivas e imediatas para ter o seu dinheiro de volta e cuidar de nunca mais ser enganado. Ações baseadas em princípios — a percepção e a execução do que é certo — modificam coisas e relações; a ação deste gênero é essencialmente revolucionária e não se reduz integralmente a qualquer coisa preexistente. Ela cinde não apenas Estados e Igrejas; divide famílias; e também divide o indivíduo, separando nele o diabólico do divino.



Existem leis injustas; devemos submeter-nos a elas e cumpri-las, ou devemos tentar emendá-las e obedecer a elas até à sua reforma, ou devemos transgredi-las imediatamente? Numa sociedade com um governo como o nosso, os homens em geral pensam que devem esperar até que tenham convencido a maioria a alterar essas leis. A sua opinião é de que a hipótese da resistência pode vir a ser um remédio pior do que o mal a ser combatido. Mas é precisamente o governo o culpado pela circunstância de o remédio ser de fato pior do que o mal. É o governo que faz tudo ficar pior. Por que o governo não é mais capaz e se antecipa para lutar pela reforma? Por que ele não sabe valorizar a sua sábia minoria? Por que ele chora e resiste antes de ser atacado? Por que ele não estimula a participação ativa dos cidadãos para que eles lhe mostrem as suas falhas e para conseguir um desempenho melhor do que eles lhe exigem? Por que eles lhe exigem? Por que ele sempre crucifica Jesus Cristo, e excomunga Copérnico e Lutero e qualifica Washington e Franklin de rebeldes?

Não é absurdo pensar que o único tipo de transgressão que o governo nunca previu foi a negação deliberada e prática de sua autoridade; se não fosse assim, por que então não teria ele estabelecido a penalidade clara, cabível e proporcional? Se um homem sem propriedade se recusa pela primeira vez a recolher nove xelins aos cofres do Estado, é preso por prazo cujo limite não é estabelecido por qualquer lei que eu conheça; esse prazo é determinado exclusivamente pelo arbítrio dos que o enviam à prisão. Mas se ele resolver roubar noventa vezes nove xelins do Estado, em breve estará novamente em liberdade.

Se a injustiça é parte do inevitável atrito no funcionamento da máquina governamental, que seja assim: talvez ela acabe suavizando-se com o desgaste — certamente a máquina ficará desajustada. Se a injustiça for uma peça dotada de uma mola exclusiva — ou roldana, ou corda, ou manivela —, aí então talvez seja válido julgar se o remédio não será pior do que o mal; mas se ela for de tal natureza que exija que você seja o agente de uma injustiça para outros, digo, então, que se transgrida a lei. Faça da sua vida um contra-atrito que pare a máquina. O que preciso fazer é cuidar para que de modo algum eu participe das misérias que condeno.

No que diz respeito às vias pelas quais o Estado espera que os males sejam remediados, devo dizer que não as conheço. Elas são muito demoradas, e a vida de um homem pode chegar ao fim antes que elas produzam algum efeito. Tenho outras coisas para fazer. Não vim a este mundo com o objetivo principal de fazer dele um bom lugar para morar, mas apenas para morar nele, seja bom ou mão. Um homem não carrega a obrigação de fazer tudo, mas apenas alguma coisa; e só porque não pode fazer tudo não é necessário que faça alguma coisa errada. Não está dentro das minhas incumbências apresentar petições ao governador e à Assembléia Legislativa, da mesma forma que eles nada precisam fazer de semelhante em relação a mim. Suponhamos que eles não dêem atenção a um pedido meu; que devo fazer então? Mas nesse caso o Estado não forneceu outra via: o mal está na sua própria Constituição. Isto pode parecer grosseria, teimosia e intransigência, mas só quem merece ou pode apreciar a mais fina bondade e consideração deve receber este tipo de tratamento. Todas as mudanças para melhor são assim, tais como o nascimento e a morte, que produzem convulsões nos corpos.

Não hesito em afirmar que todos os que se intitulam abolicionistas devem imediata e efetivamente retirar o seu apoio — em termos pessoais e de propriedade — ao governo do Estado de Massachusetts, e não ficar esperando até que consigam formar a mais estreita das maiorias para só então alcançar o sofrido direito de vencer através dela. Creio que basta saber que Deus está do seu lado, o que vale mais do que o último votante a fazer majoritárias as suas fileiras. E, além de tudo, qualquer homem mais correto do que os seus vizinhos já constitui uma maioria apertada.

É apenas uma vez por ano, e não mais do que isso, que me encontro cara a cara com este governo norte-americano, ou com o governo estadual que o representa: é quando sou procurado pelo coletor de impostos; essa é a única instância em que um homem na minha situação não pode deixar de se encontrar com esse governo; e ele aproveita a oportunidade e diz claramente: “Reconheça-me”. E não há outra forma mais simples, mais efetiva e, na conjuntura atual, mais indispensável de lidar com o governo neste particular, de expressar a sua pouca satisfação ou seu pouco amor em relação a ele: é preciso negá-lo, naquele local e momento. O coletor de impostos é meu vizinho e concidadão, e é com ele que tenho de lidar porque afinal de contas estou lutando contra homens, e não contra o pergaminho das leis, e sei que ele voluntariamente optou por ser um agente governamental. Haverá outro modo de ele ficar sabendo claramente o que é e o que fiz enquanto agente do governo, ou enquanto homem, a não ser quando forçado a decidir que tratamento vai dar a mim, o vizinho que ele respeita como tal e como homem de boa índole, ou que ele considera um maníaco e desordeiro? Será ele capaz de superar esse obstáculo à sua sociabilidade sem um pensamento ou uma palavra mais rudes ou mais impetuosos a acompanhar a sua ação? Disso estou certo: se mil, ou cem, se dez homens que conheço — apenas dez homens honestos ou até um único homem honesto do Estado de Massachusetts, não mais sendo dono de escravos, decidisse pôr fim ao seu vínculo com o Estado, para logo em seguida ser trancado na cadeia municipal, estaria ocorrendo nada menos do que a abolição da escravatura nos Estados Unidos da América. Pois não importa que os primeiros passos pareçam pequenos: o que se faz bem feito faz-se para sempre. Mas preferimos debater o assunto: essa é nossa missão, dizemos. Há dezenas de jornais nas fileiras do abolicionismo, mas não há um único homem. O meu querido vizinho, que desempenhou o papel de embaixador de Massachusetts e que sempre se dedica à resolução das questões dos direitos humanos na Câmara do Conselho, esteve ameaçado de amargar uma prisão na Carolina do Sul; no entanto, se tivesse sido prisioneiro do Estado de Massachusetts, esse Estado que ansiosamente lança à Carolina do Sul a acusação de pecar com a escravidão (embora atualmente não encontre nada além de uma atitude pouco hospitaleira como motivo para brigar com ela), o nosso Legislativo não seria capaz de adiar liminarmente o assunto da escravidão até ao próximo inverno

Sob um governo que prende qualquer homem injustamente, o único lugar digno para um homem justo é também a prisão. Hoje em dia, o lugar próprio, o único lugar que Massachusetts reserva para os seus habitantes mais livres e menos desalentados são as suas prisões, nas quais serão confinados e trancados longe do Estado, por um ato do próprio Estado pois os que vão para a prisão já antes tinham se confinado nos seus princípios. E aí que devem ser encontrados quando forem procurados pelos escravos fugidos, pelo prisioneiro mexicano em liberdade condicional e pelos indígenas, para ouvir as denúncias sobre as humilhações impostas aos seus povos; é aí, nesse chão discriminado, mas tão mais livre e honroso, onde o Estado planta os que não estão com ele mas sim contra ele — a única casa num Estado-senzala na qual um homem livre pode perseverar com honra. Se há alguém que pense ser a prisão um lugar de onde não mais se pode influir, no qual a sua voz deixa de atormentar os ouvidos do Estado, no qual não conseguiria ser tão hostil a ele, esse alguém ignora o quanto a verdade é mais forte que o erro e também não sabe como a injustiça pode ser combatida com muito mais eloquência e efetividade por aqueles que já sofreram na carne um pouco dela. Manifeste integralmente o seu voto e exerça toda a sua influência; não se deixe confinar por um pedaço de papel. Uma minoria é indefesa quando se conforma à maioria; não chega nem a ser uma minoria numa situação dessas; mas ela é irresistível quando intervém com todo o seu peso. Se a alternativa ficar entre manter todos os homens justos na prisão ou desistir da guerra e da escravidão, o Estado não hesitará na escolha. Se no ano corrente mil homens não pagassem os seus impostos, isso não seria uma iniciativa tão violenta e sanguinária quanto o próprio pagamento, pois neste caso o Estado fica capacitado para cometer violências e para derramar o sangue dos inocentes. Esta é, na verdade, a definição de uma revolução pacífica, se é que é possível uma coisa dessas. Se, como já ouvi um deles me perguntar, o coletor de impostos ou outro funcionário público qualquer indagar: “Mas o que devo fazer agora?”, a minha resposta é: “Se de fato quiser fazer alguma coisa, então renuncie ao seu cargo”. Quando o súdito negou a lealdade e o funcionário renunciou ao seu cargo, então a revolução completou-se. Mas vamos supor que há violência. Não poderíamos considerar que uma agressão à consciência também provoca um tipo de ferimento grave? Um ferimento desses provoca a perda da autêntica humanidade e da imortalidade de um homem, e ele sangra até uma morte eterna. Posso ver esse sangue a correr, agora.
Especulei sobre a prisão do infrator, e não sobre o confisco dos seus bens — embora ambas as medidas sirvam ao mesmo fim —, porque os que afirmam o certo e que, por isso, são os seres mais perigosos para um Estado corrupto, em geral não gastam muito do seu tempo na acumulação de propriedades. Para homens assim o Estado presta serviços relativamente pequenos e um imposto bem leve tende a ser considerado exorbitante, particularmente quando são obrigados a realizar um trabalho especial para conseguir a quantia cobrada. Se houvesse quem vivesse inteiramente sem usar o dinheiro, o próprio Estado hesitaria em exigir que ele lhe entregasse uma quantia. O homem rico, no entanto — e não pretendo estabelecer uma comparação invejosa —, é sempre um ser vendido à instituição que o enriquece. Falando em termos absolutos, quanto mais dinheiro, menos virtude; pois o dinheiro interpõe-se entre um homem e os seus objetivos e permite que ele os compre; obter alguma coisa dessa forma não é uma grande virtude. O dinheiro acalma muitas perguntas que de outra forma ele se veria pressionado a fazer; de outro lado, a única pergunta nova que o dinheiro suscita é difícil, embora supérflua: “Como gastá-lo?” Um homem assim fica, portanto, sem base para uma moralidade. As oportunidades de viver diminuem proporcionalmente ao acúmulo daquilo que se chama de “meios”. A melhor coisa a ser feita em prol da cultura do seu tempo por um homem rico é realizar os planos que tinha quando ainda era pobre. Cristo respondeu aos seguidores de Herodes de acordo com a situação deles. “Mostrem-me o dinheiro dos tributos”, disse ele; e um deles tirou do bolso uma moeda. Disse então Jesus Cristo: “Se vocês usam o dinheiro com a imagem de César, dinheiro que ele colocou em circulação e ao qual ele deu valor, ou seja, se vocês são homens do Estado e estão felizes de se aproveitar das vantagens do governo de César, então paguem-no por isso quando ele o exigir. Portanto, dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” Cristo não lhes disse nada sobre como distinguir um do outro; eles não queriam saber isso.
Quando converso com os mais livres dentre os meus vizinhos, percebo que, independentemente do que digam a respeito da grandeza e da seriedade do problema e de sua preocupação com a tranqüilidade pública, no fim das contas tudo se reduz ao seguinte: eles não podem abrir mão da proteção do governo atual e temem as conseqüências que a sua rebeldia provocaria nas suas propriedades e famílias. Da minha parte, não gosto de imaginar que possa vir algum dia a depender da proteção do Estado. Mas se eu negar a autoridade do Estado quando ele apresenta a minha conta de impostos, ele logo confiscará e dissipará a minha propriedade e tratará de me hostilizar e à minha família para sempre. Essa é uma perspectiva muito dura. Isso torna impossível uma vida que seja simultaneamente honesta e confortável em aspectos exteriores. Não valeria a pena acumular propriedade; ela certamente se perderia de novo. O que se tem a fazer é arrendar alguns alqueires ou ocupar uma terra devoluta, cultivar em pequena escala e consumir logo toda a sua produção. Você tem que viver dentro de si mesmo e depender de si mesmo, sempre de mala feita e pronto para recomeçar; você não deve desenvolver muitos vínculos. Até mesmo na Turquia você pode ficar rico, se em tudo for um bom súdito do governo turco. Confúcio disse: «Se um Estado é governado pelos princípios da razão, a pobreza e a miséria são fatos acabrunhantes; se um Estado não é governado pelos princípios da razão, a riqueza e as honrarias são os fatos acabrunhantes». Não! Até que eu solicite um remoto porto sulino, que a proteção do Estado de Massachusetts me seja estendida com o fim de preservar a minha liberdade, ou até que eu me dedique apenas a construir pacificamente um patrimônio aqui no meu Estado, posso negar a minha lealdade ao governo local e negar o seu direito à minha propriedade e à minha vida. Sai mais barato, em todos os sentidos, sofrer a penalidade pela desobediência do que obedecer. Obedecer faria com que eu me sentisse diminuído.

Há alguns anos o Estado procurou-me em nome de uma organização religiosa e intimou-me a pagar uma certa quantia destinada a sustentar um pregador que o meu pai costumava freqüentar; eu nunca o tinha visto. “Pague ou será trancado na cadeia”, disse o Estado. Eu recusei-me a pagar. Infelizmente, no entanto, outro homem achou melhor fazer o pagamento em meu nome. Não consegui descobrir por que o mestre-escola deveria pagar imposto para sustentar o clérigo e não o clérigo contribuir para o sustento do mestre-escola; pois eu não era mestre-escola do Estado, e sustentava-me com subscrições voluntárias. Não vi o motivo pelo qual o liceu não devesse apresentar a sua conta de impostos e fazer com que o Estado apoiasse, junto com a organização religiosa, essa sua pretensão. No entanto, os conselheiros municipais pediram-me e eu concordei em fazer uma declaração por escrito cuja redação ficou mais ou menos assim: “Saibam todos quantos esta declaração lerem que eu, Henry Thoreau, não desejo ser considerado integrante de qualquer sociedade organizada à qual não tenha aderido”. Entreguei o texto ao secretário da municipalidade. Deve estar com ele até hoje. Sabendo portanto que eu não queria ser considerado membro daquela organização religiosa, o Estado nunca mais me fez uma exigência parecida; ele considerava, no entanto, que estava certo e que deveria continuar a operar a partir dos pressupostos originais com que me abordou. Se fosse possível saber os seus nomes, eu teria desligado-me minuciosamente, na mesma ocasião, de todas as organizações das quais não era membro; mas não soube onde encontrar uma lista completa delas. 

Há seis anos que não pago o imposto per capita. Fui encarcerado certa vez por causa disso, e passei uma noite preso; enquanto o tempo passava, fui observando as paredes de pedra sólida com dois ou três pés de espessura, a porta de madeira e ferro com um pé de espessura e as grades de ferro que dificultam a entrada da luz, e não pude deixar de perceber a idiotice de uma instituição que me tratava como se eu fosse apenas carne e sangue e ossos a serem trancafiados. Fiquei especulando que ela devia ter concluído, finalmente, que aquela era a melhor forma de me usar e, também, que ela jamais cogitara de se aproveitar dos meus serviços de alguma outra maneira. Vi que apesar da grossa parede de pedra entre mim e os meus concidadãos, eles tinham uma muralha muito mais difícil de vencer antes de conseguirem ser tão livres quanto eu. Nem por um momento me senti confinado, e as paredes pareceram-me um desperdício descomunal de pedras e argamassa. O meu sentimento era de que eu tinha sido o único dos meus concidadãos a pagar o imposto. Estava claro que eles não sabiam como lidar comigo e que se comportavam como pessoas pouco educadas. Havia um erro crasso em cada ameaça e em cada saudação, pois eles pensavam que o meu maior desejo era o de estar do outro lado daquela parede de pedra. Não pude deixar de sorrir perante os cuidados com que fecharam a porta e trancaram as minhas reflexões — que os acompanhavam porta afora sem delongas ou dificuldade; e o perigo estava de fato contido nelas. Como eu estava fora do seu alcance, resolveram punir o meu corpo; agiram como meninos incapazes de enfrentar uma pessoa de quem sentem raiva e que então dão um chuto no cachorro do seu desafeto. Percebi que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona às voltas com a sua prataria, incapaz de distinguir os seus amigos dos inimigos; perdi todo o respeito que ainda tinha por ele e passei a considerá-lo apenas lamentável.

Portanto, o Estado nunca confronta intencionalmente o sentimento intelectual ou moral de um homem, mas apenas o seu corpo, os seus sentidos. Ele não é dotado de gênio superior ou de honestidade, apenas de mais força física. Eu não nasci para ser coagido. Quero respirar da forma que eu mesmo escolher. Veremos quem é mais forte. Que força tem uma multidão? Os únicos que podem me coagir são os que obedecem a uma lei mais alta do que a minha. Eles obrigam-me a ser como eles. Nunca ouvi falar de homens que tenham sido obrigados por multidões a viver desta ou daquela forma. Que tipo de vida seria essa? Quando defronto um governo que me diz “A bolsa ou a vida!”, por que deveria apressar-me em lhe entregar o meu dinheiro? Ele talvez esteja passando por um grande aperto, sem saber o que fazer. Não posso ajudá-lo. Ele deve cuidar de si mesmo; deve agir como eu ajo. Não vale a pena choramingar sobre o assunto. Não sou individualmente responsável pelo bom funcionamento da máquina da sociedade. Não sou o filho do maquinista. No meu modo de ver quando sementes de carvalho e de castanheira caem lado a lado, uma delas não se retrai para dar vez à outra; pelo contrário, cada uma segue as suas próprias leis, e brotam, crescem e florescem da melhor maneira possível, até que uma por acaso acaba superando e destruindo a outra. Se uma planta não pode viver de acordo com a sua natureza, então ela morre; o mesmo acontece com um homem.

A noite que passei na prisão, além de uma novidade, foi também bem interessante. Os prisioneiros, em mangas de camisa, distraíam-se conversando na entrada, aproveitando o vento fresco da noite; assim estavam quando me viram chegar. Mas o carcereiro disse-lhes: “Venham, rapazes, já é hora de trancar as portas” ouvi o barulho dos seus passos enquanto caminhavam para os seus compartimentos vazios. O carcereiro apresentou-me o meu companheiro de cela, qualificando-o como “um sujeito de primeira e um homem esperto”. Trancada a porta, ele mostrou-me o cabide onde deveria pendurar o meu chapéu e explicou-me como administrava as coisas por ali. As celas eram caiadas uma vez por mês; a nossa cela, pelo menos, era o apartamento mais branco, de mobiliário mais simples e provavelmente o mais limpo de toda a cidade. Naturalmente ele quis saber de onde eu vinha e por que eu tinha ido parar ali; quando lhe contei a minha história, foi minha a vez de lhe perguntar a sua, na suposição evidente de que ele era um homem honesto; e, da maneira que as coisas estão, acredito que ele de fato era um homem honesto. Ele disse: «Ora, acusam-me de ter incendiado um celeiro; mas não fui eu». Pelo que pude perceber, ele provavelmente fora deitar-se, bêbado, para dormir num celeiro, não sem antes fumar o seu cachimbo; e assim perdeu-se no fogo um celeiro. Ele tinha a fama de ser um homem esperto, e ali aguardava havia três meses o seu julgamento; tinha outros três meses a esperar ainda; mas estava bem cordato e contente, já que não pagava pela casa e comida e se considerava bem tratado.

Ele ficava ao lado de uma janela, e eu junto à outra; percebi que se alguém ficasse por ali por muito tempo acabaria tendo por atividade principal olhar pela janela. Em pouco tempo eu tinha lido os folhetos que encontrara, e fiquei observando os locais por onde antigos prisioneiros tinham fugido, vi onde uma grade tinha sido serrada e ouvi a história de vários hóspedes anteriores daquele aposento; pois acabei descobrindo que até mesmo ali circulavam histórias e tagarelices que não conseguem atravessar as paredes da cadeia. Essa é provavelmente a única casa na cidade onde se escrevem poesias que são publicadas em forma de circular, mas que não chegam a virar livros. Mostraram-me uma grande quantidade de poesias feitas por alguns jovens cuja tentativa de fuga tinha sido frustrada; eles vingavam-se declamando os seus versos.

Tirei tudo o que pude do meu companheiro de cela, pois temia nunca mais tornar a encontrá-lo; mas finalmente ele indicou-me a minha cama e deixou para mim a tarefa de apagar a lamparina.

Ficar ali deitado por uma única noite foi como viajar a um país distante, um país que eu nunca teria imaginado visitar. Pareceu-me que nunca antes ouvira o relógio da cidade dar as horas ou os ruídos noturnos da aldeia; isso porque dormíamos com as janelas abertas, janelas estas instaladas por dentro das grades. Era como contemplar a minha aldeia natal à luz da Idade Média, e o nosso familiar rio Concord transformou-se na torrente de um Reno; à minha frente desfilaram visões de cavaleiros e castelos. As vozes que ouvia nas ruas eram dos antigos burgueses. Fui espectador e testemunha involuntária de tudo o que se fazia e dizia na cozinha da vizinha hospedaria local — uma experiência inteiramente nova e rara para mim. Tive uma visão bem mais íntima da minha cidade natal. Eu estava razoavelmente perto da sua alma. Nunca antes vira as suas instituições. Essa cadeia é uma das suas instituições peculiares, pois Concord é a sede do condado. Comecei a compreender o que preocupa os seus habitantes.

Quando chegou a manhã, o nosso desjejum foi empurrado para dentro da cela através de um buraco na porta; era servido numa vasilha de estanho ajustada ao tamanho do buraco e consistia numa porção de chocolate com pão preto; junto vinha uma colher de ferro. Quando do lado de fora pediram a devolução das vasilhas, a minha inexperiência foi tanta que coloquei de volta o pão que não comera; mas o meu companheiro pegou o pão e aconselhou-me a guardá-lo para o almoço ou para o jantar. Pouco depois, deixaram que ele saísse para trabalhar num campo de feno das vizinhanças, para onde se deslocava todos os dias; não voltaria antes do meio-dia; ele então deu-me bom-dia e disse que duvidava que nos víssemos de novo.

Quando saí da prisão — pois alguém interferiu e pagou o meu imposto —, percebi diferenças, não as grandes mudanças no dia-a-dia notadas por aqueles aprisionados ainda jovens e devolvidos já trôpegos e grisalhos. Ainda assim uma nova perspectiva tinha-se instalado no meu modo de ver a cidade, o Estado e o país, representando uma mudança maior do que se fosse causada pela mera passagem do tempo. Vi com clareza ainda maior o Estado que habitava. Vi até que ponto podia confiar nos meus conterrâneos como bons vizinhos e amigos; e percebi que a sua amizade era apenas para os momentos de tranqüilidade; senti que eles não têm grandes intenções de proceder corretamente; descobri que, tal como os chineses e malaios, eles formam uma raça diferente da minha, por causa dos seus preconceitos e superstições; constatei que eles não arriscam a si mesmos ou a sua propriedade nos seus atos de sacrifício pela humanidade; vi que, no fim das contas, eles não são tão nobres a ponto de conseguir tratar o ladrão de forma diferente do que este os trata; e que só querem salvar as suas almas, através de ações de efeito, de algumas orações e da eventual observação dos limites particularmente estreitos e inúteis de um caminho de retidão. É possível que esteja proferindo um julgamento duro sobre os meus vizinhos, pois acredito que a maioria deles não sabe que existe na sua cidade uma instituição tal como a cadeia.



Antigamente, na nossa aldeia, havia o costume de saudar os pobres endividados que saíam da cadeia olhando-os através dos dedos dispostos em forma das barras de uma janela de prisão; e perguntava-se ao recém-liberto: “Como vai?” Não recebi essa saudação dos meus conhecidos, que primeiro me encaravam e depois entreolhavam-se, como se eu acabasse de voltar de uma longa viagem. Eu tinha sido preso quando me dirigia ao sapateiro para buscar uma bota consertada. Quando fui solto na manhã seguinte, resolvi retomar o que estava fazendo e, depois de calçar a tal bota, juntei-me a um grupo que pretendia colher frutas silvestres e me queria como guia. E em pouco mais de meia hora — pois logo recebi um cavalo arreado — chegamos ao topo de um dos nossos mais altos morros, onde abundavam frutas silvestres, a três quilômetros da cidade; e dali não se podia ver o Estado em lugar nenhum.



Esta é a história completa das “Minhas prisões”.



Nunca me recusei a pagar o imposto referente às estradas, pois a minha vontade de ser um bom vizinho é tão grande quanto a de ser um péssimo súdito; no que toca à sustentação das escolas, atualmente faço a minha parte na tarefa de educar os meus conterrâneos. Não é um item particular dos impostos que me faz recusar o pagamento. Quero apenas negar lealdade ao Estado, quero me retirar e me manter efetivamente indiferente a ele. Não me importo em seguir a trajetória do dólar que paguei — mesmo se isso fosse possível —, até o ponto em que ele contrata um homem ou compra uma arma para matar um homem; o dólar é inocente. O que me importa é seguir os efeitos da minha lealdade. Na verdade, eu silenciosamente declaro guerra ao Estado, à minha moda, embora continue a usá-lo e a tirar vantagem dele enquanto puder, como costuma acontecer nestas situações.

Se outros resolvem pagar o imposto que o Estado me exige, nada mais fazem além do que já fizeram quando pagaram o seu imposto, ou melhor, estimulam a injustiça além do limite que o Estado lhes pediu. Se eles pagam o imposto alheio a partir de um equivocado interesse pela sorte daquele que não paga, para salvar a sua propriedade ou para evitar o seu encarceramento, isso só ocorre porque não meditaram seriamente no quanto estão permitindo que os seus sentimentos particulares interfiram no bem geral.

Esta, portanto, é minha posição atual. Mas não se pode ficar exageradamente de sobreaviso numa circunstância dessas, pelo risco de que tal atitude seja desviada pela obstinação ou pela preocupação indevida para com a opinião do próximo. Que cada um cuide de fazer apenas o que lhe cabe, e só no momento certo.

Por vezes penso assim: ora, esse povo tem boas intenções, mas é ignorante; ele faria melhor se soubesse como agir; por que incomodar os meus vizinhos e forçá-los a tratar-me de uma forma contrária às suas inclinações? Mas depois penso: não há motivo para proceder como eles ou para permitir que mais pessoas sofram outros tipos de dor. E digo ainda a mim mesmo: quando muitos milhões de homens, sem paixão, sem hostilidade, sem sentimentos pessoais de qualquer tipo, lhe pedem apenas uns poucos xelins, sem que a sua natureza lhes possibilite retirar ou alterar a sua exigência atual e sem a possibilidade de você, por seu lado, fazer um apelo a outros milhões de homens, por que você deveria se expor a tal força bruta avassaladora? Você não resistirá ao frio e à fome, aos ventos e às ondas com tanta obstinação; você submete-se pacificamente a mil imposições similares. Você não coloca a cabeça na fogueira. Mas exatamente na medida em que não considero esta força inteiramente bruta — e sim uma força parcialmente humana — e em que avalio que mantenho relações com esses milhões e com outros muitos milhões de homens — que não são apenas coisas brutas ou sem vida —, vejo também que é possível a apelação: em primeira instância e de pronto, eles podem apelar ao Criador; em segunda instância, podem apelar uns aos outros. Mas se ponho a minha cabeça no fogo de propósito não há apelo possível a ser feito ao fogo ou ao Criador do fogo, e sou o único culpado pelas conseqüências. Se eu conseguisse convencer-me de que tenho algum direito a me sentir satisfeito com os homens tal como eles são, e a tratá-los de acordo com isso e não parcialmente de acordo com as minhas exigências e expectativas de como eles e eu mesmo deveríamos ser, então, como bom muçulmano e fatalista, eu teria que me esforçar para ser feliz com as coisas como elas são e proclamar que tudo se passa segundo a vontade de Deus. E, acima de tudo, há uma diferença entre resistir a essa força e a uma outra puramente bruta ou natural: a diferença é que posso resistir a ela com alguma efetividade. Não posso esperar mudar a natureza das pedras, das árvores e dos animais, tal como Orfeu.

Não quero polemizar com qualquer homem ou nação. Não quero fazer filigranas, estabelecer distinções elaboradas ou colocar-me numa situação superior à dos meus vizinhos. Estou a buscar, posso admitir, até mesmo uma desculpa para aceitar as leis do país. Estou preparado até demais para obedecer a elas. Neste particular tenho motivos para suspeitar de mim mesmo; e a cada ano, quando se aproxima a época da visita do coletor de impostos, surpreendo-me disposto a revisar os atos e as posições do governo central e do governo estadual, a rever o espírito do povo, para descobrir um pretexto para a obediência.

Devemos ter afeto ao nosso país como aos nossos pais
E se a qualquer tempo alienamos
Nosso amor ou indústria de fazer-lhes honra
Devemos respeitar os efeitos e ensinar à alma
Questão de consciência e religião,
E não desejo de domínio ou benefício.

Acredito que logo o Estado será capaz de aliviar-me de todos os encargos deste tipo e então não serei mais patriota do que o resto dos meus conterrâneos. Encarada de um ponto de vista menos elevado, a Constituição, com todos os seus defeitos, é muito boa; a lei e os tribunais são muito respeitáveis; mesmo o Estado de Massachusetts e o governo dos Estados Unidos da América são, em muitos aspectos, coisas admiráveis e bastante raras, pelas quais devemos ser gratos, tal como nos disseram muitos estudiosos das nossas instituições. Mas se elevarmos um pouco o nosso ponto de vista, elas mostram-se tais como as descrevi; e indo mais além, até chegarmos ao mais alto, quem será capaz de dizer o que são elas, ou quem poderá dizer que sequer vale a pena observá-las ou refletir sobre elas?
Entretanto, não me preocupo muito com o governo, e quero dedicar a ele o menor número possível de reflexões. Mesmo no mundo tal como é agora, não passo muitos momentos sujeito a um governo. Se um homem é livre de pensamento, livre para fantasiar, livre de imaginação, de modo que aquilo que nunca é lhe parece ser na maior parte do tempo, governantes ou reformadores insensatos não são capazes de lhe criar impedimentos fatais.

Sei que a maioria dos homens pensa de maneira diferente de mim; mas não estou nem um pouco mais satisfeito com os homens que se dedicam profissionalmente a estudar estas questões e outras parecidas. Pelo fato de se colocarem tão integralmente dentro da instituição, os homens de Estado e os legisladores nunca conseguem encará-la nua e cruamente. Eles gostam de falar sobre mudanças na sociedade, mas não têm um ponto de apoio situado fora dela. Pode ser que haja entre eles homens de certa experiência e critério e evidentemente capazes de criar sistemas engenhosos e até úteis, pelos quais lhes devemos gratidão; mas todo o seu gênio e toda a sua utilidade não ultrapassam certos limites relativamente estreitos. Eles tendem a esquecer que o mundo não é governado através de decisões e conveniências. Webster nunca chega aos bastidores do governo e, por isso, não pode ser uma autoridade no assunto. As suas palavras são sábias apenas para os legisladores que não cogitam de qualquer reforma essencial no governo existente; para as exigências dos pensadores e dos que fazem leis duradouras, ele nem chega a visualizar o assunto. Conheço algumas pessoas cujas especulações serenas e sábias logo revelariam os limites do alcance e da hospitalidade da imaginação de Webster. Mesmo assim, quando comparadas com as paupérrimas declarações da maioria dos reformadores e com a mentalidade e a eloquência ainda piores dos políticos em geral, as suas palavras são praticamente as únicas que têm valor e revelam sensibilidade; devemos por isso agradecer ao céu por contarmos com Webster. Em termos comparativos, ele é sempre impetuoso, original e, acima de tudo, prático. Mas a sua virtude não é a sabedoria, e sim a prudência. A verdade de um jurista não é a Verdade, mas a consistência, ou uma conveniência consistente. A verdade está sempre em harmonia consigo mesma, e a sua importância principal não é a de revelar a justiça que porventura possa conviver com o mal. Webster bem merece o título pelo qual é conhecido: “Defensor da Constituição”. De fato, ele não precisa atacar, mas apenas armar a defesa contra os golpes alheios. Ele não é um líder, e sim um seguidor. Os seus líderes são os constitucionalistas de 1787. Eis as suas próprias palavras: “Nunca tomei e nunca pretendo tomar uma iniciativa; nunca apoiei ou pretendo apoiar uma iniciativa — que vise desmanchar o acordo original pelo qual os diversos Estados formaram a União”. Ao comentar a cobertura que a Constituição dá à escravidão, diz ele: “Já que é parte do pacto original, que continue a escravidão”. Apesar da sua agudeza e habilidade especiais, ele não consegue isolar um fato das suas relações meramente políticas para contemplá-lo nos termos absolutos exigidos para o seu aproveitamento pelo intelecto — por exemplo, o que se impõe moralmente hoje em dia nos Estados Unidos no tocante a agir frente à escravidão; no entanto, ele arrisca-se ou é levado a formular uma resposta desesperada tal como a que se segue, e insiste que fala em termos absolutos, como um homem particular: “A forma pela qual os governos dos Estados onde existe escravidão decidem regulamentá-la é matéria da sua própria deliberação, pela qual são responsáveis perante os seus cidadãos, perante as leis gerais da propriedade, da humanidade e da justiça, e perante Deus. Quaisquer associações formadas em outro lugar, mesmo oriundas de um sentimento de compaixão humana, ou com qualquer outra origem, nada têm a ver com o assunto. Nunca lhes dei qualquer apoio, e nunca darei”. Que novo e original código de obrigações sociais pode ser inferido de palavras como estas? (1)

Para os que não conhecem as fontes mais puras da verdade, que não querem subir mais pela sua correnteza, a opção — sábia — é interromper a sua busca na Bíblia e na Constituição; será aí que eles a sorverão, com reverência e humildade; mas para aqueles que conseguem perceber que a verdade vem mais de cima e alimenta esse lago ou aquele remanso, é preciso preparar de novo o corpo para continuar a peregrinação, até chegar à nascente.

Ainda não surgiu um homem dotado de gênio para legislar no nosso país. Homens assim são raros na história mundial. Oradores, políticos e homens eloqüentes existem aos milhares; mas ainda estamos por ouvir a voz do orador capaz de solucionar as complexas questões do dia-a-dia. Amamos a eloquência pelos seus méritos próprios, e não pela sua capacidade de pronunciar uma verdade qualquer, nem pela possibilidade de inspirar algum heroísmo. Os nossos legisladores ainda não aprenderam a distinguir o valor relativo do livre-comércio frente à liberdade, à união e à retidão. Eles não têm gênio ou talento nem para as questões relativamente simplórias dos impostos, das finanças, do comércio e da indústria, da agricultura. A América do Norte não conseguiria manter por muito tempo a sua posição entre as nações se fôssemos abandonados à esperteza palavrosa dos congressistas; felizmente contamos com a experiência madura e com os protestos efetivos do nosso povo. Talvez não tenha o direito de afirmar isto, mas o Novo Testamento foi escrito há mil e oitocentos anos; no entanto onde encontrar o legislador suficientemente sábio e prático para se aproveitar de tudo o que esse texto ensina sobre a ciência da legislação?

A autoridade do governo, mesmo do governo ao qual estou disposto a me submeter — pois obedecerei com satisfação aos que saibam e façam melhor do que eu e, sob certos aspectos, obedecerei até aos que não saibam nem façam as coisas tão bem —, é ainda impura; para ser inteiramente justa, ela precisa contar com a sanção e com o consentimento dos governados. Ele não pode ter sobre a minha pessoa e meus bens qualquer direito puro além do que eu lhe concedo. O progresso de uma monarquia absoluta para uma monarquia constitucional, e desta para uma democracia, é um progresso no sentido do verdadeiro respeito pelo indivíduo. Será que a democracia tal como a conhecemos é o último aperfeiçoamento possível em termos de construir governos? Não será possível dar um passo a mais no sentido de reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que ele venha a reconhecer no indivíduo um poder maior e independente — do qual a organização política deriva o seu próprio poder e a sua própria autoridade — e até que o indivíduo venha a receber um tratamento correspondente. Fico imaginando, e com prazer, um Estado que possa enfim se dar ao luxo de ser justo com todos os homens e de tratar o indivíduo respeitosamente, como um vizinho; imagino um Estado que sequer consideraria um perigo à sua tranqüilidade a existência de alguns poucos homens que vivessem à parte dele, sem nele se intrometerem nem serem por ele abrangidos, e que desempenhassem todos os deveres de vizinhos e de seres humanos. Um Estado que produzisse esta espécie de fruto, e que estivesse disposto a deixá-lo cair logo que amadurecesse, abriria caminho para um Estado ainda mais perfeito e glorioso; já fiquei a imaginar um Estado desses, mas nunca o encontrei em qualquer lugar.
Notas
(1) – Inseri estes trechos do discurso de Webster depois de ter proferido a conferência. (N.A.)

* – “The Burial of Sir John Moore at Corrunna” – Charles Wolfe (1791-1823) – (N.E.)

** – “King John” – Ato V, cena 2 – W.
 

Shakespeare – (N.E) Desobediência Civil (1849)
Henry David Thoreau (1817-1862)
Publicado pela primeira vez em “Aesthetic Papers”,
coletânea compilada por Elizabeth Peabody em 1849

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Fonte Digital
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Crédito:
Alexandre Lopes Lobo
lopeslobo@ip.pt

© 2001 – Henry David Thoreau

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