Gustavo Roberto Costa
Promotor de Justiça
Promotor de Justiça
É incrível como nos acostumamos com chavões e “clichês” no mundo jurídico. Expressões e frases – muitas vezes em latim – que servem para uma infinidade de ocasiões, como se todos os incontáveis problemas pudessem ser antevistos pela lei ou por tais ensinamentos. Somos treinados nas escolinhas de direito chamadas de faculdades – preocupadas somente com o maior número possível de alunos aprovados na OAB, quando deveriam se preocupar em formar pensadores – a apenas repetir o que nos é passado, sem qualquer contestação. Quanto menos capacidade crítica melhor. E isso, evidentemente, reflete o dia-a-dia forense.
“A prisão é necessária para garantir a ordem pública”, “o crime é de extrema e incalculável gravidade”, “aumento a pena base porque a culpabilidade é acentuada”, “Quod non est in actis, non est in mundo” (essa é demais), “a palavra dos policiais tem presunção de legitimidade” (e das demais testemunhas não tem por quê?) e tantos outros brocardos infestam os autos dos processos criminais Brasil afora.
O tal “princípio” do in dubio pro societate é mais um entre tantos. Significa que, em determinadas fases do processo penal – como no oferecimento da denúncia e na prolação da decisão de pronúncia – inverte-se a lógica: a dúvida não favorece o réu, e sim a sociedade. Em outras palavras, ao receber os autos do inquérito policial, havendo dúvida, deve o Promotor de Justiça oferecer a denúncia [1]. Da mesma maneira na fase da pronúncia: se o juiz ficar em dúvida sobre mandar o processo a júri ou não, deve optar pela solução positiva [2].
Mas isso está correto? O princípio em comento é previsto em algum dispositivo legal? Ou melhor: trata-se mesmo de um “princípio”? A resposta – a menos que rasguemos a Constituição Federal e o Código de Processo Penal – é cristalinamente negativa.
Para verificar se há justa causa para o exercício da ação penal, deve o Promotor de Justiça verificar se no inquérito policial há elementos suficientes em desfavor do investigado. Caso não haja indícios capazes de embasar a acusação, a denúncia será inviável, ainda que dúvidas haja no íntimo do órgão acusatório.
O art. 396, III, do Código de Processo Penal estabelece que a denúncia ou queixa será rejeitada quando faltar justa causa para o exercício da ação penal. Justa causa, para a doutrina e jurisprudência pátrias, é a presença de indícios mínimos que possam fundamentar a instauração da ação penal. Num Estado Democrático de Direito, para que alguém ostente a posição de réu num processo criminal – danoso por si só –, é mister, seja a demanda embasada em elementos que indiquem, ao menos em tese, ter ocorrido o crime (materialidade) e ter sido o acusado seu autor (autoria).
Celso de Mello alerta:
“Não se revela admissível, em juízo, imputação penal destituída de base empírica idônea, ainda que a conduta descrita na peça acusatória possa ajustar-se, em tese, ao preceito primário de incriminação. Impõe-se, por isso mesmo, ao Poder Judiciário, rígido controle sobre a atividade persecutória do Estado, notadamente sobre a admissibilidade da acusação penal, em ordem a impedir que se instaure, contra qualquer acusado, injusta situação de coação processual” [3].
Maria Thereza de Assis Moura vai mais fundo, e oferece um adjetivo justo ao princípio – que de princípio não tem nada – em análise:
“A acusação, no seio do Estado Democrático de Direito, deve ser edificada em bases sólidas, corporificando a justa causa, sendo abominável a concepção de um chamado princípio in dubio pro societate”. [4]
A lição de Tourinho Filho é no mesmo vértice:
“A prisão é necessária para garantir a ordem pública”, “o crime é de extrema e incalculável gravidade”, “aumento a pena base porque a culpabilidade é acentuada”, “Quod non est in actis, non est in mundo” (essa é demais), “a palavra dos policiais tem presunção de legitimidade” (e das demais testemunhas não tem por quê?) e tantos outros brocardos infestam os autos dos processos criminais Brasil afora.
O tal “princípio” do in dubio pro societate é mais um entre tantos. Significa que, em determinadas fases do processo penal – como no oferecimento da denúncia e na prolação da decisão de pronúncia – inverte-se a lógica: a dúvida não favorece o réu, e sim a sociedade. Em outras palavras, ao receber os autos do inquérito policial, havendo dúvida, deve o Promotor de Justiça oferecer a denúncia [1]. Da mesma maneira na fase da pronúncia: se o juiz ficar em dúvida sobre mandar o processo a júri ou não, deve optar pela solução positiva [2].
Mas isso está correto? O princípio em comento é previsto em algum dispositivo legal? Ou melhor: trata-se mesmo de um “princípio”? A resposta – a menos que rasguemos a Constituição Federal e o Código de Processo Penal – é cristalinamente negativa.
Para verificar se há justa causa para o exercício da ação penal, deve o Promotor de Justiça verificar se no inquérito policial há elementos suficientes em desfavor do investigado. Caso não haja indícios capazes de embasar a acusação, a denúncia será inviável, ainda que dúvidas haja no íntimo do órgão acusatório.
O art. 396, III, do Código de Processo Penal estabelece que a denúncia ou queixa será rejeitada quando faltar justa causa para o exercício da ação penal. Justa causa, para a doutrina e jurisprudência pátrias, é a presença de indícios mínimos que possam fundamentar a instauração da ação penal. Num Estado Democrático de Direito, para que alguém ostente a posição de réu num processo criminal – danoso por si só –, é mister, seja a demanda embasada em elementos que indiquem, ao menos em tese, ter ocorrido o crime (materialidade) e ter sido o acusado seu autor (autoria).
Celso de Mello alerta:
“Não se revela admissível, em juízo, imputação penal destituída de base empírica idônea, ainda que a conduta descrita na peça acusatória possa ajustar-se, em tese, ao preceito primário de incriminação. Impõe-se, por isso mesmo, ao Poder Judiciário, rígido controle sobre a atividade persecutória do Estado, notadamente sobre a admissibilidade da acusação penal, em ordem a impedir que se instaure, contra qualquer acusado, injusta situação de coação processual” [3].
Maria Thereza de Assis Moura vai mais fundo, e oferece um adjetivo justo ao princípio – que de princípio não tem nada – em análise:
“A acusação, no seio do Estado Democrático de Direito, deve ser edificada em bases sólidas, corporificando a justa causa, sendo abominável a concepção de um chamado princípio in dubio pro societate”. [4]
A lição de Tourinho Filho é no mesmo vértice:
“É indispensável haja nos autos do inquérito ou peças de informação, ou na representação, elementos sérios, sensatos, a mostrar que houve uma infração penal, e indícios mais ou menos razoáveis de que o seu autor foi a pessoa apontada”. [5]
Se há necessidade de elementos sérios, sensatos, e indícios razoáveis, não existe espaço para se falar em dúvida. Não se pode dizer que é do interesse da sociedade que alguém seja processado criminalmente sem base concreta. A não ser que seja aquela sociedade (da qual já falamos) que sabe que citado princípio jamais a atingirá, pois feito somente para os outros – e nós sabemos bem quem.
Na fase da decisão de pronúncia a conclusão é a mesma. É dizer, deve ser solenemente ignorado o denominado princípio do in dubio pro societate.
O art. 413 do Código de Processo Penal estabelece que o juiz pronunciará o acusado se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. Em momento algum está a lei a falar em dúvida. A dúvida do juiz é problema dele. Para levar um acusado a julgamento pelo Conselho de Sentença, imprescindível seja a decisão embasada na prova da materialidade e em indícios – produzidos sob o crivo do contraditório – que apontem ser ele o autor da infração penal. Na ausência de aludidos indícios, outra solução não há que não o decreto de impronúncia (CPP, art. 414).
Nada melhor que se socorrer novamente do escólio de Tourinho Filho para elucidar de vez a questão:
“Afirmar, simplesmente, que a pronúncia é mera admissibilidade da acusação e que estando o Juiz em dúvida aplicar-se-á o princípio do in dubio pro societate é desconhecer que num País cuja Constituição adota o princípio da presunção de inocência torna-se heresia sem nome falar em in dubio pro societate”. [6]
Portanto, é necessário abandonarmos os sensos-comuns; abandonarmos essas práticas ultrapassadas, que só interessavam a um direito despreocupado com as garantias fundamentais do cidadão; sermos operadores do direito críticos; não nos limitarmos mais a repetir como robôs o que nos foi um dia ensinado; os bons professores que tivemos certamente se orgulharão de nós.
Somente assim seremos capazes de realizar uma verdadeira transformação social, que já tarda há muito.Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro do Movimento do Ministério Público Democrático – MPD e do Movimento LEAP-Brasil – Law Enforcement Against Prohibition.