domingo, 30 de novembro de 2014

Lei é eficaz para matar mulheres, diz especialista


por Andrea Dip | 17 setembro, 2013

O ginecologista e obstetra Jefferson Drezett, que há mais de 10 anos coordena um serviço de abortamento legal no país explica porque o aborto pode ser considerado um problema de saúde pública


Por que o aborto pode ser considerado um problema de saúde pública?

A gente não classifica um problema como sendo de saúde pública se ele não tiver ao menos dois indicadores: primeiro, não pode ser algo que aconteça de forma rara e excepcional, tem que acontecer em uma quantidade de vezes significativa. E tem que causar impacto real para a saúde das pessoas. Nós temos esses dois critérios preenchidos na questão do aborto. A gente tem a última estimativa de cerca de 220 milhões de gestações acontecendo no mundo a cada ano e tem uma parcela disso que não é planejada que varia entre 30 a 35% deste total. Significa que gente deve ter 45 milhões de gestações não planejadas e muitas vezes não desejadas. Isso termina em um número grande de abortamentos induzidos. A gente calcula em torno de 20 milhões de abortamentos sendo praticados em condições inseguras no mundo. O aborto inseguro também não é uma arbitrariedade, é uma convenção da OMS para quando se interrompe uma gestação sem prática, habilidade, conhecimento e/ou em ambiente sem condições de higiene. O aborto inseguro tem uma forte associação com a morte de mulheres. E aí segundo dados formais da OMS a gente tem quase 70 mil mulheres morrendo por ano em decorrência de aborto inseguro, não é pouca gente.

Essas mortes acontecem em países onde o aborto não é legalizado?

Aí que está o nó: estas 70 mil mulheres não estão democraticamente distribuidas pelo mundo. 95% dos abortos praticados em condições inseguras acontecem em países em desenvolvimento e por coicidência a maioria deles têm leis restritivas em relação ao abortamento. Isso falando de mortes de mulheres. Se falarmos em danos permanentes, sequelas, “não morreu mas quase”, esse número aumenta significativamente. Por isso estamos falando de uma situação que tem toda a necessidade de ser tratada como saúde pública. É claro que você consegue diminuir o número de gestações indesejadas quando melhora a educação, o acesso a bens, à saude, à escola, à educação reprodutiva. Mas mesmo que a gente oferecesse metodos contraceptivos para todas as mulheres sexualmente ativas no mundo, segundo a OMS, se todas usassem direitinho, mesmo assim nós teriamos entre oito e 10 milhões de gestações por falhas dos próprios métodos. Uma coisa que precisa ser entendida é que as mulheres não engravidam porque não são responsáveis ou simplesmente não usam metodos contraceptivos. Dizer isso é pura ignorância. Primeiro porque as mulheres não têm acesso a planejamento reprodutivo nesse país e isso é um fato. Mas se a gente considerar as mulheres usando os métodos rotineiramente, com suas pequenas falhas, o número de gestações não planejadas sobe para 26 milhões. Estes métodos são fundamentais para as mulheres, mas sozinhos eles não garantem que não exista uma gestação indesejada ou até forçada. Isso vai variar de país para país, da educação, acesso a saúde, educação sexual. Temos um problema de saúde pública? Sim.

No Brasil quais são estes números?

Os números que nós temos são aproximados, porque a clandestinidade não nos permite precisão, mas a gente calcula os números de aborto induzido de forma científica. Hoje a gente tem aproximadamente 250 mil internações para tratamento de complicação de abortamento por ano no país. É o segundo procedimento mais comum da ginecologia em internações. Aí a gente calcula quantos abortos de fato devem ter ocorrido para que para que estas complicações tenham acontecido neste número. Este é o cálculo utilizado por vários países e pesquisadores. No caso do Brasil, a gente não deve ter menos de 800 mil abortos induzidos, provocados a cada ano. Também não ultrapassa um milhão. A média fica em um milhão de mulheres se submetendo a procedimentos clandestinos. Veja que aborto clandestino e inseguro não são sinônimos. O que determina a insegurança do aborto não é ele ser clandestino; é não ter prática, técnica ou ser realizado em ambiente inseguro. A diferença entre as chances de morrer em um aborto inseguro é de mil vezes maior. E aí qual é diferença já que no Brasil o aborto é proibido por lei? Depende ae a mulher tem dinheiro para pagar por um aborto seguro, mas muito caro, ou se ela é pobre e vai procurar por métodos inseguros. Acaba se criando uma desigualdade social, uma perversidade, porque uma mulher que tem um nível socioeconômico bom tem acesso a clínicas clandestinas, que não são legalizadas, mas são seguras. Esse aborto seguro pode custar mais de dois mil dólares, enquanto um aborto inseguro pode custar 50 reais. A criminalização do aborto impõe à mulher pobre a busca pelo aborto inseguro e clandestino e para as mulheres ricas a busca pelo aborto clandestino e seguro.

Cinquenta reais é o preço do remédio comprado no câmbio negro?

O aborto com remédio não é tão inseguro quanto se pensa. O mais grave é aquele que manipula o útero, com sondas, agulhas de tricô, venenos, elementos cáusticos cuja dose do veneno que mata o feto é muito próxima da dose que mata a mãe.

Claro que em São Paulo os números são muito menores do que nas regiões Norte e Nordeste do país onde a taxa de aborto em idade fertil é muito maior. No Brasil alguma coisa entre dia sim, dia não, morre uma mulher por complicação de um aborto, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde. Pode haver muitas outras mortes que não foram computadas como tal. Isso deve dar umas 180 mulheres por ano e há quem ache esse número aceitável. Mas a gente acha que uma mulher jovem morrendo em uma situação como essa, que poderia ser totalmente evitada, não é aceitavel. O aborto como questão de saúde pública é uma classificação internacional assumida pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetricia, pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetricia, pela Sociedade Brasileira de Reprodução Humana, pelo Grupo de Estudos de Aborto. Mas se o Ministério da Saúde não entende assim por questões políticas isso é uma tragédia.

Então hoje o que a gente tem do Ministério da Saúde é uma “não posição” a respeito do assunto?


É um evitar absoluto. É público, não estou denunciando nada que ninguém não conheça. No governo da presidente Dilma Roussef há uma proibição de tratar do tema do aborto. O executivo foge totalmente do assunto. E quando toma qualquer atitude que esbarre de relance na descriminalização do aborto, a bancada evangélica se coloca dizendo ‘a senhora se comprometeu conosco a não legalizar’. Agora, qual foi este compromisso, que usou as mulheres como moeda de troca eu não sei.


Jefferson Drezett / Reprodução

A pílula do dia seguinte é considerada abortiva pelos religiosos…

A questão da pílula do dia seguinte eu não sei mais como explicar porque é tão absurdo que chega a estupidez, ao patético. Não existe uma evidência cientifica que coloque a pílula do dia seguinte sob suspeita de ter um efeito abortivo periférico eventual, é uma medicação que não tem nenhuma evidência científica em relação ao aborto.

E a saúde pública está em boa parte nas mãos de instituições religiosas…

Sim. Mas a saúde pública é feita com dinheiro público. Uma Santa Casa não tem o direito de não distribuir uma pílula do dia seguinte ou não fazer uma laqueadura. Eles não abrem mão do recurso público mas querem colocar limitações aos direitos que as mulheres têm em um país laico em função de uma doutrina ideológica ou religiosa. Mas também tem outro dado interessante. Existe uma pesquisa de 2006, que conversou com as secretarias municipais de saúde de quase 800 municipios, uma parte com mais de 100 mil habitantes e uma parte com menos de 100 mil habitantes, sobre o serviço de abortamento legal. Foi perguntado para as secretarias se elas tinham serviços para atender vítimas de violência sexual e a resposta foi de que quase 90% dos municípios com mais ou menos de 100 mil habitantes diziam que sim, contavam com o serviço, tinham profissionais e serviços especializados. A pesquisa foi extensa, se aprofundou e perguntou se estavam cumprindo os ítens como prevenção do HIV, a pílula do dia seguinte e o resultado foi que mais da metade destes serviços que se dizem preparados não fazem a concepção de emergência e quando você pergunta por que, existem justificativas como falta do remédio. O Ministério da Saúde ofereceu os insumos para todos e, se não cumpriu, é responsabilidade do municipio comprar ou pedir. Mais da metade das mulheres que procuravam o serviço depois de um estupro não tiveram acesso a anti-concepção de emergência. Quer dizer, a gente tem uma cultura de violência contra a mulher, absurda, intolerável, injustificável, quando elas nos procuram, a gente é incompetente para protegê-las da gravidez, e quando estão grávidas, a gente é mais incompetente ainda para interromper, mesmo sendo algo previsto pela lei. E aí vem a segunda parte interessante. Quando você pergunta para as secretarias se elas tem o serviço de aborto legal, que faz parte do atendimento, de cara 30% já diz que não faz. Mas é obrigação fazer! 6% se recusam a falar sobre o assunto. Apenas 1,9% já tinha feito um aborto. É bonito dizer que tem, mas os serviços não cumprem as normas. Você diz que vai atender e quando a mulher chega com demandas gravissimas e você não atende isso é muito cruel. É imperdoável, é abandono. Mas qual é o percentual de ginecologistas que você acha que são contra o aborto, favoráveis ao estatuto do nascituro, contra o aborto em qualquer caso? 0,2%. 60% dos ginecologistas deseja no mínimo a ampliação das condições ou a descriminalização total. Se você considerar os que não acham que deveria ser crime, isso dá 80%.

De novo a conta não fecha, né? O que acontece então?

Existe uma questão chamada objeção de consciência. Isso é previsto pelo código de ética profissional e também pela legislação brasileira. Ninguém está obrigado a fazer uma coisa senão por força de lei. E o ginecologista não está obrigado a realizar um procedimento contra sua consciência. Essa liberdade de consciência e de não querer fazer alguma coisa que fere o princípio pessoal é individual, não pode ser coletiva e não é institucional. Uma instituição não pode alegar objeção de consciência. Uma Santa Casa não pode alegar objeção de consciência. Um professor titular de uma universidade importante não teria o direito de impor sua objeção de consciência a seus alunos. Mas isso acontece. Cabe a instituição ter médicos sem essa objeção para realizar esse trabalho.

E a raiz de todo esse embate está nos grupos religiosos?
Acho que tem um peso grande, mas não só. Em qual país o aborto é um consenso? Não é um tema que permite consenso porque existe um feto. A minha convicção não é igual a sua ou a de outra pessoa. Eu não tenho nojo do feto, eu sou obstetra, Cuido de crianças! Mas se eu tenho uma visão diferente de você, e nenhum de nós abre mão da própria visão, por que prevalece a sua? As mulheres terminam fazendo o aborto da mesma forma. Quantos fetos daquele um milhão que a gente perde por ano são poupados pela lei? Algum? Nenhum. E perdemos centenas de mulheres por conta disso. Dizem que quando a gente legalizar o aborto vai virar uma chacina. Mas não existe nenhuma experiência em nenhuma parte do mundo em que o aborto foi descriminalizado e houve uma explosão de abortos. Um dos últimos países que descriminalizou, o Nepal, em um prazo de quatro anos, teve uma queda de complicações relativas ao aborto vertiginosa. E você não tem um número de abortos aumentado. O lugar no mundo onde a mulher menos precisa fazer um aborto é na Holanda, o mesmo país onde o aborto é mais acessivel. A não permissão não reduz o número de abortos. Apenas torna-os clandestinos e traz toda essa tragédia da qual estamos falando. É uma legislação altamente eficaz para matar mulheres, porque obriga a clandestinidade e quem não tem dinheiro morre. E 70 mil mulheres mortas estão aí para mostrar que isso é verdade. A ideia de que a proibição resolve o problema é suficiente para uma parte da população brasileira. Que continuemos perdendo um milhão de fetos por ano. Que continuem morrendo tantas mulheres por ano.

Funciona assim com as mulheres desconhecidas né?

Sim. Uma pesquisa feita pela Unicamp em 2006 trabalhou com um número grande de ginecologistas e perguntou quantos eram favoráveis à descriminalização do aborto. Aproximadamente 15 ou 16% responderam sim. Aí perguntaram quais já tiveram em sua clinica particular uma paciente conhecida que teve uma gravidez indesejada e o procurou e o que ele fez. Se você juntasse médicos que ajudaram, orientaram fizeram o aborto ou encaminharam para um colega fazer, isso subia para 30%. A pesquisa foi além e perguntou se teve alguém da família deles já haviam passado por uma gravidez indesejada e pedido ajuda. O número de profissionais que ajudaram sobe para quase 50%. E a pergunta final era: “O senhor já teve uma parceira ou a senhora mesma já tiveram uma gravidez indesejada?” Quase 2000 profissionais responderam que sim. “E o que o senhor ou a senhora fez? Sobe para 90% o número de interrupções de gestações. Eu prefiro não entender isso como um falso moralismo. Quando eu entendo o motivo eu ajudo mais, e entendo melhor quando é minha filha. Mas nada como estar na própria pele. Em 30 anos de ginecologia, eu nunca ouvi uma mulher que tenha parado de usar o método anticoncepcional só pelo prazer de fazer um aborto. Para engravidar daquele canalha, ficar desesperada e ter o benefício, a satisfação de fazer um aborto. O aborto não é um bem a ser alcançado. As mulheres buscam no aborto soluções para situações extremas. A pergunta não deveria ser se você é contra ou a favor do aborto. Uma mulher que faz o aborto deve ser presa? Essa é a pergunta. E a maioria das pessoas vai responder que não. Então, por que ele é crime? Qual é o sentido?

E só criminaliza a mulher porque o pai da criança nem passa perto disso.

Só para a mulher. O cara não existe, estas são gestações espontâneas. Se o aborto fosse um tema que atingisse os homens essa questão teria terminado há muito tempo. É mais uma vez depositar sobre a mulher toda a responsabilidade do processo reprodutivo. A maior parte dos homens coloca toda responsabilidade pela contracepção para as mulheres e quando elas engravidam de maneira indesejada, esses caras desaparecem. Muitas mulheres talvez não abortassem se não fossem abandonadas pelos parceiros. Não que isso seja a solução. Mas muita mulher aborta porque não tem parceiro, não tem apoio, vai ser descriminada e assim por diante. A sociedade não dá a essa mulher qualquer tipo de acolhimento. Não estou dizendo que esse acolhimento resolveria a gravidez indesejada mas muitas mulheres são impulsionadas a esse aborto por um ambiente totalmente hostil.

E em nenhum momento essa mulher é considerada.

O Estatuto do Nascituro trata a mulher como um detalhe. Deveria substituir a palavra mulher por chocadeira humana. Ou receptáculo de esperma humano. Se for aprovado, o Brasil será o país mais atrasado, conservador e limitado no mundo em direitos reprodutivos.

A Defensoria Pública de São Paulo está defendendo uma mulher que foi denunciada por uma médica quando chegou sangrando ao PS de um hospital público.

A médica também deveria estar respondendo criminalmente, ela não pode revelar sigilo. Eu não sou policial, juiz, sou médico. Enquanto médico eu tenho principios éticos e legais a seguir. Eles determinam que você não pode revelar fato que tenha conhecimento no exercício da profissão. A não ser em circunstâncias especiais, por exemplo, se o profissional estiver sendo processado por um paciente, mas ainda assim eu sou obrigado a lembrar ao juiz que estes dados merecem sigilo. Também por força de lei, um estupro em uma criança ou adolescente, eu tenho a obrigação de comunicar às autoridades mesmo que a família não queira. Não existe sigilo nesta circunstância. Mas na lei de contravenções penais existe o artigo 66 que é absolutamente claro: o médico não tem permissão de revelar uma condição de sigilo que possa estabelecer um processo contra a pessoa. E tem aqueles profissionais que acham que tem que fazer procedimentos sem anestesia que é para a mulher aprender a não fazer mais. Mas o que tem por trás de tudo isso? A falta de clareza de lidar com o aborto como questão de saúde pública. não simplesmente para usar isso como argumento para discutir a descriminalização. É usar para discutir uma assistência humanizada, que não viole os direitos dessa paciente, e uma mudança no aprendizado sobre o abortamento. Na verdade o aborto termina como uma moeda de troca. A vida das mulheres, os direitos das mulheres e autonomia terminam como moeda de troca política. Você me apoia e a gente ferra com todas as mulheres sem nenhuma dor de consciência. A gente faz um conchavo político e que se dane quantas mulheres vão morrer no próximo ano. Eu gostaria que vocês nunca engravidassem sem querer, que nunca precisassem de um aborto, que fosse algo raro e excepcional. Mas que se acontecesse, não se tornassem criminosas por causa disso. Que tivessem a saúde protegida. Que o aborto fosse raro, legal e sempre seguro.

by apublica.org/

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Eu sei, mas não devia



Marina Colasanti

Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(1972)

Marina Colasanti
 nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.

domingo, 9 de novembro de 2014

Câmara aprova lei que permite exércitos estrangeiros atuarem no Brasil

Por   


A Venezuela prepara um plano com a assessoria de Cuba para criar um “exército guerrilheiro” que teria um milhão de militantes (Reprodução / Defesanet)
A Venezuela prepara um plano com a assessoria de Cuba para criar um “exército guerrilheiro” que teria um milhão de militantes (Reprodução / Defesanet)

A Câmara dos Deputados aprovou ontem (23) Projeto de Lei Complementar 276/02, que autoriza o ministro da Defesa e os chefes das Forças Armadas a autorizar o trânsito e a permanência temporária de força estrangeiras no país. De autoria do Executivo, o projeto altera os casos previstos na legislação em que a competência para determinar o ingresso de forças estrangeiras é privativa da Presidência da República, independentemente de autorização do Congresso Nacional.

Pela projeto aprovado, o ministro da Defesa poderá autorizar o ingresso de forças armadas estrangeiras nos casos de missões de busca e salvamento; missões humanitárias; programas de treinamento ou aperfeiçoamento; transporte de pessoal, carga ou de apoio logístico.

O texto também autoriza o ministro da Defesa a permitir a entrada de forças em situações de “visita oficial ou não oficial programadas pelos órgãos governamentais, inclusive as de finalidade científica e tecnológica e atendimento técnico, nas situações de abastecimento, reparo ou manutenção”.

De acordo com o autor do substitutivo aprovado, deputado Ney Lopes (PMDB-RN), o objetivo da medida é diminuir a burocracia envolvendo a autorização para a entrada de forças estrangeiras no país, uma vez que é frequente a passagem de aviões e navios militares procedentes de países vizinhos pelo espaço territorial brasileiro. “São cerca de 800 pedidos por ano, de liberações de sobrevoo ou de pouso”, além de mais de 50 de atracamento de navios de guerra estrangeiros”.

Em sua justificativa, o deputado argumentou ainda que tais situações se configuram em situações de rotina e que o “Poder Executivo apresentou o projeto em exame, a fim de desburocratizar o andamento de tais processos autorizativos e, sobretudo, evitar que a mais alta autoridade do país seja sobrecarregada desnecessariamente”.

Essa matéria foi originalmente publicada pela Defesane
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Arno Augustin: o malvado favorito de Dilma Rousseff

Secretário do Tesouro deve permanecer no próximo governo da presidente com poder ainda maior: será a ponte entre o Palácio do Planalto e o Ministério da Fazenda

Ana Clara CostaArno Augustin, secretário do Tesouro
  Arno Augustin, secretário do Tesouro (Rodrigo Pozzebom/ABr/VEJA)
É sabido que Dilma Rousseff é severa com seus subordinados. Os que melhor se adaptam ao seu estilo de gestão são aqueles que ou se curvam às suas ideias, ou compartilham delas. O secretário do Tesouro Nacional Arno Augustin faz ambas as coisas. Como na célebre animação Meu Malvado Favorito, toda vez que Dilma trama algo na economia, pode contar com Arno: ele é o seu 'minion' perfeito.
Arno guarda as chaves do Tesouro Nacional desde 2007. No governo e, sobretudo, fora dele, as preces são para que sua temporada na administração federal termine este ano. Contudo, o caminho será inverso. O secretário deverá ganhar mais poder. Dilma o quer mais perto e, por isso, deve “promovê-lo” a assessor especial, com direito a sala no Palácio do Planalto. Uma promoção e tanto para um homem que é malquisto não só por parte dos técnicos de sua própria secretaria, como também por políticos, empresários e pela alta cúpula do PT.
Levam a sua assinatura as medidas de “contabilidade criativa” que dilaceraram a credibilidade das contas públicas e que podem conduzir o país a um rebaixamento de nota pelas agências de classificação de risco em 2015. Também é atribuída a ele a parternidade de ações intervencionistas como a Medida Provisória 579, que provocou desequilíbrios no setor elétrico, e a redução da taxa de retorno para investidores interessados em dar lances nas concessões de infraestrutura feitas ao longo do governo Dilma.
Novo pitbull — No novo governo, Arno Augustin deverá servir de ponte entre o Palácio do Planalto e o Ministério da Fazenda. A depender de quem ocupe essa pasta, pode ser uma tarefa muito, muito árdua. Cresceu ao longo da semana a expectativa de que Dilma convide o ex-presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, para comandar a Fazenda. Depois de se reunir com Lula, na segunda-feira, a presidente está propensa a ceder e convidar Meirelles. Assessores próximos de Dilma reconhecem que ela não morre de amores pelo banqueiro, mas ficou balançada com a pressão vinda de seu antecessor. O argumento mais forte usado por Lula, afirmam, é de que uma guinada na economia será essencial para pavimentar a volta do ex-presidente na disputa eleitoral de 2018. E, para Lula, tal guinada só poderá acontecer se houver uma reconciliação com o mercado que Meirelles seria capaz de conduzir. Não que tenha mudado suas convicções ou reconhecido erros. Mas ela tampouco quer arcar com a culpa de ser a responsável pela saída do PT do poder.
Se Meirelles aceitar assumir a pasta, condicionará sua volta a Brasília à escolha de sua própria equipe econômica e a interferência mínima do Palácio do Planalto. Nesse contexto, a presença de Arno Augustin será crucial. “Ele será o pitbull de Dilma na área econômica. Como ele é de sua inteira confiança, Dilma vai delegar ao Arno todo o desgaste com a Fazenda”, afirma um assessor que acompanha as discussões sobre a troca ministerial. No PT, o secretário é visto com antipatia. Sua interferência na relação da Presidência com o setor privado, ainda que ele tenha apenas seguido ordens, é vista como um problema que poderia ter sido evitado. Diz um petista que se reuniu com Lula na quarta-feira, em São Paulo, que o desprezo do cacique petista por Augustin é tal que “não quer nem ouvir falar dele”. 
Soldado fiel — De fala mansa-esganiçada, vida simples e discrição pouco usual entre os caciques de Brasília, Augustin nada tem de truculento. Quem o conhece ressalta características como a boa educação e, em muitos casos, a docilidade — que só dá lugar à rispidez quando suas ordens são contrariadas. Seu domínio técnico e dedicação ao trabalho no Tesouro também são características constantemente mencionadas. Diz um senador petista que, ao participar como convidado das reuniões da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, sempre que questionado sobre números e conceitos, Augustin sabe tudo na ponta da língua e se mostra sempre solícito em ajudar.
Sua dedicação ao PT, partido ao qual é filiado desde 1987, somada à sua experiência na Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul, fez com que fosse alçado ao posto de Secretário do Tesouro ainda durante o governo Lula — posto que continuou ocupando na gestão seguinte, num grau de poder que jamais havia sido oferecido a um secretário. Dilma foi responsável por trazê-lo a Brasília, nos idos de 2003, por ver nele um soldado fiel. Com Augustin, a presidente compartilha uma linha de pensamento econômico com forte viés à esquerda, que vê no emprego, e não na estabilidade macroeconômica, a chave para o desenvolvimento do país.
A subserviência do secretário à presidente, a quem não costuma responder com negativas, coloca em xeque sua própria credibilidade como técnico. Augustin lança mão da ortodoxia econômica para vetar a liberação de empréstimos a estados, mas pode ser o mais heterodoxo dos economistas ao criar medidas contábeis que mascaram as derrapadas fiscais do governo federal. Notórias foram as vezes em que, durante o governo Lula, o secretário criou disputas entre o Tesouro e governadores devido à sua “mão fechada”.
Numa ocasião, quando ainda era secretário no Rio Grande do Sul, brigou por uma linha de crédito de 1 bilhão de dólares junto ao Banco Mundial que, ao ingressar no Tesouro, decidiu negar. O ato suscitou revolta de parlamentares gaúchos. O senador Pedro Simon (PMDB-RS) fez vigília no Senado, num discurso de mais de seis horas, para tentar chamar a atenção do Executivo. O estado era então governado pela tucana Yeda Crusius. Outro governador tucano, o paranaense Beto Richa, chegou a pedir à Justiça estadual uma mandado de prisão contra o secretário justamente por ele ter negado aval a um empréstimo de 600 milhões de reais ao estado. À época, Augustin alegou que liberar o limite significaria o descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Curiosamente, hoje, devido à contabilidade criativa de Augustin e aos efeitos nocivos da política econômica de Dilma Rousseff, o país deverá encerrar o ano com déficit fiscal. Ou seja, até o momento, a diferença entre a arrecadação e os gastos do governo está negativa em 15 bilhões de reais, o pior resultado da história. A previsão do governo era de um superávit de 99 bilhões de reais para este ano. Diante da impossibilidade de se chegar a tal número, o Executivo tentará aprovar uma nova meta fiscal antes do apagar das luzes de 2014 — proposta que a oposição já sinalizou que combaterá. Se não conseguir aprovar a nova meta no Congresso, o governo terminará o ano descumprindo a LRF que o secretário dizia respeitar, o que poderá acarretar sanção penal contra a administração federal.
Pobre menino rico — Nascido numa abastada família da cidade de Carazinho (RS), Augustin encantou-se, ainda jovem, pelo pensamento trotskista. Por ser ainda criança durante os anos de chumbo da ditadura, nada teve a ver com a resistência, muito menos luta armada. Mas desenvolveu uma peculiar sensibilidade aos temas sociais e sempre se mostrou desprendido da riqueza que seu pai, de quem herdou o nome, acumulava com o passar do tempo. Dono de terras, comerciante de máquinas agrícolas e empresário do setor automotivo, Arno pai tentou trazer os filhos para o comando dos negócios.
Avesso à política e a qualquer ideologia que não fosse o trabalho duro, o patriarca escalou o filho mais velho, Claudio, para tocar a empresa. Um contemporâneo dos irmãos Augustin contou ao site de VEJA que, em poucos meses, o primogênito organizou uma greve de funcionários na empresa paterna e foi demitido. Claudio, um dos fundadores do PT no Rio Grande do Sul, foi uma das grandes influências políticas na vida do irmão, Arno Filho. Ambos deixaram Carazinho ainda jovens para estudar em Porto Alegre — e nunca mais abandonaram o engajamento político. Enquanto Arno se dedicou à administração pública de seu estado, daí sua devoção a Dilma Rousseff, que também iniciou carreira em solo gaúcho, Claudio se tornou líder sindical e hoje preside o Sindicado dos Funcionários Públicos do Rio Grande do Sul. O único a seguir o caminho do pai foi o empresário Carlos Ernesto Augustin, que hoje comanda um conglomerado de agronegócio, em especial de soja e algodão, com sede em Rondonópolis, no Mato Grosso.
Com reportagem de Naiara Infante Bertão e Talita Fernandes

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