“Otium cum dignitate.” Não, não se traduza por “ócio com dignidade”, mas “lazer com dignidade”. Segundo Cícero, era a isso que deveria aspirar um patrício romano depois de se retirar da vida pública. O “otium” não tinha, originalmente, o sentido só pejorativo em que é empregado hoje em dia: o inútil, o irrelevante, o desnecessário. O “otium” era o tempo dedicado às coisas que fazem bem ao espírito: da boa mesa à filosofia, passando pela contemplação. Era, assim, uma espécie de descanso pela obra realizada, quando então as paixões mais acesas cederiam lugar à fruição, inclusive do pensamento. É bem verdade que o próprio Cícero não teve tempo de gozar de seu ideal. Antes disso, Marco Antônio mandou cortar-lhe cabeça e mãos… Não é de hoje que os poderosos tentam se vingar da arrogância de quem escreve, né, Apedeuta? Mas sigamos.
Lula poderia, depois de dois mandatos, dedicar-se ao “otium cum dignitate”. OK. Se não quer ler, já que confessou dormir até com Chico Buarque (e não se deve culpá-lo por isso), se não quer filosofar, se não quer contemplar a vida, tudo bem! Ainda lhe sobrariam, por exemplo, os prazeres da mesa. Brincar com os netos também deve ser coisa boa. Até mesmo fazer política, por que não?, como conselheiro… Mas quê!!! Faz questão de viver a sua decadência, o seu ocaso, da pior maneira possível: vociferando (embora devesse se preservar), esperneando contra a história, dando murro na ponta dos fatos, entregando-se a metáforas que demonstram seu ódio essencial ao regime democrático.
Já escrevi ontem um post sobre o comício que fez em Santo André. Acusou, contra a história, os “conservadores” de ligar a morte de Celso Daniel ao PT. Já apontei o que há de errado na sua afirmação. Mas ele estava mesmo impossível. Depois de ter tentado bater para si a carteira da estabilidade econômica — conquista do governo FHC —, o Apedeuta dedica-se agora a roubar para si a democratização do país. É estupendo! Os traços patológicos da psique de Lula começam a sair do controle — e tanto mais se exacerbam quanto mais ele vai caindo.
Segundo disse, a criação do PT, em 1980, “foi praticamente o começo da conquista da democracia no país”. É mentira! Mentira daquelas cabeludas! Em 1980, o Brasil já tinha uma Lei da Anistia, aprovada no ano anterior e longamente negociada com os militares. Lula esconde que ele, ao contrário do que quer fazer crer, é fruto já da abertura que estava em curso — e só por isso foi possível criar o partido. O Apedeuta e seu PT são efeitos do processo de democratização, não causas.
E o país se democratizou, entre outros motivos, porque queria a pluralidade política, aquela mesma que ele não respeita. Em Diadema, disparou esta pérola da estupidez: “Estou feliz porque o câncer está derrotado, como estarão os nossos adversários”. As oposições agiram com correção, note-se, ao jamais fazer baixa exploração política do estado de saúde de Lula e Dilma. Mas os dois, sempre que puderam, levaram a doença para o palanque. Só os tiranos compararam oposicionistas a um mal que tem de ser eliminado, que tem de ser extirpado.
Escrevi, certa feita, que Lula era o nome da doença do Brasil. Alguns vagabundos forçaram a mão para ler na frase o que ela nunca disse nem pretendeu dizer. Por mim, que ele viva mais 100 anos. Mas que morra o que ele representa de entendimento tosco da política, de intolerância, de incapacidade de conviver com a divergência. As suas palavras valem por aquilo que são: adversário bom é adversário eliminado — como o câncer.
Em Santo André, onde seu candidato, Carlos Grana, está em segundo lugar, falou para não mais do que 1,2 mil pessoas. E não tem reunido em São Paulo mais do que 2 mil aonde quer que vá. Com a boca torta pelo uso do cachimbo, pediu em Diadema o boicote a candidatos do PSDB e do PPS. O petista Mário Reali, que disputa a Prefeitura, lembrou que o último partido está com ele. Lula, então, se corrigiu. Já em São Bernardo, defendeu a aliança de Luiz Marinho (PT) com o DEM… Para o Babalorixá de Banânia, o mundo se divide em dois: os bons estão com eles e os maus que estão contra e são como o… câncer.
Os tempos são outros, é verdade. Na era digital, os comícios de rua já não têm a mesma importância, mas parece estar em curso algo mais do que uma mudança cultural. O mito Lula começou a ser corroído pela realidade, já apontei aqui. Ainda é um político muito popular, mas ele nunca se contentou com isso. Precisa exercitar as suas supostas virtudes demiúrgicas; só sabe viver como um mito; não suporta a ideia de não ser adorado, cultuado e reverenciado como um totem; sua palavra precisa ser lei. Não por acaso, em São Bernardo, será criado um “museu da greve” para cantar as suas glórias; em São Paulo, um tal “Memorial da Democracia”, com o mesmo propósito.
Lula será, claro!, por muito tempo uma referência e coisa e tal. Mas nada que satisfaça o ego de quem, agora, decidiu assumir a paternidade até daquela que o gerou: a democratização do país. Lembro-me de uma imagem de “O Homem Sem Qualidades”, de Musil, quando ele fala do prenúncio de uma nova era e o compara à dispersão de um cortejo… Essa dispersão já é uma verdade dos comícios do PT. O povo começa a se dispersar.
Lula poderia experimentar o “otium cum dignitate”, mas se nega. Prefere vivenciar a sua decadência espalhafatosa, chamando para si méritos que jamais foram seus, acusando a imprensa e o STF de golpistas e comparando a oposição ao câncer. Insiste em ser o dono do povo porque sabe que o PT estará morto quando a maioria dos brasileiros decidir ser dona de si mesma.
É por isso que Fernando Haddad, seu mamulengo estouvado, não tem a menor vergonha em visitar uma favela que acabou de sofrer um incêndio para fazer proselitismo eleitoral. Lula e essa gente gostam de um povo dependente porque não conseguem viver sem a gratidão servil dos humildes.
Lula e os petistas se tornaram dependentes de seu câncer moral.
by Reinaldo Azevedo