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O poeta argentino Juan Gelman foi um dos principais convidados da Primeira Bienal do Livro e da Leitura, de Brasília. Em entrevista ao Página/12, ele comenta as recentes declarações do ex-ditador argentino Jorge Videla, fala sobre a Operação Condor e sobre o muito que ainda precisa ser revelado para se conheça a verdade e se faça a justiça. "Não estamos falando de velhas feridas, mas sim de feridas abertas que latejam como um câncer no subsolo da memória e na medida em que não são fechadas com a verdade, fazem toda sociedade adoecer".
Darío Pignotti - Página/12
O argentino Juan Gelman é um dos maiores poetas contemporâneos e um ativo militante da causa contra o esquecimento dos crimes cometidos pelas ditaduras militares que infestaram o cone Sul nos anos 70 e 80. O filho e a nora foram assassinados por uma ação combinada das ditaduras argentina e uruguaia, nos marcos da Operação Condor. A neta foi roubada por militares e deixada na porta da casa de um policial uruguaio. Macarena Gelman só descobriu sua verdadeira história 23 anos mais tarde, graças à busca incansável do avô. Gelman foi um dos principais convidados da Primeira Bienal do Livro e da Leitura, de Brasília. Em entrevista ao Página/12, ele comenta as recentes declarações do ex-ditador argentino Jorge Videla, fala sobre a Operação Condor e sobre o muito que ainda precisa ser revelado para se conheça a verdade e se faça a justiça.
“Esta entrevista com Videla, na qual ele confessa que matou oito mil permite-me descobrir nele uma qualidade que desconhecia: a modéstia; Porque, na verdade. Foram mais de 30 mil”.
Juan Gelman está em seu apartamento no décimo segundo lugar de um hotel em Brasília, do qual se vislumbra uma paisagem urbana onde prédios públicos rigorosamente retangulares se alternam com as curvas futuristas do Congresso e da Catedral.
Para Gelman, a entrevista concedida pelo ditador deve ser vista em perspectiva.
“Videla se expressa como quem encabeçou o golpe, mas para analisar os golpes necessitamos levar em conta primeiro que eles sempre tiveram respaldo civil, segundo, que houve partidos políticos que os incitaram e, terceiro, que os golpes foram movidos por interesses muito concretos e importantes”.
- O que faltou Videla dizer?
Faltou dizer, por exemplo, quantos campos de concentração existiram, o que ocorreu dentro deles e qual foi o destino dos desaparecidos. Certa vez Videla disse (na condição de chefe de Estado) algo como: os desaparecidos não existiam, mas os militares não são mágicos, eles sabem onde fizeram com que desaparecessem.
Videla tampouco disse onde estão os arquivos. Enfim, há uma quantidade de perguntas que os familiares dos desaparecidos se fazem e sobre as quais ele não falou.
- Por quê Videla falou?
Não sei, não me atrevo a fazer nenhuma afirmação categórica, mas talvez isso faça parte de uma ofensiva da oposição ao governo, dentro e fora do país. Creio que há elementos pessoais e elementos políticos que se misturam. Digo que a entrevista possa fazer parte de tudo isso, ainda que essa não tenha sido a decisão consciente de Videla.
Também há traços de autojustificação, de autoapresentação, na qual ele se mostra como uma espécie de herói nacional, um herói que deveria ser reivindicado, adorado, ao invés de ter sido preso.
- Alguns jornalistas consideram inaceitável entrevistar um tirano. Outros entendem que todo e qualquer personagem relevante deve ser interrogado, sem concessões. Qual é sua opinião?
Entrevistá-lo não é nem bom nem ruim, o que me parece sim é que esta é uma entrevista na qual há muitas perguntas que brilham por sua ausência, que é uma entrevista absolutamente dirigida para a aceitação da impunidade dos criminosos do golpe, algo que o povo argentino não está disposto a aceitar.
Prestes a “completar 70 anos como fumante”, Gelman acende seu segundo cigarro ao abrir um novo capítulo na conversa e passar a perguntar sobre a atualidade brasileira e a Comissão da Verdade, com a curiosidade intensa de um repórter novato. Parece estar mais a vontade quando escuta do que quando fala.
Gelman se nega a opinar sobre a conjuntura brasileira e evita comentar a vigência da Lei de Anistia, decretada pelo ditador João Batista Figueiredo em 1979 e ratificada pelo Supremo Tribunal Federal há dois anos.
- A memória pode ser apagada por decreto?
Há 2.500 anos na Grécia de Péricles houve uma ditadura, a ditadura dos 400. Quando essa ditadura foi derrubada, obrigaram todos os cidadãos a jurar que não iriam recordar nada do que havia ocorrido, ou seja, estabeleceram o esquecimento por decreto.
Isso é impossível: por mais decretos que se queiram impor, não há esquecimento dos crimes cometidos pelas ditaduras. Os familiares sabem muito bem o que perderam e uma sociedade que diz que “é preciso não olhar para trás”, que “não se deve ter olhos nas costas”, “que não é o caso de abrir velhas feridas”, é uma sociedade que se equivoca.
Porque não está se falando de velhas feridas, mas sim de feridas abertas que latejam como um câncer no subsolo da memória e na medida em que não são fechadas com a verdade e com a Justiça, prejudicam toda possibilidade de que haja uma consciência cívica saudável.
- Ainda resta muito a ser investigado sobre o Plano Condor?
Creio que há muita coisa para ser investigada sobre o Plano Condor. Sabe-se quem desapareceu e não se sabe, em muitos casos, nem como, nem quando, e isso angustia os familiares. Uma coisa é imaginar o que aconteceu e outra é saber. Isso não evita a dor, mas aporta um conhecimento. Os casos da Operação Condor não esclarecidos são como uma verdade partida em dois: de um lado, as perguntas dos familiares, do outro, os militares que não deixam que se conheça o que aconteceu.
Vive-se uma situação na qual a verdade está dividida pela metade como uma melancia, compara o Premio Cervantes de Literatura.
Os jornais locais deram bastante cobertura à presença de Gelman na Primeira Bienal do Livro e da Leitura de Brasília. Ele foi uma das figuras centrais do evento, junto com o Nobel nigeriano Wole Soyinka, que falou sobre tolerância.
A memória foi um dos assuntos tratados por Gelman que, além disso, leu poemas na abertura da Bienal brasiliense, que já aparece como um dos eventos literários mais politizados do país.
- Chegou a ler os jornais argentinos nestes últimos dias?
Outro dia fiquei rindo depois de ler no Wall Street Jornal um artigo sobre o caso Repsol, onde se dizia que o que o governo argentino fez é um roubo. É divertido, Parece que quem escreveu o artigo não foi informado sobre o que a Repsol roubou.
Isso se repete em outras publicações estrangeiras e é parte da reação de vários países como os Estados Unidos, a Espanha e a União Europeia. Na Espanha, vemos com um governo se converteu em defensor de uma empresa e como isso concretiza e dá substância á teoria de que, nesses países desenvolvidos, não é a política que maneja a economia, mas exatamente o contrário, é a economia quem manda.