quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Tragédia no Rio: O maior desastre natural do país


José Renato Salatiel, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação

Chuvas intensas que caíram na região serrana do Rio de Janeiro provocaram o pior deslizamento da história do Brasil. Até o último dia 18 de janeiro, o número de mortos chegava a 710 em quatro cidades. Outras 7.780 pessoas estão desalojadas – morando em casa de vizinhos ou familiares – e 6.050 desabrigadas. Um total de 207 estão desaparecidas.

Direto ao ponto: Ficha-resumo

A tragédia foi causada por um fenômeno raro que combina fortes chuvas com condições geológicas específicas da região. Porém, ela foi agravada pela ocupação irregular do solo e a falta de infraestrutura adequada para enfrentar o problema, que se repete todos os anos no país.

O número de vítimas superou o registrado em Caraguatatuba, em 1967. Na época, tempestades e deslizamento de terra mataram 436 pessoas na cidade do litoral norte de São Paulo. Nesse mesmo ano, uma enchente deixou 785 mortos no Rio.

Na madrugada do último dia 12 de janeiro, uma enxurrada de toneladas de lama, pedras, árvores e detritos desceu a montanha arrastando tudo pelo caminho. Os rios se encheram rapidamente, inundando as cidades.

A destruição foi maior nas cidades Nova Friburgo e Teresópolis, que contabilizam o maior número de mortos. Essas cidades turísticas recebem visitantes na temporada, que aproveitam o clima ameno da serra.

Ruas foram cobertas por um mar de lama, com corpos espalhados, casas destruídas e carros empilhados. A queda de pontes em rodovias deixou cidades isoladas, e os moradores ficaram sem luz, água e telefone.

Em Nova Friburgo, o rio subiu mais de cinco metros de altura e a enchente derrubou casas. Em Teresópolis, o cenário era devastador. Condomínios, chácaras, pousadas e hotéis de luxo foram arrasados pelas avalanches de terra.

A estrutura de atendimento às vítimas entrou em colapso. O IML (Instituto Médico Legal) e os cemitérios ficaram lotados. Parentes das vítimas tiveram que fazer enterros às pressas em covas rasas.

Uma das imagens mais impressionantes foi a de uma mulher sendo salva da inundação. Ela foi içada por uma corda do alto de um prédio, enquanto o cachorro que trazia nos braços era arrastado pela enxurrada.
 
Causas
O ar quente e úmido vindo da Amazônia gerou nuvens carregadas no Sudeste. Na região serrana do Rio, as montanhas formaram uma espécie de barreira que impediu a passagem de nuvens e concentrou a chuva numa única área.

Somente em Nova Friburgo, onde a chuva foi mais intensa, em 12 dias o volume foi 84% a mais do que o previsto para todo mês de janeiro.

A água da chuva foi responsável por dois fenômenos distintos. Primeiro, a cheias nas nascentes dos rios, no alto das montanhas, que causou as enchentes. O sistema de drenagem dos municípios era obsoleto e não conseguiu escoar as águas.

E, mais grave, os deslizamentos. O solo das encostas é constituído por uma camada fina de terra e vegetação sobe a rocha. Quando fica encharcado, se descola da montanha, descendo feito uma avalanche. A grande inclinação das montanhas fez com que o deslizamento atingisse até 150 quilômetros por hora, aumentando a potência de destruição.

Boa parte das mortes, contudo, poderia ter sido evitada com políticas públicas. Durante décadas, os governos foram omissos – quando não estimularam – os loteamentos em áreas de risco permanente. Na rota da lama que desceu das encostas havia dezenas de imóveis, desde favelas até hotéis e casas de alto padrão.
 
Aquecimento global
O aquecimento global está por trás das mudanças climáticas que explicam os contrastes de seca e enchentes em várias partes do mundo. No Brasil, os prejuízos financeiros e as mortes se acumulam a cada verão.

No ano passado, 283 pessoas morreram no Estado do Rio entre os meses de janeiro e abril. As catástrofes aconteceram em Angra dos Reis, Niterói (Morro do Bumba), na capital e em outras cidades. Em São Paulo, a chuva destruiu a cidade histórica de São Luiz do Paraitinga. Em 2008, houve 135 mortes em Santa Catarina.

Compete aos governos municipais regulamentar e fiscalizar o uso do solo. O objetivo é impedir a construção de moradias nas encostas e zonas de risco. Já os governos estadual e federal precisam investir em programas preventivos e encontrar soluções menos burocráticas para garantir que os recursos cheguem até as cidades.

Um exemplo foi a liberação imediata de R$ 780 milhões da União para ajudar na reconstrução dos municípios afetados pelas chuvas deste mês. A verba foi liberada por meio de uma medida provisória assinada pela presidente Dilma Rousseff. O valor gasto com a recuperação, todavia, é superior ao que seria gasto com prevenção. Sem falar nas vidas perdidas.
Direto ao ponto

O pior deslizamento da história do país deixou 710 mortos em quatro cidades da região serrana do Rio de Janeiro. Um total de 13,8 mil pessoas estão desalojadas ou desabrigadas. O número de vítimas é maior que o registrado em Caraguatatuba, em 1967 (436 mortos). A tragédia foi causada por um fenômeno raro que combina fortes chuvas com condições geológicas específicas da região. Porém, ela foi agravada pela ocupação irregular do solo e a falta de infraestrutura nas cidades atingidas.

Os deslizamentos ocorreram na madrugada do dia 12 de janeiro. Toneladas de lama desceram as montanhas e destruíram favelas e imóveis de alto padrão. Os rios encheram e inundaram as cidades. Os estragos foram maiores em Nova Friburgo e Teresópolis, cidades turísticas. Os efeitos do aquecimento global tornam as chuvas mais intensas a cada ano. Para evitar tragédias, os governos precisam impedir a ocupação das encostas e investir em programas de prevenção.
José Renato Salatiel, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação

A MAIOR TRAGÉDIA AMBIENTAL DO BRASIL: AS CONSEQUÊNCIAS DA FALTA DE PLANEJAMENTO URBANO EM TERESÓPOLIS

 by Luiz Antônio de Souza Pereira

As fortes chuvas dos dias 11 e 12 de janeiro de 2011 e suas conseqüências ficarão marcadas na história do país, em especial, da população que vive ou perdeu parentes e amigos na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro. Foi a maior tragédia ambiental no Brasil de todos os tempos. 

Levantamentos realizados após um mês da tragédia, apresentavam: 904 mortos (381 em Teresópolis – em uma população total de 163.805, segundo o Censo do IBGE 2010), 395 desaparecidos (213 em Teresópolis), 20.996 desalojados (6.210 em Teresópolis) e 8.814 desabrigados (5.058 em Teresópolis).

Após a tragédia, algumas perguntas ganharam destaque: o que aconteceu? De quem é a culpa? A tragédia poderia ter sido evitada? Resumidamente, é verificada uma grande quantidade de chuvas nas semanas anteriores a tragédia. A grande quantidade de água precipitada, em curto intervalo de tempo, na noite do dia 11 e madrugada do dia 12 de janeiro é considerada um fenômeno raríssimo na região. Mas que pode se tornar mais freqüente, caso se confirme a tendência de alterações climáticas (devido a fatores naturais e/ou humanos). 

A morfologia da região – com encostas íngremes e vales encaixados – somada a falta de:

 i) planejamento no uso e ocupação do solo; ii) um eficaz e eficiente sistema de monitoriamente; iii) um sistema de alerta1 e iv) treinamento de como agir em situações de eventos naturais extremos
2 . Potencializaram as perdas de vida e econômica. 

OBJETIVOS 

Dentre os fatores que contribuíram e potencializaram as perdas de vidas e econômicas na Região Serrana do Estado do Rio de janeiro, no verão de 2011, o presente trabalho visa compreender e analisar o planejamento urbano (ou a sua falta), em especial, a forma de ocupação e uso do solo no município de Teresópolis – RJ nas últimas décadas. 

MATERIAIS E MÉTODOS 

As informações relativas aos aspectos naturais (climático, geológico, geomorfológico) foram pesquisadas nos relatórios e apresentações que se seguiram a tragédia, em especial, os coordenados e organizados pelo CREA-RJ. As informações referentes ao crescimento urbano da cidade ao longo das últimas décadas, em especial, desde os anos 1990, foram obtidas junto ao IBGE e publicações de autores locais, que, no geral, enfatizam aspectos históricos. 

Com base no material assinalado foi realizado trabalho de campo, que consistiu de entrevistas e registro de imagens. A maior parte do trabalho consiste de dados e informações primárias em virtude do pouco estudo anterior sobre a temática urbana no município. 

1 O prefeito do município de Areal, ao saber do que ocorreu nos municípios vizinhos, teve tempo e sabedoria para avisar a população local sobre a provável elevação do principal rio que corta a cidade.

 2 Existe um número expressivo de documentos e cartilhas de excelente qualidade. O Ministério das Cidades, por exemplo, produziu o documento “Prevenção de Riscos de Deslizamentos em Encostas: Guia para Elaboração de Políticas Municipais” (2006) e o município de Nova Friburgo, fortemente afetado pelas chuvas, possui um material de excelente qualidade “Comunidade mais segura: mudando hábitos e reduzindo riscos de movimentos de massa e inundações” (2007).

 Felizmente não falta material. Mas, infelizmente, faltam divulgação e pessoal qualificado para maiores esclarecimentos e informações. RESULTADOS No trabalho foram verificadas duas formas de ocupação do solo urbano em Teresópolis. Uma com caráter fortemente especulativo, que atende, muitas vezes, a interesses de empreendedores imobiliários locais e de fora da cidade.

 Os empreendimentos destinam-se a uma pequena parcela da população local e, em maior parte, a classe média e alta da cidade do Rio de Janeiro. O turismo e a residência de final de semana e férias são marcas históricas de Teresópolis e possuem um impacto importante na economia da cidade. 

Nas figuras 1, 2 e 3 podem ser observadas diferentes formas de especulação imobiliária e fundiária. Figuras 1, 2 e 3: Processo de especulação imobiliária e fundiária em Teresópolis-RJ Na figura 1 é observado o processo crescente de verticalização do bairro de Agriões, que contribui para a saturação da infra-estrutura existente, causa e agrava problemas ambientais e favorece a especulação fundiária da região.

Os apartamentos de 3 quartos, não raramente, ultrapassam o valor de R$300.000,00. Na figura 2 verificamos uma forma de empreendimento imobiliário que se difundiu e se dispersou por toda a cidade: a construção de casas geminadas. 

Na figura 3, ao fundo (lado direito) vemos a construção de uma rua em um condomínio – em fase de construção – que faz divisa com uma pequena propriedade rural que utiliza basicamente trabalho familiar, a mais de 10km do centro da cidade. Os lotes são relativamente pequenos (alguns com menos de 300 m 2 ). 

O valor do m 2 supera os R$ 250,00. Já no outro lado da moeda, figuras 4, 5 e 6, verifica-se um crescente processo de favelização na cidade, em áreas altamente vulneráveis a deslizamentos e enchentes. 

As chuvas de verão todos os anos causam apreensão e em alguns casos terminam em tragédias. Figuras 4, 5 e 6: Processo de favelização em Teresópolis-RJ Na figura 4 é visível o processo de favelização ao longo da BR – 116.

 Na figura 5 temos uma das muitas favelas existentes no bairro popular São Pedro, o mais habitado da cidade. Na figura 6 é constatada a formação de uma favela ao lado de um condomínio de luxo na área de expansão da cidade. CONCLUSÕES O problema apresentado se arrasta há décadas e só aumenta em função da falta de planejamento e gestão do uso do solo urbano.

 Não faltam instrumentos, vide a aprovação do Estatuto da Cidade, completando uma década nesse ano, para o combate da especulação imobiliária e a promoção do direito a uma cidade que proporcione aos seus habitantes infra-estrutura, equipamentos e serviços urbanos em quantidade e qualidade. 

Os processos descritos no trabalho, opostos, mas complementares, materializados na paisagem de Teresópolis, mas também presentes nas demais cidades brasileiras e dos países subdesenvolvidos relevam a complexidade e as contradições da sociedade e do modelo socioeconômico em que vivemos. 

A falta da gestão e planejamento urbano contribui não apenas para uma precária condição de vida das classes menos favorecidas, mas também aumenta a possibilidade de perdas de vidas e econômicas, conforme verificado em Teresópolis e municípios do entorno. Uma séria gestão e planejamento urbano não acabarão com as perdas de vidas e econômicas em eventos naturais extremos, mas provavelmente as reduzirão. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 1. BRASIL. Prevenção de Riscos de Deslizamentos em Encostas: Guia para Elaboração de Políticas Municipais. / Celso Santos Carvalho e Thiago Galvão, organizadores – Brasília: Ministério das Cidades; Cities Alliance, 2006. 

2. COMPANHIA DE PESQUISA DE RECURSOS MINERAIS – SERVIÇO GEOLÓGICO DO BRASIL. Comunidade mais segura: mudando hábitos e reduzindo riscos de movimentos de massa e inundações. / coordenação Jorge Pimentel; autores Jorge Pimentel, Carlos Eduardo Osório ferreira, Renaud D. J. Traby, Noris Costa Diniz. Rio de Janeiro: CPRM, 2007. 

3. PREFEITURA MUNICIPAL DE TERESÓPOLIS. Lei Municipal No 2.779 de 19 de maio de 2009. 4. FÉO, Roberto. Raízes de Teresópolis, outras histórias e outras coisas (1500 – 2010). Teresópolis – RJ, Editora Zem, 2010. 5. SANTOS, Milton. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1979

"Luiz Antônio de Souza Pereiram é  Geógrafo pela Universidade Federal do Rio de janeiro – UFRJ. Especialista em Planejamento e Uso do Solo Urbano pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ. Mestre e doutorando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Professor do Centro Universitário da Serra dos Órgãos – UNIFESO nos cursos de Engenharia Ambiental, Engenharia de Produção e Pedagogia". 

Incêndio de Vila Socó (Vila São José),em Cubatão/SP: Uma data para não esquecer

A GRANDE CATÁSTROFE OCORREU NA NOITE DE SEXTA-FEIRA E MADRUGADA DE SÁBADO, DO DIA 25 DE FEVEREIRO DE 1984.


O Jornal Cidade de Santos, edição do dia 26 de Fevereiro de 1984, estampava a seguinte manchete, ocupando praticamente toda a capa.

Catástrofe abala Baixada.

Milhares de litros de gasolina, procedentes de um vazamento numa das tubulações da Refinaria Artur Bernardes, transformaram a Vila São José (Vila Socó) num imenso mar de chamar, na madrugada de ontem, destruindo 500 barracos e matando dezenas de homens, mulheres, crianças e animais. A dor, a desolação e o desespero formam a imagem do local, onde nem a ação de 200 bombeiros de Santos _ com a ajuda de São Bernardo do Campo e Santos André _ conseguiram evitar a tragédia. A incredulidade e o excesso de burocracia de funcionários da refinaria foram as causas principais da tragédia, segundo denúncias de pessoas que tentaram acionar os bombeiros, quando foi constatado o vazamento, às primeiras da manhã de sexta-feira.

UMA NOITE DE FOGO E MORTE


Na maior tragédia de todos os tempos, chamas consumiram metade da Vila Socó.

E a Refinaria agiu tarde demais.

Um mar de chamas alimentado por milhares de de gasolina procedente de um vazamento numa das tubulações da Refinaria Presidente Bernardes,devorou anteontem à noite e madrugada de ontem cerca de 500 barracos na Vila São José (Vila Socó), matando dezenas de homens, mulheres, crianças e animais.Durante toda a noite o fogo, que em dados momentos tinha labaredas de mais de 100 metros, ardeu destruindo tudo que encontrava pela frente, deixando em seu rastro a dor, a desolação e o desespero.

Cerca de 200 bombeiros de Santos comandados pelo tenente – coronel Nilauril Pereira da Silva, contando com auxílio de carros-bombas de São Bernardo do Campo e Santo André, lutaram desesperadamente para minimizar a tragédia e, conseguiram em parte: eles isolaram um trecho do núcleo residencial e impediram que a destruição fosse total. Mesmo assim, o que aconteceu está sendo apontado como a maior tragédia de todos os tempos na região.

A incredulidade e o excesso de burocracia de funcionários da Refinaria, segundo denúncia de pessoas que tentaram acionar os bombeiros, quando foi constatado o vazamento, sem que o fogo tivesse começado, foram as causas principais do número de vítimas.

Ao tomar conhecimento do fato, o funcionário respondeu que primeiro acionaria um engenheiro da empresa residente em Santos e caberia a ele fazer a avaliação e chamar os bombeiros, se julgasse oportuno.

Tivesse a providência sido tomada de imediato, é possível que os bombeiros não podesse evitar o incêndio, mas pela vivência e pela prática, teriam talvez evacuado a área e evitado que tantas pessoas morressem ou ficasse gravemente feridas.

Foi de tal porte a tragédia de Cubatão que um oficial bombeiro desabafou: “A situação é tão grave e o fogo foi tão rápido, que nos tornamos impotentes para poder combatê-lo”.

Também o tenente Nilauril teve um momento de descontrole emocional, chegando ás lágrimas, por não poder fazer mais em favor dos humildes moradores da Vila São José.

Quando o dia amanheceu o incêndio já estava sob controle, mas era simplesmente impossível dar números exatos.

CORPOS LIBERADOS NO LOCAL

Devido ao número elevado de corpos, os médicos legistas deslocaram-se para o a área com a recomendação de liberar os corpos no próprio local, uma vez que o IML de Santos, não dispõe de instalações suficientes para um atendimento deste porte. As autoridades acreditam que também a tarefa de identificação das vítimas será difícil. Na maioria dos casos, somente através de informações de vizinhos ou pelo processo de eliminação vai ser possível fazer a relação dos desaparecidos.

MADRUGADA DE HORROR NA VILA SOCÓ

O horror. A madrugada infernal não deixou amanhecer em Vila Socó.

A meia noite a Vila era um mar de chamas, às duas horas um braseiro,às quatro horas um solo calcinado, cinzas, tocos fumegantes. O cheiro de carne queimada se sente à distância e não abondona facilmente as narinas. As brasas crepitam também e o barulho se ouve de longe, tudo a volta ainda arde e há corpos por toda a parte, até onde a vista alcança em meio a fuligem e a fumaça asfixiante. Os corpos queimados negros, o horror.

“Meu Deus, ah! Meu Deus”. Os gritos e orações se sucedem em meio a multidão que vai-e-vem pela margem da rodovia, pelos caminhos internos, sem saber para onde ir. Os relatos são dramáticos e vem um após outro, como se falar aos jornalistas aliviasse alguma coisa. Vozes gaguejantes, lágrimas, desespero:

“ Eu tive tempo de lançar minhas três filhas no rio do cano e me atirar antes que minha casa explodisse com tudo que tinha dentro. Estamos salvos, salvos por Deus do céu”. (de Mariana Rodrigues, empregada doméstica).

“Minha filhinha, Jesus, minha filhinha não saiu, não saiu” (de Antonio Conceição, falando de Patrícia de 3 anos, antes de entrar em estado de choque).

“Meus vizinhos morreram todos, marido, mulher, cinco filhos e a sogra. Não tiveram a menor chance” ( de Marcio Rodrigues de Souza, fumegante, costas queimadas, pele solta).

Cada mangueira dos bombeiros é empunhada por mais de 50 pessoas, moradores, amigos, gente de toda a parte. As explosões se sucedem por toda a parte – os butijões transformaram-se em bombas por entre os escombros e toda a tragédia. Os recuos e avanços das mangueiras são feitos mediante ordens gritadas e se fazem perigosamente, os movimentos nem sempre são ordenados.

O desespero acompanha o serpentear do jato d’água que vai descobrindo cadáveres.

Ninguém tem nada a dizer, e a dor só leva aos monossílabos. “Muita gente morreu, moço, gente demais”. Diz uma senhora apressada, quase em transe.

“Porque é que eu tenho que ver isso, porque tenho que estar aqui”., lamentava o experiente bombeiro, lágrimas escorrendo, escorrendo, pelo rosto enegrecido, pela boca chamuscada. “ Só naquele lugar ali (aponta) eu vi mais de vinte corpos, famílias inteiras, crianças, mulheres”… (de Armando jovem voluntário, da cota 95, que caminhou pela estrada mais dez quilômetros, para dar combate corpo-a-corpo às malditas chamas – se ele estivesse numa guerra real, de bombas e armas, seria um herói festejado).

Heroísmo que penetrou os corações mais moles, fé que penetrou os corações mais duros, os dois componentes maiores da guerra contra a fatalidade, guerra de muitas baixas.

A luta seguiu com a chegada do dia e as primeiras luzes encontraram olhares apáticos, distantes e úmidos, flagraram em meio as cinzas pais a procura de filhos, filhos a procura de pais. Autômatos que que andam pelas brasas, queimam os pés,mas não sentem nada além da dor da procura incerta, muitas vezes frustantes , outras vezes conclusiva: “Ali, ali, aquela mão, o anel, ah! Meu Deus”…

Em cinco minutos a destruição

Ninguém sabia ao certo o horário que o fogo começou, mas todos garantiram que bastou cinco minutos, para que devorasse Vila Socó.

O soldado do Polícia Rodoviária, Saturnino , estava de plantão no Forte Apache – posto rodoviário ao lado da favela, ás margens da Anchieta – quando foi avisado, às 22h30, por um morador sobre o forte cheiro de gasolina se fazia sentir na Vila.

E é o próprio Saturnino que conta os fatos que sucederam ao aviso até eclodir o trágico sinistro. “ Assim que foi alertado, estava sozinho no posto e avisei a Petrobrás. Às 23h00 chegou o pessoal da empresa, junto com o carro do bombeiros da Refinaria e mais três PMs de plantão em Cubatão. Eles bloquearam as passagens do oleoduto e lançaram espumas pelo túnel, alertando em seguida os favelados para que evacuassem a área. Como estava chovendo, muita gente acabou preferindo permanecer nos barracos, mas houve outros que vieram pedir abrigo aqui no posto rodoviário, alegando que conseguiria dormir com o cheiro da gasolina”. Segundo o soldado, a maré estava naquele momento em direção ao mar, “daí porque a destruição foi maior em uma das extremidades da favela, justamente onde a maré estava concentrando mais gasolina. Da minha parte assim que começou, acionei a rede de telecomonicações com prioridade para o incêndio que eclodiu por volta de 1 hora da madrugada”.

A operação de socorro envolveu guarnições de bombeiros de toda a Baixada, Santo André, São Bernardo do Campo, São Paulo, ambulâncias, polícia civil, militar e rodoviária, Dersa e até soldados do 2º Batalhão de Caçadores. A Prefeitura de Cubatão colocou caminhões, tratores, máquinas niveladoras e todo o pessoal disponível. Somente no dique foram utilizados mais de cem caminhões de areia na tentativa de conter as chamas. Também empresas de ônibus particulares enviaram dezenas dezenas de veículos para o local, a fim de serem utilizados no transporte de desabrigados para o Centro Esportivo de Cubatão.

Uma Operação gigantesca que, pelos depoimentos, em nada se comparou aos fatos que antecederam o sinistro. O Soldado Saturnino afirmou que até eclodir o fogo somente o bombeiro da Refinaria esteve no local, e após o bloqueamento das tubulações e o lançamento da camada de espuma para isolar a gasolina, nada mais foi feito além do apelo para evacuação da favela e a permanência em caráter de observação, do pessoal da Refinaria. Acontece que até aí muita gasolina já havia sido despejada no mangue. As declarações do soldado de plantão no posto apache foram endossadas totalmente pelo comandante da Polícia Rodoviária no Estado de São Paulo, coronel Gianoni, que chegou no final da madrugada ao local.



Um incêndio que nenhum bombeiro evitaria, diz Esteves

Nas primeiras horas da manhã de ontem, o superintendente da Refinaria engenheiro Mário de Freitas Esteves, chegou ao local em companhia de vários assessores. Entre uma determinação e outra ele atendia a imprensa: disse em princípio que sempre considerou um perigo a existência de habitações junto a oleodutos, “Pois em caso de um problema qualquer, uma verdadeira tragédia poderia acontecer, como está acontecendo”, frisou. Alegou não poder de imediato informar sobre a causa do vazamento, pois técnicos precisariam primeiro fazer um levantamento da situação.

Para Mário de Freitas, vai ser muito difícil precisar com exatidão o foco de ignição. Poderia ser uma lamparina, uma vela, um fósforo aceso ou até mesmo uma fagulha originada de um fio elétrico. Perguntado se a burocracia da Refinaria não teria originado a tragédia, Mario de Freitas respondeu de forma indireta “ nenhum bombeiro do mundo evitaria esse incêndio”. Quanto a isso não restam dúvidas, mas o que as pessoas colocam é que, se avisados a tempo, os bombeiros não poderiam ter retirado maior número de pessoas, diminuindo a quantidade de vítimas. A uma pergunta sobre quem chegou primeiro na região, os oleodutos ou os barracos, o superintendente não precisou nem pensar para responder: “primeiro chegaram os oleodutos”.

SOB CONTROLE

A seguir, Mario de Freitas explicou que a situação estava sob controle. Até mesmo o fogo, que continuava a queimar no local do vazamento da gasolina, era fruto de uma atitude deliberada. Enquanto houver gasolina na tubulação o fogo se manterá, é uma maneira de evitar que o restante da gasolina escape e novos focos de incêndio ocorram. Quantas horas esse fogo vai durar, segundo Mario de Freitas, é difícil dizer. Quando da entrevista, por volta das 8 horas, o fogo já durava quase nove horas e até que se esgote todo o combustível da tubulação, poderá levar outras 8 ou 9 horas. Concluindo, o superintendente da Refinaria explicou que uma avaliação mais concreta somente ocorrerá depois de um minucioso levantamento de todos os problemas.

Fotos da edição do Jornal Cidade de Santos

Fonte: Jornal Cidade de Santos, edição do dia26/02/1984, nº 5.989


21/02/2014

Curta-documentário 'Uma tragédia anunciada' relembra incêndio da Vila Socó

Lançamento da produção do diretor cubatense Diego Moura acontecerá na terça (25), às 19 horas, no Novo Anilinas

No exato dia em que o mundo ficou sabendo da maior tragédia da história de Cubatão, há 30 anos, o Cine Roxy do Novo Anilinas sediará o lançamento de um curta-documentário que relembra os detalhes deste triste evento.

Dirigido pelo jovem diretor cubatense Diego Moura, com produção da 6D Filmes, Anima Produções e PontoHum, "Uma Tragédia Anunciada" será apresentado em sessão pública na terça-feira (25), a partir das 19 horas.

Com entrevistas de ex-moradores e especialistas, entremeadas por imagens de arquivo, o documentário volta à época da tragédia que vitimou dezenas de moradores da favela de Vila Socó, na madrugada de 24 para 25 de fevereiro de 1984. "Essa história não pode ser esquecida e deve servir de exemplo para cada vez mais consolidarmos o desenvolvimento com sustentabilidade", declarou a prefeita Marcia Rosa, que parabenizou os organizadores do curta pela iniciativa.

Após a exibição do documentário, haverá debate com os seus realizadores, autoridades e lideranças comunitárias, como o jornalista e advogado Dojival Vieira dos Santos, fundador da Associação das Vítimas da Poluição e das Más Condições de Vida de Cubatão e o cineasta João Batista de Andrade, que produziu um documentário sobre a tragédia ainda nos anos 1980 e atualmente é Diretor Presidente da Fundação Memorial da América Latina. O encontro será mediado pelo jornalista Manuel Alves Fernandes, um dos repórteres que cobriram o desastre desde seus primeiros momentos.

O evento encerra a programação oficial de eventos realizada pela Prefeitura de Cubatão e Sociedade de Melhoramentos da Vila São José em homenagem aos 30 anos do desastre.

Tragédia - Desde o dia 23 de fevereiro de 1984, os moradores da favela Vila Socó começavam a se queixar do forte cheiro de gasolina que emanava do mangue. Porém, os responsáveis pelos dutos que por ali passaram entenderam que seria apenas mais um cheiro que saía dessas águas, conforme reportagens da época.

A esse erro, somaram-se outros, como erros de sincronização e excesso de pressão do sistema de bombeamento de combustível e falta de manutenção da rede de tubos. O resultado não poderia ser mais trágico: na madrugada de 24 para o dia 25, o duto A-S estourou e o fogo resultante do vazamento de 700 mil litros de gasolina consumiu a favela, então com quase 6.000 moradores.

Oficialmente, o número de mortos é 93, segundo as autoridades estaduais da época. Muitos dos sobreviventes, no entanto, discordam disso, já que diversas vítimas desapareceram calcinados, em cenas que jamais serão esquecidas por quem as viu.

A favela deu lugar ao núcleo residencial da Vila São José; a Petrobrás indenizou as vítimas e construiu cerca de 400 novas casas. Outros sobreviventes foram transferidos para a Vila Natal. Atualmente, o local da tragédia possui todas as especificações de segurança internacionais, e Cubatão mantém um dos mais bem elaborados planos de Defesa Civil do País.

Em 2011, a Prefeita Marcia Rosa inaugurou na Vila São José a primeira Praça da Cidadania da cidade, com uma ampla estrutura esportiva e de lazer, atraindo milhares de pessoas anualmente.



Texto: Allan Nóbrega - MTb 52.208-SP


A noite do terror na Vila Socó

dom, 16/02/14

Bastaram poucas horas para que o fogo consumisse os cerca de 1.200 barracos da favela da Vila Socó, que tinha uma população calculada em 6 mil habitantes. O incêndio, que começou pouco depois da meia-noite dia dia 24 de fevereiro, provocou 93 mortes, segundo os números oficiais, mas antigos moradores da favela afirmam que muitos desapareceram e jamais foram encontrados. No começo da noite da véspera, moradores sentiram forte cheiro de gasolina que emanava do mangue, por onde passava um duto da Petrobras que recebia o combustível da refinaria de Capuava. Acionados, supervisores da refinaria de Cubatão vistoriaram o local, tranquilizaram os moradores e deixaram o local convencidos de que era apenas um cheiro normal por onde passa um duto de gasolina.
Na semana que vem, a partir do próximo domingo, a Prefeitura de Cubatão realizará vários eventos destinados a lembrar os 30 anos da tragédia da Vila Socó. O mais emblemático será o culto ecumênico marcado para as 19 horas da segunda-feira (24), no mesmo local onde foi erguida a urbanizada Vila São José. O culto será em homenagem às vítimas, mas também aos sobreviventes, muitos dos quais ainda possuem pelo corpo as marcas da tragédia. Em outros eventos, como a exibição do documentário “Uma Tragédia Anunciada”, no Cine Roxy Novo Parque Anilinas, o diretor Diego Moura, baseia-se em entrevistas e denúncias da imprensa para comprovar que dezenas de mortes poderiam ter sido evitadas. A Petrobras sabia que passava sob a favela um oleoduto construído em 1951, sem manutenção.
A tragédia da Vila Socó teve dimensão nacional, mas as vida perdidas não foram em vão. O péssimo estado de conservação do duto de gasolina chamou a atenção de deputados e senadores e leis foram criadas para proteção civil. Também começaram a tomar forma leis de proteção ambiental.  Lamente-se que tenha faltado uma ação política mais enérgica, capaz de interromper o bombeamento de gasolina da refinaria de Capuava para o terminal santista da Petrobras na Alemoa. Há quem garanta que a tragédia foi provocada pelos técnicos de Capuava, que não fecharam as válvulas dos tanques de bombeamento da gasolina para o duto de Cubatão. Há também quem garanta que o incêndio foi causado pela imprudência dos técnicos que operavam o duto em Cubatão, que provocou o vazamento da gasolina. Mas ninguém foi punido.
 by fernando.allende

Conheça os principais acidentes ambientais no Brasil


Relação do homem com a natureza pode gerar acidentes capazes de provocar danos de longo prazo ao meio ambiente e, também, aos seres humanos. Veja alguns fatos no Brasil

12 DE ABRIL DE 2014
g1Remoção do lixo contaminado com césio 137. (Goiânia)
A natureza está em constante transformação. E, em alguns momentos, os seus movimentos são violentos e inesperados, causando danos a longo prazo para comunidades humanas inteiras. Por outro lado, há situações em que são os seres humanos os responsáveis pela destruição e mortandade em ambientes naturais, provocando desequilíbrios que chegam a se perpetuar por décadas. Em ambos os casos, os acidentes ambientais deixam clara a delicada relação da espécie humana com o meio ambiente.
Dentre os acidentes ambientais mais importantes da história do país está a contaminação pelo material radioativo Césio 137. Um dos mais graves casos de exposição à radiação do mundo, o caso ocorreu em Goiânia (GO), em setembro de 1987. Dois catadores de lixo arrobaram um aparelho radiológico nos escombros de um antigo hospital, onde encontraram um pó branco que emitia luminosidade azul quando no escuro. Sem saber o altíssimo teor radioativo do material, os catadores o levaram a outros pontos da cidade.
De mão em mão, o Césio 137 se espalhou e contaminou pessoas, água, solo e ar. A radiação foi descoberta 16 dias após a primeira exposição, levando a um longo e trabalhoso processo de descontaminação. Pelo menos quatro pessoas morreram devido à exposição, e centenas de outras desenvolveram doenças por causa do contato com o Césio 137. Em 1996, a Justiça condenou, por homicídio culposo, três sócios e um funcionário do hospital abandonado a três anos e dois meses de prisão. Porém, as penas foram trocadas por prestação de serviços voluntários.
Em um acidente mais recente, em novembro de 2011, foi a vez do petróleo causar estragos ambientais sérios na Bacia de Campos, na região Norte do estado do Rio de Janeiro. Um vazamento ocorrido no campo de Frade, uma área de exploração petroleira offshore (em águas profundas) gerou o vazamento de milhares de litros de petróleo no mar, provocando um dos maiores acidentes deste tipo no país.
Rogério Santana/Governo do RJVazamento de óleo no Campo Frade, na Bacia de Campos.
Estima-se que a mancha provocada pelo vazamento no mar tenha chegado a 162 km², o equivalente a metade da Baía de Guanabara. Foram acumulados na área de em 3,7 mil barris de petróleo. Especialistas registraram uma grande quantidade de animais mortos nas áreas afetadas pela mancha e décadas serão necessárias até que o habitat marinho local se restabeleça. Em setembro de 2013, a empresa americana Chevron , responsável pela perfuração do poço que vazou, foi condenada a pagar uma indenização de R$95 milhões ao governo brasileiro para compensar os danos ambientais causados.
A natureza com os seus ciclos também já provocou acidentes com consequências catastróficas para os seres humanos no Brail. O maior desastre natural da história do Brasil aconteceu em janeiro de 2011, na região serrana do Rio de Janeiro. Em decorrência de um elevadíssimo nível de chuvas na região, uma série de deslizamentos e enxurradas destruiu casas nas regiões de encosta, além de inundar outras residências. Foram totalizadas aproximadamente 800 mortes.
molinacuritibaEnchente no Vale do Itajaí, em Santa Catarina.
As chuvas, principalmente nas regiões sudeste e sul, costumam ser as grandes causadoras de acidentes naturais. Em 2008, a região do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, sofreu uma grande enchente, que resultou em mais de 100 mortes. Estas regiões sofrem com deslizamentos e enchentes principalmente no Verão.
A relação do homem com a natureza em um país com dimensões continentais como o Brasil, os acidentes ambientais merecem atenção redobrada. Tanto medidas para evitar contaminações quanto para prever e minimizar os efeitos de grandes eventos naturais precisam cada vez mais fazer parte das políticas governamentais. Um desafio que requer conhecimento, legislação específica, profissionais capacitados, tecnologia e, principalmente, consciência ambiental.
by pensamentoverde

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Podemos prender pelo crime de desacato?


  • Fábio Paiva Gerdulo
    Advogado
O crime de Desacato, disposto no artigo 331 do Código Penal, se torna motivo de discussão de tempos em tempos. Muitas pessoas temem incorrer em desacato e inclusive deixam de criticar o serviço de determinado agente público em decorrência de referido crime. Muitas vezes este também é utilizado pelo servidor, sem real necessidade, para coagir determinadas pessoas, pois o tipo penal é muito abrangente, podendo colocar basicamente qualquer crítica dirigida ao servidor como desacato.
Quantas pessoas não conhecem ou ouviram falar da famigerada placa descrevendo o artigo 331 do Código Penal fixada em repartições públicas? Inclusive pregada em local bem visível. Diga-se de passagem, trata-se de um dos crimes mais autoritários e não isonômicos do Código Penal.
Referido crime, para a doutrina especializada, possui raízes no Direito antigo, mais especificamente no Direito Romano, onde havia a repreensão de ofensas feitas contra magistrados, que à época era um crime gravíssimo, punido com a deportação ou até a pena de morte.[1]
Com o decorrer do tempo, referido delito ganhou um aspecto mais abrangente, se afastando do crime de injúria e atingindo outras classes de pessoas. Seu conceito também se ampliou para abarcar situações em que a ofensa é realizada contra o funcionário público quando este está agindo dentro do ofício ou quando se ache em exercício da função, onde quer que esteja, ou fora da função, mas em razão, ou seja, por motivo dela (ver exposição de motivos do Código Penal).[2]
Desacatar significa insultar, humilhar, espezinhar o funcionário público ofendendo o decoro e o prestígio da função. Segundo o ensinamento de Magalhães Noronha: “Consiste em palavras, gritos, gestos, escritos (presente o funcionário), vias de fato e lesões corporais.”[3] O bem jurídico protegido é a dignidade, o respeito devido à função pública, a probidade administrativa.
Feitas estas considerações iniciais sobre o crime em testilha, menciona-se o fato de que atualmente existem discussões que enveredam pela inaplicabilidade do crime de desacato em face do disposto no artigo 13 (liberdade de expressão) do Pacto de São José da Costa Rica, conforme passaremos a explicar.
A adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica se deu pelo Decreto Legislativo 27 de 25 de setembro de 1992 e promulgado pelo Decreto presidencial 678 de 06 de novembro deste mesmo ano. Com isso, segundo nosso entendimento, referido tratado estaria no mesmo nível de normas constitucionais, apesar de referida posição não ser uníssona.
O STF, por sua vez, após o julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343-SP de relatoria do Min. César Peluso e voto vista do Min. Gilmar Mendes, fixou entendimento de que os tratados de direitos humanos têm natureza infraconstitucional e supralegal, posição diferente da anterior adotada pela Corte que equiparava os tratados a leis ordinárias.
Este é o entendimento exarado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal atualmente, vide:
“PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. (...) RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. ”
Infere-se de referidas decisões do Supremo Tribunal Federal que devem ser afastadas as normas jurídicas da legislação infraconstitucional que conflitem com as normas de tratados internacionais cujo objeto sejam os Direitos Humanos.
É o que ocorre no presente caso com o crime de Desacato, pois sua aplicação viola diretamente o artigo 13[4] da Convenção Americana de Direitos Humanos, que trata da liberdade de pensamento e expressão.
Segundo Luiz Flávio Gomes e Valerio de Oliveira Mazzuolli referido dispositivo foi confeccionado com o seguinte objetivo, vide [5]:
“A disposição convencional em comento está voltada para o Estado, que às vezes restringe (sem poder) esse direito do cidadão, censurando-o ou privando-o de externar seu pensamento ou de expressar sua opinião. Trata-se de direito que constitui um dos pilares da sociedade democrática de direito e uma das principais condições para que os integrantes de um Estado possam desenvolver-se plenamente, sem o temor de censura e opressão. ”
Neste sentido, na data de 1995 a CIDH já havia elaborado relatório se posicionando no sentido de que as leis de desacato são incompatíveis com o artigo 13 da Convenção, pois são abusivas, servindo de meio para silenciar ideias e opiniões impopulares, reprimindo assim o debate crítico que auxilia no melhor funcionamento das instituições democráticas.[6]
Nesta esteira, no ano de 2000[7], a Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez por bem aprovar a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão. Mencionada declaração deu uma interpretação definitiva ao artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, sendo que o Princípio de nº 11 da declaração passou a prever o que segue:
“Os funcionários públicos estão sujeitos a um maior controle por parte da sociedade. As leis que punem a manifestação ofensiva dirigida a funcionários públicos, geralmente conhecidas como ‘leis de desacato', atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação. ”
Corroborando com este entendimento, e merecendo a menção, temos Recomendação Conjunta nº 02/15 de 23 de abril de 2015, da Defensoria Pública do Espirito Santo, que segue a seguinte posição em consonância com a da CIDH, vide:
“A incriminação por desacato, delito previsto no artigo 331 do Código Penal, afronta o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), ao impedir que o cidadão manifeste-se criticamente diante de ações e atitudes dos funcionários públicos, no exercício de sua função. Desta forma, RECOMENDA-SE aos Defensores Públicos que sustentem a absolvição do indivíduo, no bojo das ações judiciais, utilizando como instrumento o controle de convencionalidade”.
Portanto, caso se impute a alguém a prática do crime constante no artigo 331 do Código Penal, este indivíduo que fez uma manifestação pública de desapreço ao funcionário público, deverá ser absolvido diante da violação do artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica.
Por fim, verifica-se que o Brasil, neste ponto, se encontra atrasado no quesito de aplicação do controle de convencionalidade. Poucos são os artigos ou obras acadêmicas a mencionar e discutir referida celeuma, muito menos verifica-se a aplicação destes preceitos pelo judiciário pátrio, algo que, se espera, seja alterado.[8]
Fábio Paiva Gerdulo é Pós-Graduado em Direito e Processo Penal Pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduando em Direito Constitucional pela PUC-SP (COGEAE). Graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro da Comissão de Direito Penal Econômico da OAB-SP. Advogado na banca Florêncio Filho advogados.

REFERÊNCIAS
[1] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Vol. V. Editora Saraiva. 2009. P. 177.
[2] Noronha, Edgard Magalhães. Direito Penal. Vol. IV. Editora Saraiva. 1998. P. 311.
[3] Noronha, Edgard Magalhães. Direito Penal. Vol. IV. Editora Saraiva. 1998. P. 312.
[4] Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão. 1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para asseguraça o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões. 4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
[5] Gomes, Luiz Flávio Gomes. Mazzuoli, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Ed. RT. 2013. 4ª edição. P. 176-177.
[6] CIDH, Relatório sobre a compatibilidade entre as leis de desacato e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, OEA/Ser. L/V/II.88, doc. 9 rev., 17 de fevereiro de 1995, 197-212.
[7] Vide:  “Relatório Anual da CIDH, 2000”, Volume III, Relatório da Relatoria para a Liberdade de Expressão, Capítulo II (OEA/Ser.L/V/II.111 Doc.20 rev. 16 abril 2001).
[8] Fazemos ressalva a sentença proferida pelo Juiz Alexandre Morais da Rosa, em sede de julgamento dos autos de nº 0067370-64.2012.8.24.0023, da Comarca de Florianópolis (SC), que houve por bem sentenciar que o Desacato não é crime diante do Controle de Convencionalidade.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Homicídios contra mulheres negras aumentam 54% em 10 anos, mostra estudo

Agência Brasil


Os homicídios de mulheres negras aumentaram 54% em dez anos no Brasil, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. Enquanto, no mesmo período, o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, saindo de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013. É o que aponta o Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil, estudo elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), divulgado hoje (9).
Em 2013, 13 mulheres foram mortas por dia no país, em média, um total de 4.762 homicídios.
Nesta edição, segundo a Flacso, o estudo foca a violência de gênero e revela que, no Brasil, 55,3% desses crimes aconteceram no ambiente doméstico, sendo 33,2% cometidos pelos parceiros ou ex-parceiros das vítimas. Com base em dados de 2013 do Ministério da Saúde, ele aponta ainda que 50,3% das mortes violentas de mulheres são cometidas por familiares.
Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil, estudo elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), foi divulgado hoje
Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil, estudo elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), foi divulgado hoje
Sobre a idade das vítimas, o Mapa da Violência aponta baixa incidência até os 10 anos de idade, crescimento até os 18 e 19 anos, e a partir dessa idade, uma tendência de lento declínio até a velhice.
O país tem taxa de 4,8 homicídios para cada 100 mil mulheres, a quinta maior do mundo, conforme dados da Organização Mundial da Saúde que avaliaram um grupo de 83 países, informou a Flacso.
O Mapa da Violência é um trabalho desenvolvido pelo pesquisador Julio Jacobo Waiselfisz que, desde 1998, já divulgou 27 estudos. Todos eles, segundo a Flacso, trabalharam a distribuição por sexo das violências, sejam suicídios, homicídios ou acidentes de transporte, mas em 2012, dada a relevância do tema e as diversas solicitações nesse sentido, foi elaborado o primeiro mapa especificamente focado nas questões de gênero.
Homicídios de Mulheres no Brasil
De 1980 a 2013, foram vítimas de assassinato 106.093 mulheres. Entre 2003 e 2013, o número de vítimas do sexo feminino passou de 3.937 para 4.762, incremento de 21,0% na década.
Segundo o Mapa da Violência, diversos estados evidenciaram “pesado crescimento” na década, como Roraima, onde as taxas de homicídios femininos cresceram 343,9%, ou Paraíba, onde mais que triplicaram (229,2%). Entre 2006, ano da promulgação da Lei Maria da Penha, e 2013, apenas em cinco estados registraram quedas nas taxas: Rondônia, Espírito Santo, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro.
Vitória, Maceió, João Pessoa e Fortaleza encabeçam as capitais com taxas mais elevadas no ano de 2013, acima de 10 homicídios por 100 mil mulheres. No outro extremo, São Paulo e Rio de Janeiro são as capitais com as menores taxas.
O lançamento da pesquisa conta com o apoio do escritório no Brasil da ONU Mulheres, da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos.
O estudo completo sobre homicídio de mulheres no Brasil está disponível no site do Mapa da Violência.

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