Publicado por Canal Ciências Criminais
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Por Vitor da Matta Vivolo
O dia 11 de agosto, além da prestigiosa celebração do “Dia do Advogado”, também é curiosamente conhecido como o famoso “Dia do Pendura”. A tradição, que aparentemente remonta aos tempos do Brasil Império, é uma espécie de homenagem à fundação de dois cursos jurídicos na mesma data (em 1827) por nosso então monarca, Dom Pedro I. Segundo Elaine Cristine Franco, o respeito social pela profissão dos advogados era tanto que comerciantes “faziam questão” de pagar pela refeição dos estudantes de direito.
O prestígio compartilhado pelos membros da área do Direito, os famosos “bacharéis”, se dá numa fase de embates nos campos de definição de intelectualidade e conhecimento, principalmente nas academias científicas e de Letras. A figura do “intelectual”, até a virada do século XIX, poderia ser sinônimo de
“doutores, cronistas, bacharéis, parlamentares, poetas, publicistas, declamadores, médicos, letristas, escritores, conferencistas, acadêmicos, filólogos, romancistas, artistas, oradores, polemistas, professores, prosadores, polígrafos, sábios ou homens de ciências, conhecedores de várias línguas, líricos, enfim, toda uma gama de ‘espíritos cultos’” (SÁ, Dominichi Miranda, 2006, p. 37).
A boa prosa, o domínio eloquente da linguagem, e de suas variações retóricas, eram sinônimos de status e demonstração física do papel social do indivíduo profissionalizado. Curioso também é notarmos que tal exercício justamente se faz em prática nos “dias de pendura”: nela,
“os alunos serviam-se nos restaurantes das redondezas, deixando o local sem pagar a conta, não sem antes discursar com brilhantismo, às vezes sobre as mesas, agradecendo em verso e prosa o bom atendimento e com a promessa de retorno no ano seguinte, sempre no dia onze de agosto” (MATTAR, et alii, 2007, p. 2).
Adjetivos subjetivos à parte, o ato performático do discurso bem elaborado reiterava – e ainda o faz – a posição privilegiada do estudante de Direito perante a sociedade que o acolhia. Ou seja, o “pendura” só funcionaria se os demais presentes (leia-se “os donos dos estabelecimentos”) concordassem que tais alunos deveriam ser, digamos, “dispensados” de pagar. Se não há compartilhamento de tal ideário em ambos, não há propagação de tais tradições.
Geralmente, nos estudos históricos, “tradições” representam tanto a elaboração folclórica de comportamento quanto a arquitetura de hierarquias sociais. Vide a eterna disputa entre aquilo que deve ser dito “erudito” ou “popular”, “culto” ou “inculto”, “ciência” ou “curandeirismo”… São debates esses que perpassam toda a história humana, conforme nos estabelecemos enquanto sociedade que luta pelo monopólio de campos de saber/atuação. Não é à toa que universidades e cursos profissionalizantes são tão necessários em nossa contemporaneidade: somente “alguns” podem “saber” e “atuar” em certas áreas (veja meu artigo sobre tal reverberação na política, de alguns meses atrás).
O caso dos advogados, no início do século XIX, nos revela obrigações particulares e peculiares. Dizia-se, em 1843, que
“(…) ao Advogado, intérprete leal da legislação, fiel ao seu juramento para com o Monarca, e para com o País, órgão indefectível da justiça, e das Leis, jamais é lícito, seja qual for o motivo, ou consideração, empregar sua voz prestigiosa contra os grandes interesses sociais ou em detrimento da ordem pública” (vide PENA, 2001, p. 61).
Como é possível então que pudessem banquetear-se gratuitamente na década de 1820? Ou usufruir de tal costume atualmente, em violação ao artigo 176 do Código Penal? A resposta reside justamente na citação de 1843, acima.
A voz prestigiosa do estudante de Direito o capacitava a determinar quando agia à favor ou contra os interesses e ordem sociais. E, à sociedade oitocentista, é de enorme interesse poder compartilhar dos caminhos perambulados por tais intelectuais. Seu estabelecimento era bastante frequentado por vozes prestigiosas? Ora, quem sabe um pouco de tal visibilidade social não fosse absorvida por você?
A virada do século trouxe mudanças. Aos modernos intelectuais, em décadas de 1920, pressagiando os movimentos modernistas, a verborragia e a formação “bachareleica” deixou de ser tão atraente quanto nos tempos de almas coloniais. Não mais era vista como uma ferramenta de distinção social (visto alto índice de analfabetismo em 1890, cerca de 84%, ainda segundo o historiador Dominichi de Sá), ou seja, era responsável por um discurso meramente impressionante em termos vazios de conteúdo.
A velha retórica, persuasiva, deveria ser combatida em prol de um futuro de um país aliado à objetividade e método da ciência. O letrado do século XIX, eclético e anteriormente tomado como autoridade geral em diversos assuntos, agora nada mais era do que figura diletante, estética, frente o compromisso científico da especialização. Nascem então os discursos científicos e médicos, permeando a sociedade brasileira como um todo e pregando que o “Progresso” se faria pela Ciência.
É bastante curioso, portanto, pensarmos nas permanências de certas tradições desassociadas de seus contextos de criação. Nossos “dias de pendura” já geram rebuliços. Será que um pomposo discurso ou promessa de futuro diploma ainda são suficiente como “vale-refeição”? Pois então busquemos entender quando o eram.