Jennifer Lopez, Pitbull e Claudia Leitte cantando na carimônia de abertura. Taamallah/Laurentvu/SIPA/REX/SIPA/REX
Esse não é um texto sobre futebol, nem sobre torcer. É sobre a cerimônia de abertura pura e simplesmente. Mas como todo texto que fala sobre um produto cultural, não é sobre isso somente. É sobre a ausência como discurso, sobre os vazios que testemunharam com quantos apartheids com que se faz um megaevento. Como opera o apagamento das manifestações culturais afrobrasileiras e também a gentrificação de comunidades, o estado de exceção, a repressão dos protestos, a fragilização do trabalho. Mecanismos que a FIFA sabe utilizar tão bem. Outro bom termômetro foram a plateia, atrações principais e os organizadores em conformidade com o padrão de branquitude.
Não surpreendeu uma brasilidade artificialmente construída, exaltando“a história do Brasil ao mundo através de três tesouros: a natureza, a dança e o futebol”. Uma parábola para invisibilizar quem somos litoral e terra adentro, planejado para alimentar a propaganda do racismo cordial. Um cenário que é velho conhecido, onde o saber fazer negro e seus sujeitos não são benvindos sob pena de colocar em risco as coisas como elas são. Como há muito a ser preservado, o que se viu não foi um equívoco: a defesa da miscigenação de culturas e raças sempre foi preferível a uma nação que se reconheça negra.
Talvez fosse o que todos esperavam ver, acostumados com esse mesmo raciocínio em alguns (repito, alguns) desfiles de carnaval. Todos ficaram atordoados. A expectativa era que o monstrinho pelo menos fizesse alguma justiça aquilo que se vê em fevereiro, em junho. Se havia alguma esperança de que essa seria a copa das copas, se é que um dia houve essa possibilidade, a cerimoninha mostrou que a intenção predatória da FIFA é o que é. Nem os comentaristas conseguiram disfarçar seu embaraço.
Limitados por sua impossibilidade conceitual de olhar sobre aqueles a quem exclui e por desinteresse, insistiram numa visão de mundo eurocêntrica e convenientemente racista. Reeditaram a ideia de que “a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados (…) Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente.” Tudo com a maior brevidade possível, porque nem mesmo o mote fuleco da identidade nacional não lhes traria nenhum dividendo pois nenhuma tática de convencimento tem funcionado.
Para falar apenas daquilo que conheço um pouco, senti por exemplo a falta do saber fazer cultural do Maranhão. Isso quando temos uma das maiores folcloristas do Brasil, Dona Teté, caixeira das boas que deixou como legado seu cacuriá. Onde estava tambor de crioula, inebriante por sua percussão e movimentos? Isso para citar nem meia dúzia de manifestações afrobrasileiras de um estado. Um. Tudo aquilo que não estava lá disse muita coisa. Falou sobre o que está acontecendo para além de um muro tangível, transponível somente por quem pode dar algum lucro ou se beneficia dele.
Ainda assim, o pressuposto era uma epopeia contado com os “três elementos” fosse exaustivamente glorificado. E não foi. Como puderam menosprezar aquilo que nos faz brasileiros? Porque não procuraram os especialistas em fazer o maior espetáculo do mundo? Essa foi a indagação de muitos. Não esperavam a desfeita, mesmo que tudo estivesse esclarecido pelo modo como os mundiais tem sido conduzidos: remoções, instauração do estado de exceção, violência, precarização do trabalho, racismo de toda a sorte, desurbanização da cidade. A única promessa que ainda resistia (?) caiu por terra.
Essa foi a decepção intramuros, talvez olhando pelo buraco da fechadura de um lugar confortável. Mas foi negligenciado um pequeno detalhe na estratégia desde o comecinho, o povo. Não implementaram sequer um sistema de cotas para dar algum tom de diversidade entre os presentes. O resultado foi um espetáculo insípido e protocolar que não serviu para o consumo, muito menos para o convencimento. Para quem sempre esteve do lado de fora, anão houve surpresa. Só entre os removidos (e uso essa palavra para dar ênfase à sua associação com a vida humana) são entre 150 mil embora não haja um número preciso.
O único momento potencialmente interessante da festa foi um fiasco. Não foi mostrada a participação de Juliano Pinto (sim, ele tem um nome) com o exoesqueleto feito pela equipe de Miguel Nicolelis. Era mais importante mostrar um ônibus entrando no estádio sabe. A cereja do bolo é que o pontapé tão aguardado (exibido depois pela imprensa também para efeitos protocolares) não foi feito no centro da arena para não prejudicar a grama em função do peso do equipamento. Mais uma vez a inclusão que segrega, é disso que foram feitos os vazios.
Não deu nem pra rir bola que se abria e parecia um esfincter porque no final das contas era exatamente isso que vimos.
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