quarta-feira, 29 de julho de 2015

Detectando um mentiroso

Dr. Cristiano Nabuco

andrys lukowski - fotolia
andrys lukowski – fotolia
A mentira
Embora achemos não muito aceitável, a mentira está entre nós desde que somos muito pequenos. Nossos pais, por exemplo, amenizam nossa infância com histórias nem sempre muito verdadeiras (como fomos concebidos, que as pessoas não morrem, mas viajam para as estrelas, e por aí vai).
Pensamos, entretanto, que esse hábito ficaria restrito ao período mais primitivo de nossa existência e, à medida que crescemos, esse hábito naturalmente é deixado para trás.
Não é à toa então que nosso imaginário seja então frequentemente preenchido de histórias improváveis e duvidosas, ou seja, de inverdades presentes em todos os níveis.
Não sei se é de seu conhecimento, mas uma pesquisa recente procurou averiguar o quanto essa tendência se faz presente e descobriu-se o seguinte: as pessoas na vida adulta mentem uma a cada cinco interações diárias. (1)
Pamela Meyer, autora de um best-seller intitulado “Liespotting”, aferiu que mentimos tanto em nosso cotidiano, que os registros da pesquisadora chegaram a registrar 200 mentiras em um único dia. (2)
Assim, a “mentirinha” se tornou tão comum (e aceitável socialmente) que não ficou restrita aos nossos primeiros anos, mas é ela ainda usada (amplamente, diga-se de passagem) como um método para se evitar pequenas decepções em nosso círculo social da maturidade.
Eu explico.
Ao contar alguma coisa a alguém, é usual que as pessoas acabem, na grande parte das vezes, relatando apenas alguns “aspectos da verdade”. Assim sendo, sem que perceba, reconta-se tendenciosamente partes dos acontecimentos vividos que instintivamente possam ir ao encontro daquilo que as pessoas, de fato, desejariam ouvir.
Veja então que a realidade nua e crua – aquela discutida pelos filósofos durante séculos – dificilmente é repassada adiante em sua forma “bruta”, mas reconstruída, particularmente para que esteja em sintonia com os propósitos individuais de uma interação.
É dessa maneira que as histórias retalhadas dão um contorno mais grandioso a nossa pessoa ao nos fazer sentir mais aceitáveis aos olhos dos demais e, funcionando como uma verdadeira cola social, assegura maiores chances de aceitabilidade.
Mas, mentimos então o tempo todo?
Ao que tudo indica nas pesquisas, “sim”. E, embora não totalmente intencional, esse hábito atua como método altamente adaptativo.
Portanto, não seria de todo incorreto dizer que, a rigor, falamos muito pouco a respeito do que verdadeiramente se passou conosco ao usarmos distintos níveis de mentira (ou, da verdade, se você preferir).
© Brian Jackson - fotolia
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Essas graduações podem partir daquelas popularmente denominadas de “mentira branca” (ou seja, sem maiores consequências) e podem chegar aos níveis que constituem um quadro de mentira patológica, isto é, de quando se mente de uma maneira contínua e compulsiva, sem controle.
As mentiras “leves” podem incluir: o atraso a um compromisso importante porque  “pegamos muito trânsito” (quando na verdade não saímos no horário correto), o “esquecimento” de uma tarefa de trabalho (quando na verdade não sabíamos fazê-la), a data de aniversário de um amigo importante (quando na verdade, estávamos sem vontade de cumprimentá-lo) etc.
Dessa maneira, temos sempre prontas em nossa cabeça inverdades pouco comprometedoras,  prontas para serem usadas. E, no outro extremo, temos o quadro psicopatológico denominado de “mitomania”.
Quando a mentira se tornou doença
Nesses casos, o indivíduo vive em um ciclo de fabulações, ao criar situações falsas e, o pior, ao fazer de tudo para que se possa acreditar nelas. Assim, na mitomania, a pessoa se sente confortável com invencionice, ao preencher com mais e mais detalhes o enredo da fábula recém-criada.
Algumas vezes podem ser as pequenas mentiras, entretanto, outras vezes são histórias mais elaboradas, de maneira mais detalhada e sofisticada. Dessa forma, na mitomania, o paciente usa da invenção deliberada para enganar pessoas e tirar vantagens, e nunca as admite, muito embora tenha plena consciência de que são fictícias, bem como ainda não se constrange quando é colocado a prova e eventualmente descoberto.
Vale lembrar que os casos de mentira desonesta e criminosa, usualmente oriunda dos psicopatas ou estelionatários, não se aplicaria a esses casos, já que são considerados como desvios de caráter.
Vamos fazer um experimento?
5 maneiras de detectar um mentiroso
a) Comece fazendo perguntas neutras.
Comece observando como uma pessoa responde questões neutras. Pergunte, por exemplo, a respeito do tempo, planos para o final de semana, ou qualquer coisa que possa provocar uma resposta normal e confortável. Quando a pessoa responder, observe a linguagem corporal e o movimento dos olhos (assim se estabelece um padrão de como a pessoa age ao falar a verdade). Certifique-se de fazer perguntas suficientes para detectar esse padrão.
b) Comece a pesquisar um tema mais “delicado”.
Uma vez que saímos do um território mais neutro em direção à “zona de mentira'', fique atento às mudanças observadas na linguagem corporal, nas expressões faciais, no movimento dos olhos ou ainda na estrutura das frases. É inevitável que padrões distintos aparecerão ao se contar uma situação que, na verdade, não ocorreu. Por isso então que se torna importante observar uma linha de base de comportamento normal antes de entrar nessa fase.
c) Fique ligado nas linguagens corporais.
O comportamento mentiroso, muitas vezes, pode ser detectado através de sinais como olhares rápidos de um lado ou outro, enquanto se explica alguma coisa; toques rápidos no nariz com a ponta dos dedos; o mordiscar os lábios; dificuldade de se olhar diretamente a outra pessoa no ato da explanação ou ainda piscar excessivamente enquanto se descreve a situação (veja que todos são sinais típicos de desvio de direção ou de “efeito fumaça”).
d) Preste atenção ao tom, cadência e estrutura das sentenças.
Muitas vezes, quando uma pessoa está mentindo, ela irá mudar um pouco o tom e cadência de sua voz. O ponto central é atentar na velocidade. Muitas vezes, as sentenças mais elaboradas ou estruturadas é um sinal que a pessoa está ativamente tentando blindar a história mentirosa para que não seja descoberta e, por isso, sem que perceba, acaba se “alongando” nas justificativas e explicações. E, finalmente:
e) Preste atenção quando a pessoa muda repentinamente o “rumo da prosa”.
Como a mentira causa desconforto interno, “trocar” de foco no meio da conversa (mudar de um assunto para outro) pode ser uma pista importante.
Evidente que esses sinais precisam de treino para serem aferidos, mas vale a nota para ilustrar o quanto podemos, efetivamente, detectar tais comportamentos.
Passemos então ao mais importante.
O autoengano
Até aqui falamos das mentiras corriqueiras que possuem como objetivo enganar os outros ao cumprir as funções sociais que, conforme descrevemos, na grande maioria das vezes assumem funções inócuas e inexpressivas, entretanto, existem as outras mentiras, mais importantes, que têm como objetivo nos autoenganar.
Eu explico novamente.
As “mentirinhas” têm como objetivo manipular o exterior, mas o autoengano visa aquietar nosso interior.
Creio que essas últimas, definitivamente, podem ser as mais desastrosas, pois nos afastam da realidade interna e, de maneira efetiva, nos afastam daquilo que verdadeiramente precisaríamos ser.
Encontramos assim pessoas que se dizem “satisfeitas com o emprego”, “felizes com o relacionamento” ou ainda “realizadas com sua vida” – o que, nem de longe, muitas e muitas vezes, é verídico.
© Balazs Kovacs Images - fotolia
© Balazs Kovacs Images – fotolia
Essas mentiras têm a função então de não nos colocar no foco, pois ainda que insatisfeitos com nossa vida, permanecemos fora da zona de desafio, pois o desconhecido, muitas vezes, nos tira da condição do controle e do conhecimento das coisas. Portanto, muitas pessoas passam uma vida inteira infelizes, pelo simples receio de seguir em frente e enfrentar aquilo que ainda é inexplorado.
Sério isso, não acha? Saiba então que a maioria dos meus pacientes que buscam terapia, o fazem exatamente por conta das mentiras internas que precisam ser desconstruídas.
Pense nisso.
Conclusão
A primeira e mais óbvia dedução que podemos extrair deste texto é a de que tudo acima descrito pode também ser uma grande invencionice minha. Quem sabe…
A segunda, e claramente mais sensata, é a de que somos exímios criadores de realidades, ou seja, quase sempre estamos tentando dar sentidos às coisas e, assim, manipulando a existência a favor de nossa sobrevivência.
Portanto, seja dentro de uma pequena ou até de uma grande mentira (ou verdade, pois acho que, a rigor, no final das contas, tanto faz), apenas estamos procurando dar algum contorno àquilo que, efetivamente, nos sirva a algum propósito e que consiga, então, nos dar algum sentido de vida.
Talvez usemos desse recurso para poder sobreviver.
É uma pena, entretanto, que muitos descubram isso apenas no final da vida e então possam, finalmente, se aceitar.
                   "E se me achar esquisita, respeite também… até eu fui obrigada a me respeitar” – Clarice Lispector.

domingo, 26 de julho de 2015

Agora você vê. Agora, não | 30 Animais que são mestres na camuflagem

Viver não é e nunca foi algo fácil. Se você acha a sua vida civilizada complicada, acredite, ela seria muito pior se ainda vivessemos na selva, rodeados por todos os tipos de ameaça. Os animais lá fora sabem muito bem disso, e nesses longos milênios de vida selvagem, eles aprenderam alguns truques bem interessantes para se manterem vivos.
Uma dessas técnicas é a camuflagem, ou como eu gosto de definir, a arte de não estar lá, mesmo estando lá – entenderam? Saber se camuflar pode ser uma ótima forma de, literalmente, viver mais um dia, no caso dos animais pequenos ou desprovidos de armas de defesa e, até mesmo, ser o fator que determinará quem vai dormir de barriga cheia, no caso dos predadores que se utilizam do elemento surpresa para atacar suas presas.

Aves

1. Coruja

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2. Lagópode-escocês

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3. Coruja

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4. Urutau-grande

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5. Outra coruja

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Insetos

6. Pulga da areia

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7. Louva-a-deus

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8. Bicho-pau

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9. Bicho-pau

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10. Tropidoderus Childrenii

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12. Lagarta comum

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13. Lagarta Adelpha Serpa Selerio

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Animais marinhos

14. Dragão-marinho-folhado

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15. Cavalo-marinho

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16. Polvo

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17. Solha

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18. Caranguejo

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19. Cavalo-marinho

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20. Linguado

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Outros

21. Lagartixas

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22. Sapo

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23. Tem outro sapo nessa imagem – incrivelmente!

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24. Lagartixa rabo-de-folha

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25. Girafa

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26. Leão

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27. Filhote de jacaré no meio do lodo

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28. Guepardo (Chita)

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29. Foca

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30. Esquilo

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by tudointeressante

Documentários inéditos revelam os podres de filmes de Hollywood

POR RODRIGO SALEM

Quem não gosta de uma boa história de fracasso, decisões erradas e egos destroçados? Em Hollywood, elas normalmente eram jogadas para baixo do tapete. Mas isso está mudando.
Dois longas hilariantes para quem curte histórias absurdas de Hollywood estrearam recentemente. O primeiro é "Lost Soul: The Doomed Journey of Richard Stanley's Island of Dr. Moreau", de David Gregory. O documentário acaba de sair em blu-ray nos EUA e explica as lendas em torno do filme "A Ilha do Dr. Moreau" (1996), sobre um cientista que cria uma sociedade de híbridos de animais e humanos.
Manuela Eichner
O longa começou a ser dirigido por Richard Stanley, um então jovem diretor sul-africano. O plano inicial era fazer um pequeno filme existencialista e bizarro a partir do romance de ficção científica de H.G. Wells, de 1896. Mas tudo mudou quando Marlon Brando se mostrou interessado no projeto.
O orçamento pulou para US$ 55 milhões, e o estúdio decidiu que Val Kilmer dividiria a tela com Brando. Os dois se odiaram. E Kilmer começou a aprontar no set, ameaçando outros atores e queimando com cigarro as costeletas de membros da equipe.

Veja o trailer de 'Lost Soul'


O diretor teve um ataque nervoso, subiu em um coqueiro e não quis mais sair. Dez dias depois de começar a rodar, foi demitido, e John Frankenheimer ("Ronin") assumiu. Mas Stanley não voltou para casa.
Foi para a selva ao redor do set, encontrou um monte de figurantes e voltou disfarçado entre eles como um dos monstros do filme. Em entrevista recente, disse que só queria ver o que estavam fazendo com o seu longa.
Já Brando não seguia roteiro, atuava com um balde na cabeça e exigia que o "menor homem do mundo", o ator dominicano Nelson de la Rosa, de 70 cm de altura, estivesse sempre ao seu lado —daí surgiu o personagem Mini-Me de "Austin Powers". Os extras passavam o tempo fumando maconha e fazendo sexo. Traumatizado, Stanley nunca mais dirigiu um longa de ficção.
Já "Superman Lives", polêmico projeto de Tim Burton com Nicolas Cage como o Homem de Aço, nunca saiu do papel, mas muita gente se pergunta no que teria dado. "The Death Of 'Superman Lives': What Happened?", de Jon Schnepp, lançado em julho em um site exclusivo do filme, tenta responder.
Jon teve acesso a imagens inéditas de Cage testando uniformes do Superman e a quase todos os envolvidos com o projeto, que existiu entre 1996 e 1999.

Assista ao trailer oficial de 'The Death of Superman Lives'



Entre as cenas, Nicolas Cage usa um terno azul frouxo para fazer um Clark Kent nada glamoroso. E Jon Peters, ex-cabeleireiro que virou produtor em Hollywood, fala coisas como: "Superman precisa enfrentar uma aranha gigante" e "acho a capa muito gay". Tudo é confrontado pelo documentarista em depoimentos recentes do roteirista Kevin Smith e do diretor Tim Burton.
A Warner, com medo de mais um fracasso no que vinha sendo um péssimo ano, cancelou "Superman Lives" a três semanas do início das filmagens —mesmo já tendo gastado US$ 15 milhões. A tal "aranha gigante" foi parar no filme "As Loucas Aventuras .

by .folha.uol

Trajetória de navio exemplifica impunidade reinante nos mares

IAN URBINA


A precária jangada feita de barris de óleo vazios e um tampo de mesa de madeira balançava com o movimento das ondas, amarrado ao lado do Dona Liberta, navio cargueiro de 112 metros ancorado no oceano Atlântico ao largo da África Ocidental, longe da terra.

"Desça!" gritou um tripulante, brandindo um facão, forçando dois passageiros clandestinos tanzanianos, que não sabiam nadar, a descer do navio para a jangada.



Apostando na chance de conseguir uma vida melhor, os viajantes clandestinos tinham dado azar. Eles haviam passado nove dias ao mar sem serem descobertos, a maior parte do tempo escondidos na sala de máquinas do Dona Liberta. David George Mndolwa, um deles, recorda-se de ter pensado enquanto o Dona Liberta desaparecia lentamente no horizonte: "É o fim".

Poucos lugares no mundo são tão anárquicos quanto o alto mar. Embora a economia global dependa da frota de mais de 4 milhões de pequenas embarcações pesqueiras e cargueiras e dos 100 mil navios mercantes de grande porte que transportam cerca de 90% das mercadorias do mundo, as leis marítimas de hoje são quase tão difíceis de aplicar quanto eram séculos atrás, quando os grandes impérios da história passaram a explorar os confins dos mares.

Segundo autoridades marítimas, milhares de marujos, pescadores ou migrantes morrem todos os anos no mar em circunstâncias suspeitas, mas os culpados raramente são levados à Justiça. Ninguém é obrigado a denunciar crimes violentos cometidos em águas internacionais.
Christophe Simon/AFP
Voluntário limpa praia da Espanha em novembro de 2002 após vazamento de petróleo de um navio
Voluntário limpa praia da Espanha em novembro de 2002 após vazamento de petróleo de um navio
Dezenas de milhares de trabalhadores, muitos deles menores de idade, são escravizados em embarcações, por endividamento ou coerção. Em média, um navio grande afunda a cada quatro dias, e entre 2.000 e 6.000 marinheiros morrem a cada ano.

Segundo pesquisadores, navios jogam intencionalmente mais óleo de motor e dejetos nos mares em três anos que o óleo dos acidentes da plataforma Deepwater Horizon e do Exxon Valdez somados, além de emitir volumes monumentais de alguns poluentes do ar, muito mais que todos os carros do mundo. A pesca comercial, boa parte dela ilegal, reduziu fortemente os estoques marinhos.
O Dona Liberta faz parte dos navios que mais infringem as leis, servindo como estudo de caso de prevaricação marinha.

O navio não apenas abandonou passageiros clandestinos no mar como foi acusado de várias outras infrações.
Sigit Pamungkas/Reuters
Marinha da Indonésia afunda navio que fazia pesca ilegal em sua costa: fotografia de novembro de 2003
Marinha da Indonésia afunda navio que fazia pesca ilegal em sua costa: fotografia de novembro de 2003
O decrépito navio frigorífico percorreu dois oceanos e cinco mares, aportando em 20 cidades, maltratando, abandonando e enganando seus tripulantes, e causou uma mancha de óleo de quase 150 quilômetros de comprimento. Credores perseguiram seu proprietário, tentando cobrar milhões de dólares em dívidas não saldadas, e grupos de fiscalização marinha incluíram a empresa proprietária do navio em uma lista de suspeitos de praticar pesca ilegal. Mesmo assim, o navio operou livremente e nunca lhe faltaram trabalho ou mão de obra.

"No mundo marítimo, é muito mais fácil para os países ignorar os navios que criam problemas, como o Dona Liberta, que tomar medidas para sanar a situação", explicou Mark Young, comandante aposentado da Guarda Costeira dos EUA e ex-chefe de implementação da lei no oceano Pacífico.

Uma investigação do jornal "The New York Times" constatou que embarcações que desaparecem no horizonte tendem a também escapar de qualquer fiscalização. Há dezenas de pactos marítimos assinados por muitos países, o setor de transporte marítimo já publicou calhamaços de diretrizes e a agência marítima das Nações Unidas redigiu centenas de regras. No entanto, as agências nacionais e internacionais geralmente não têm a inclinação ou os recursos para implementar essas normas.

O sistema moderno de embandeiramento, que permite que navios comprem o direito de hastear a bandeira de um país, desde que prometam cumprir as leis nacionais, garante boa cobertura para empresas inescrupulosas.
Tuwaedaniya Meringing/AFP
Navios pesqueiros em porto da província de Pattani, na Tailândia
Navios pesqueiros em porto da província de Pattani, na Tailândia
Geralmente um navio só pode ser interceptado em alto mar por uma embarcação militar ou policial com a mesma bandeira que a dele. Mas as Marinhas do mundo vêm sendo reduzidas há décadas. A maioria dos países, incluindo Bahamas, sob cuja bandeira o Dona Liberta circulava, não tem embarcações que fazem patrulhas regulares fora de suas próprias águas nacionais.

Quando crimes são cometidos, não existe uma agência única que tenha interesse suficiente no assunto para procurar, prender ou processar os culpados. Os passageiros clandestinos no Dona Liberta, por exemplo, eram imigrantes sem documentos originários da Tanzânia, que viviam na África do Sul e desembarcaram na Libéria. O navio pertencia a uma companhia grega com sede na Libéria. Seus tripulantes eram principalmente filipinos, o capitão era italiano. O navio operava sob a bandeira das Bahamas e navegava em águas internacionais.
"Quem pode conduzir uma investigação dessas?", indagou Mark Young.

Os trunfos em jogo são grandes: o derretimento do Ártico está ampliando as rotas comerciais. Avanços tecnológicos abrem o leito marinho profundo a novas perfurações e à extração mineral. Rivalidades marítimas e pirataria vêm gerando choques mais violentos. E, com a economia cada vez mais sem fronteiras, o comércio marítimo é vital. "Sem navios, metade do mundo congelaria e a outra metade morreria de fome", disse a escritora náutica britânica Rose George.
Young vê a necessidade de ações urgentes. Convidado a descrever os oceanos mundiais de hoje, ele respondeu: "São como o velho oeste. Leis fracas, poucos xerifes, muitos bandidos."
Associated Press
Marinha holandesa intercepta supostos piratas na costa da Somália; fotografia de abril de 2011
Marinha holandesa intercepta supostos piratas na costa da Somália; fotografia de abril de 2011
ARMADOR INVISÍVEL
A Grécia é um país pequeno, mas é uma superpotência no mundo marítimo, com muitas empresas de transporte marítimo e um número desproporcional dos armadores mais ricos do mundo. Quase metade das famílias mais conhecidas de armadores vem de Chios, ilha grega minúscula a oito quilômetros ao largo da Turquia.

É em Chios que vive George Kallimasias, cuja família trabalha com transportes marítimos há três gerações. Ao que consta, Kallimasias é dono da Commercial S.A., que operava o Dona Liberta e uma frota de cerca de duas dúzias de navios semelhantes.

As principais famílias de armadores gregos têm fama de possuir espírito de "noblesse oblige" -muitos campos de futebol, escolas e hospitais ostentam placas com seus nomes. Mas Kallimasias é decididamente invisível.

"Ele não é nem um pouco como os outros", comentou um estivador na marina de Chios. Ele apontou para o iate de 33 metros de Kallimasias, "Something Wild", que, segundo ele, raramente é usado e permanece sob guarda constante. A casa à beira-mar de Kallimasias em Chios se esconde atrás de um muro de cinco metros. Quando ele se desloca de carro, geralmente é acompanhado por guarda-costas.
"O cara é esquivo como fumaça", comentou Lefteris Kormalis, vendedor de peças para motores de navio. No ano passado, Kormalis ganhou uma causa na Justiça na qual cobrava US$ 30 mil que Kallimasias lhe devia. O armador é citado em pelo menos 15 processos legais semelhantes em tribunais da Grécia e dos EUA.
Construído no Japão em 1991, o Dona Liberta foi adquirido pela Commercial S.A. em 2004. Vagarosa e potente, a embarcação com quilha de aço tem mais de 560 metros cúbicos de espaço refrigerado, o suficiente para transportar o equivalente a mais de 25 milhões de latas de atum, sua carga principal.

Esse tipo de barco é uma espécie em extinção que vem sendo eliminada do setor de transporte de frutas e legumes por navios-contêineres que têm mais de três vezes seu tamanho e são dotados de tecnologia superior de controle da temperatura. De acordo com seguradoras marítimas, nos últimos anos, para sobreviver, muitas dessas embarcações passaram a transportar pescado, boa parte do qual ilegal, e outras mercadorias de contrabando, como cigarros falsificados e drogas.
Kallimasias não respondeu a pedidos de entrevista. Nos anos 1980, quando uma de suas empresas deixou de pagar um empréstimo de mais de US$ 11 milhões contraído com o Banco Nacional da Grécia, parlamentares gregos investigaram. Eles encontraram um navio de Kallimasias que valeria a pena ser apreendido, mas a embarcação pegou fogo no mar e afundou, em um ato visto como tentativa proposital de lucrar com o dinheiro do seguro.

MENDIGANDO COMIDA

Tripulantes do Dona Liberta frequentemente contatavam o sindicato internacional de marinheiros por meio de bilhetes escondidos ou telefonemas cochichados, implorando por ajuda. Documentos sindicais mostram que eles descreviam violações de segurança, condições de trabalho difíceis, roubo de salários e abandono.

Em 2012 as infrações levaram o sindicato a lançar um aviso a marinheiros, recomendando que não trabalhassem no Dona Liberta.

"Quando seu contrato termina, eles mandam você para casa, dizendo que transferiram o dinheiro", escreveu o ucraniano Yuriy Cheng em post sem data escrito em russo em um fórum on-line de marinheiros, aludindo à empresa proprietária do Dona Liberta. "Quando você chega em casa, descobre que não há dinheiro na conta."
Cheng descreveu um impasse no navio entre a direção e os tripulantes, em sua maioria filipinos, que pararam de trabalhar depois de passar um ano sem pagamento, apesar de serem ameaçados de prisão se não entregassem a carga. "Esses sujeitos tinham 40 ou 50 anos, mas estavam chorando de frustração, como bebês."

Em junho de 2011, o marinheiro veterano George Cristof percebeu que alguma coisa estava errada a partir do momento em que pisou no Dona Liberta no porto de Truro, na Inglaterra. Contratado por uma agência de emprego marítimo em Galati, Romênia, ele tinha sido instruído pela empresa de transporte marítimo de Kallimasias, em breve telefonema, a voar imediatamente à Inglaterra, onde uma tripulação completa estaria à sua espera, pronta para zarpar.

Ao chegar, porém, Cristof encontrou uma situação muito diferente. Os suprimentos tinham acabado, o porão de carga estava vazio e a tripulação tinha partido. O Dona Liberta mal tinha combustível suficiente para manter acesa a lâmpada da sala do leme, muito menos o motor do navio, de 5.600 cavalos-vapor.
Outro romeno, Florin Raducan, chegou pouco depois. Nos meses seguintes, os dois homens sobreviveram do que pescavam e dos alimentos enlatados e garrafas de água que mendigavam de embarcações que passavam por eles. Às vezes passavam dias sem comer. Eles não tinham o dinheiro e os documentos necessários para desembarcar e voltar para casa. Não havia aquecimento, água corrente, eletricidade ou banheiros que funcionassem. Eles colhiam água da chuva para se lavar.

Todos os dias, eles ficavam à espera de ordens que nunca chegavam. "A prisão com um salário", disse Cristof, repetindo uma expressão usada com frequência para caracterizar o trabalho no mar. "Só que o salário não é garantido."
Dados da ONU mostram que mais de 2.300 marinheiros foram abandonados em situação semelhante por seus empregadores nos últimos dez anos. Apenas recentemente é que o setor adotou normas, que entrarão em vigor em 2017, obrigando armadores a contratar seguros ou a apresentar outras provas de terem condições de cobrir os custos de marinheiros impedidos de sair de um porto, sem falar nos custos decorrentes de mortes de marinheiros e benefícios por invalidez de longo prazo.

No Reino Unido, uma organização humanitária resgatou os dois marinheiros romenos. "Eles não queriam ficar, mas se negavam a partir", explicou Ben Bailey, da organização em questão, Mission to Seafarers. Cristof e Raducan tinham pago mais de mil dólares cada um à agência de empregos para conseguir o trabalho no Dona Liberta. O abandono do navio implicava na perda do direito de recuperar esse dinheiro ou de receber os salários prometidos. Depois de cinco meses, entretanto, os dois desistiram e voltaram à Romênia.

DESPEJO DE ÓLEO

Numa manhã de abril de 2012, três funcionários do grupo de fiscalização ambiental SkyTruth, com sede na Virgínia Ocidental, debruçaram-se sobre imagens de satélite transmitidas pela Agência Espacial Europeia. Seis riscos negros chamaram sua atenção em águas ao largo costa africana. Pareciam ser consequência do despejo intencional de óleo e dejetos de navios.

O rastro mais longo no oceano se estendia por 150 quilômetros a partir de Cabinda, Angola. O Dona Liberta, na cabeça do rastro, avançava para o noroeste.
Não era um episódio isolado. Em fevereiro de 2012, autoridades ambientais britânicas tiveram que limpar uma mancha de óleo deixada pelo Dona Liberta no rio Fal. Oito meses antes, o navio foi citado por inspetores russos por ter fraudado livros de registro de óleo, num indício de despejo ilegal de óleo no mar. O Dona Liberta foi intimado pelo mesmo delito por inspetores espanhóis em julho de 2009, inspetores holandeses em 2005 e inspetores britânicos em 2004.

A maioria dessas intimações não resultou em multas. Tirando os EUA e o Reino Unido, são poucos os países que regularmente levam essas violações à Justiça.
Dessa vez, nem chegou a ser aberto um inquérito.

ABANDONADOS NO ATLÂNTICO

Em maio de 2011, Mndolwa e Jocktan Francis Kobelo acharam que teriam a chance de construir uma nova vida quando ouviram um tripulante em um porto mencionar que o navio de fundo vermelho que aguardava no cais, sem guarda noturno, ia zarpar para a Inglaterra em poucas horas.

Levando seus passaportes, um pão e um saquinho plástico com suco de laranja, os dois subiram pelo cordame do navio naquela noite, desceram escondidos até a sala de máquinas e ali ficaram nos cinco dias seguintes.

Em pouco tempo, o esconderijo tornou-se insuportável. As turbinas e os vapores os deixavam atordoados. "O calor roubava nossa respiração", contou Mndolwa. A comida deles acabou em dois dias.

Arrastando-se pelo labirinto dos níveis inferiores do navio até chegarem ao convés, eles encontraram bolachas e garrafas de água em um bote salva-vidas a bordo do navio. Foram encontrados ali quatro dias depois.

Os comandantes mais compassivos costumam obrigar passageiros clandestinos a trabalhar e então os fazem desembarcar no porto seguinte. Nos últimos anos, porém, as leis de imigração europeias foram endurecidas, o medo do terrorismo cresceu e autoridades portuárias em todo o mundo reagiram intensificando as penalidades para navios que chegam com passageiros ilegais.

No entanto, as regras em terra muitas vezes chocam-se com a realidade no mar. Os comandantes são proibidos de lançar clandestinos ao mar, mas são multados ou obstruídos se os levam até a terra.

Em 2014, dois passageiros clandestinos guineenses foram empurrados para fora ou saltaram de um navio ao largo da costa francesa, depois que vários países africanos se recusaram a permitir que desembarcassem. Um deles morreu afogado. Dois anos antes disso, uma tripulação lançou quatro clandestinos africanos no Mediterrâneo (todos sobreviveram), depois de o capitão ser informado do custo de sua repatriação. Esse custo pode chegar a US$ 50 mil por passageiro clandestino.

Na manhã seguinte após sua expulsão, Mndolwa e Kobelo tentaram se manter animados na jangada à deriva, falando de futebol e de suas famílias. Porém, a desnutrição, a desidratação e a espuma marinha gelada os tinham enfraquecido. Quando o Sol se pôs e a temperatura começou a cair, eles entraram em pânico. Kobelo começou a tossir e a vomitar sangue.

A esperança apareceu na forma de um pontinho no horizonte. Um barco de madeira de três metros com motor de popa se aproximou. "Por que vocês estão aqui?" perguntou um pescador, jogando uma corda para a jangada. "Não sei", respondeu Mndolwa.

Horas mais tarde, eles chegaram a um píer na cidade portuária de Buchanan, na Libéria, onde foram detidos por estarem sem documentos. Seis dias depois, Kobelo, cuja tosse tinha se agravado, morreu. Ele tinha 26 anos.

O Dona Liberta chegou ao porto de Truro, perto da extremidade sudoeste da Inglaterra, em junho de 2011, um mês depois de os passageiros clandestinos serem deixados à deriva. Aparentemente alertada pelas autoridades liberianas, a polícia britânica subiu no navio e interrogou o capitão. Mais tarde, arquivou a investigação por falta de provas.

Detido, Mndolwa passou cinco meses na prisão antes de ser enviado de avião para a Tanzânia e, mais tarde, retornar à Cidade do Cabo. Hoje ele tem 27 anos e vive perto da mesma ponte onde vivia antes de embarcar no Dona Liberta. Ele diz voltará a tentar entrar em um navio como clandestino. "Vou mudar minha vida."

DE VOLTA, COM NOVO NOME

O Dona Liberta desapareceu durante boa parte do ano passado, depois de desligar seu transponder localizador. Embora seja ilegal para grandes navios sob a maioria das condições, desligar o aparelho é fácil e é comum no caso de embarcações que transportam contrabando.

Em novembro, o navio reapareceu no golfo da Tailândia. Procurado por um repórter a 12 quilômetros da costa, o capitão chinês explicou que o navio tinha novo proprietário -uma companhia chinesa- e nova bandeira: a do Kiribati, arquipélago minúsculo no Pacífico central.

O novo nome do navio, Sea Pearl, estava pintado na quilha, ao lado da sombra do nome antigo. Desde então, o navio mudou sua bandeira mais uma vez e agora usa a de Vanuatu.

Indagado sobre as infrações passadas da embarcação, o capitão respondeu: "Empresa diferente, empresa diferente."

quinta-feira, 23 de julho de 2015

“Para quando eu me for”, um texto para quem não tem medo de se emocionar



    Nunca se espera. Nem mesmo o paciente terminal acha que vai morrer hoje ou amanhã. Na semana que vem talvez, mas apenas se a semana que vem continuar sendo na semana que vem. Morrer é uma surpresa. Sempre.
Nunca se está pronto. Nunca é a hora. Nunca vamos ter feito tudo o que queríamos ter feito. O fim da vida sempre vem de surpresa, fazendo as viúvas chorarem e entediando as crianças que ainda não entendem o que é um velório (Graças a Deus).
Com meu pai não foi diferente. Na verdade, foi mais inesperado. Meu pai se foi com 27 anos, a idade que leva muitos músicos famosos. Jovem. Moço demais. Meu pai não era músico nem famoso, o câncer parece não ter preferência. Ele se foi quando eu ainda era novo, descobri o que era um velório justamente com ele. Eu tinha 8 anos e meio, o suficiente pra sentir saudade pelo resto da vida. Se ele tivesse morrido antes, não haveriam lembranças. Nem dor. Mas também não haveria um pai na minha história. E eu tive um pai.
Tive um pai que era duro e divertido. Que me colocava de castigo com uma piadinha pra não me magoar. Que me dava um beijo na testa antes de dormir. Hábito esse que eu levei para os meus filhos. Que me obrigou a amar o mesmo time que ele e que explicava as coisas de um jeito melhor que a minha mãe. Sabe? Um pai desses que faz falta.
Ele nunca me disse que ia morrer, nem quando já estava deitado cheio de tubos. Meu pai fazia planos para o ano que vem mesmo sabendo que não veria o próximo mês. No ano que vem iríamos pescar, viajar, visitar lugares que nenhum de nós conhecia. O ano que vem seria incrível. Eu vivi esse sonho com ele.
Acho, tenho certeza na verdade, que ele pensava que isso daria sorte. Supersticioso. Pensar no futuro era o jeito dele se manter otimista. O desgraçado me fez rir até o final. Ele sabia. Ele não me contou. Ele não me viu chorar a sua perda.
E de repente o ano que vem acabou antes de começar.
Minha mãe me pegou na escola e fomos ao hospital. O médico deu a notícia com toda a sensibilidade que um médico deixa de ter com os anos. Minha mãe chorou. Ela também tinha um pingo de esperança. Como disse antes, todo mundo tem. Eu senti o golpe. Como assim? Não era só uma doença normal dessas que a gente toma injeção? Pai, como eu te odiei. Você mentiu pra mim. Não fiquei triste, pai, fiquei com raiva. Me senti traído. Gritei de raiva no hospital até perceber que meu pai não estava lá pra me colocar de castigo. Chorei.
Mas aí meu pai foi meu pai de novo. Trazendo uma caixa de sapato debaixo dos braços, uma enfermeira veio me consolar. Dentro, dezenas de envelopes lacrados com frases escritas onde deveriam ficar os nomes dos destinatários. Entre as lágrimas e os soluços não consegui entender direito o que estava acontecendo. E então a mesma enfermeira me entregou uma carta. A única fora da caixa.
“Seu pai me pediu pra entregar essa pessoalmente e te dizer pra abrir. Ele passou a semana inteira escrevendo tudo isso e disse que era pra você. Seja forte.” Disse a enfermeira com um abraço.
PARA QUANDO EU ME FOR dizia o envelope que ela me entregou. Abri.
Filho,
Se você está lendo eu morri. Desculpa, eu sabia.
Não queria te dizer que ia acontecer, não queria te ver chorar. Parece que consegui. Acho que um homem prestes a morrer tem o direito de ser um pouco egoísta.
Bom, como eu ainda tenho muito pra te ensinar, afinal você não sabe de nada, deixei essas cartas. Você só pode abrir quando o momento certo chegar, o momento que eu escrevi no envelope. Esse é o nosso combinado, ok?
Eu te amo. Cuida da sua mãe, você é o homem da casa agora.
Beijo, pai.
PS: Não deixei cartas para sua mãe, ela já ficou com o carro.
E com aqueles garranchos, afinal naquela época não era tão fácil imprimir como é hoje em dia, ele me fez parar de chorar. Aquela letra porca que uma criança de 8 anos mal entendia (eu, no caso) me acalmou. Me arrancou um riso do rosto. Esse era o jeito do meu pai de fazer as coisas. Que nem o castigo com uma piadinha para aliviar.
Aquela caixa se tornou a coisa mais importante do mundo. Proibi minha mãe de abrir, de ler. Mas elas eram minhas, só pra mim. Sabia decorado todos os momentos da vida em que eu poderia abrir uma carta e ler o que meu pai tinha deixado. Só que esses momentos demoraram muito pra chegar. E eu esqueci.
Sete anos e uma mudança depois eu não tinha ideia de onde a caixa tinha ido parar. Eu não lembrava dela. Algo que você não lembra não faz falta. Se você perdeu algo da sua memória, você não perdeu. Simplesmente não existe. Como dinheiro que depois você acha no bolso da bermuda.
E então aconteceu. Uma mistura de adolescência com o novo namorado da minha mãe desencadeou o que meu pai sabia que um dia aconteceria. Minha mãe teve vários namorados, sempre entendi. Ela nunca casou de novo. Não sei ao certo o motivo, mas gosto de acreditar que o amor da vida dela tinha sido meu pai. Mas esse namorado era ridículo. Eu sentia que ela se rebaixava pra ele. Que ele fazia pouco da mulher que ela era. Que uma mulher como ela merecia algo melhor do que um cara que ela tinha conhecido no forró.
Me lembro até hoje do tapa que veio acompanhado da palavra “forró”. Eu mereci, admito. Os anos me mostraram isso. Na hora, enquanto a pele da minha bochecha ardia, lembrei da minha caixa e das minhas cartas. De uma carta em específico que dizia PARA QUANDO VOCÊ TIVER A PIOR BRIGA DO MUNDO COM A SUA MÃE.
Corri para o quarto e revirei minhas coisas o suficiente para levar outro tapa na cara da minha mãe. Encontrei a caixa dentro de uma mala de viagem na parte de cima do armário. O limbo. Procurei entre os envelopes. Passei por PARA QUANDO VOCÊ DER O PRIMEIRO BEIJO e percebi que havia pulado essa, me odiei um pouco e decidi que a leria logo depois, e por PARA QUANDO VOCÊ PERDER A VIRGINDADE, uma que eu esperava abrir logo, logo. Achei o que procurava e abri.
Pede desculpa.
Eu não sei o motivo da briga e nem quem tem razão. Mas eu conheço a sua mãe. Então a melhor maneira de resolver isso é com um humilde pedido de desculpas. Do tipo rabinho entre as pernas.
Ela é sua mãe, cara. Te ama mais do que tudo nessa vida. Sabe, ela escolheu parto normal porque alguém disse que era melhor pra você. Você já viu um parto normal? Pois é, quer demonstração de amor maior que essa?
Pede desculpa. Ela vai te perdoar. Eu não seria tão bonzinho.
Beijo, pai.
Meu pai passava longe de um escritor, era bancário, mas as palavras dele mexeram comigo. Havia mais maturidade nelas do que nos meus quatorze anos de vida. O que não era muito difícil por sinal.
Corri para o quarto da minha mãe e abri a porta. Já estava chorando quando ela, chorando também, virou a cabeça pra me olhar nos olhos. Não lembro o que ela gritou pra mim, algo como “O que você quer?”, mas lembro que andei até ela e a abracei, ainda segurando a carta do meu pai. Amassando o papel já velho entre os meus dedos. Ela me abraçou de volta e ficamos em silêncio por não sei quantos minutos.
A carta do meu pai fez ela rir alguns momentos depois. Fizemos as pazes e conversamos um pouco sobre ele. Ela me contou umas manias estranhas que ele tinha, como comer salame com geleia de morango. De algum modo, senti que ele estava ali. Eu, minha mãe e um pedaço do meu pai, um pedacinho que ele deixou naquele papel. Que bom.
Não demorou muito e li PARA QUANDO VOCÊ PERDER A VIRGINDADE.
Parabéns, filho.
Não se preocupa, com o tempo a coisa fica melhor. Toda primeira vez é um lixo. A minha foi com a puta mais feia do mundo, por exemplo.
Meu maior medo é você ler o envelope e perguntar da sua mãe antes da hora o que é virgindade. Ou pior, ler o que eu acabei de escrever sem nem saber o que é punheta (você sabe, não sabe?). Mas isso também não será problema meu, não é mesmo?
Beijo, pai.
Meu pai acompanhou minha vida toda. De longe, sim, mas acompanhou. Em incontáveis momentos suas palavras me deram aquela força que ninguém mais conseguia dar. Ele sempre dava um jeito de me arrancar um sorriso em um momento de tristeza ou de clarear meus pensamentos num momento de raiva.
PARA QUANDO VOCÊ CASAR me emocionou, mas não tanto quanto PARA QUANDO EU FOR AVÔ.
Filho, agora você vai descobrir o que é amor de verdade. Vai descobrir que você gosta bastante da sua mulher, mas que amor mesmo é o que você vai sentir por essa coisinha aí que eu não sei se é ele ou ela. Sou um cadáver, não um vidente.
Aproveita. É a melhor coisa do mundo. O tempo vai passar rápido, então esteja presente todos os dias. Não perca nenhum momento, eles não voltam mais. Troque as fraldas, dê banho, sirva de exemplo. Acho que você tem condições de ser um pai tão incrível quanto eu.
A carta mais dolorida da minha vida foi também a mais curta do meu pai. Acredito que ele sofreu para escrever aquelas quatro palavras o mesmo que eu sofri por ter vivido aquele momento. Demorou, mas um dia eu tive que ler PARA QUANDO SUA MÃE SE FOR.
Ela é minha agora.
Uma piada. Um palhaço triste que esconde o choro por trás do sorriso de maquiagem. Foi a única carta que não me arrancou um sorriso, mas entendi a razão.
Eu sempre respeitei o combinado com meu pai. Nunca li nenhuma carta antes do momento certo. Tirando PARA QUANDO VOCÊ SE DESCOBRIR GAY, claro. Nunca acreditei que o momento de ler essa carta chegaria, então abri muitos anos atrás. Ela foi uma das mais engraçadas, por sinal.
O que eu posso dizer? Ainda bem que morri.
Deixando as brincadeiras de lado e falando sério (é raro, aproveita). Agora semimorto eu vejo que a gente se importa muito com coisas que não importam tanto. Você acha que isso muda alguma coisa, filho?
Não seja bobo, seja feliz.
Sempre esperei muito pelo próximo momento. Pela próxima carta. Pela próxima lição que meu pai tinha pra me dar. Incrível como um homem que viveu 27 anos teve tanto pra ensinar pra um senhor de 85 como eu.
Agora, deitado na cama do hospital, com tubos no nariz e na traqueia (maldito câncer), eu passo os dedos por cima do papel desbotado da última carta. PARA QUANDO SUA HORA CHEGAR o garrancho quase invisível diz.
Não quero abrir. Tenho medo. Não quero acreditar que a minha hora chegou. Esperança, lembra? Ninguém acredita que vai morrer hoje.
Respiro fundo e abro.
Oi, filho, espero que você seja um velho agora.
Sabe, essa foi a carta mais fácil de escrever. A primeira que eu escrevi. A carta que me livrou da dor de te perder. Acho que estar perto do fim clareia a cabeça pra falar sobre o assunto.
Nos meus últimos dias eu pensei na vida que eu levei. Na minha curta vida, sim, mas que me fez muito feliz. Eu fui seu pai e marido da sua mãe. O que mais eu poderia querer? Isso me deu paz. Faça o mesmo.
Um conselho: não precisa ter medo.
PS: Tô com saudade.

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