domingo, 14 de agosto de 2016

A farra do Bolsa Atleta





by Demétrio Rana 
Ilustrações Luciana Oliveira

Procure nos mecanismos de busca da internet qualquer referência ao Campeonato Brasileiro de Vela de 2013. Você não encontrará nenhum link. O erro não é do Google: a competição não existiu. Mesmo assim, o governo federal paga, mensalmente, por meio do Bolsa Atleta, algumas centenas de milhares de reais a velejadores que ficaram nas três primeiras colocações na disputa de cerca de 60 provas (apenas dez delas olímpicas) desse suposto campeonato. Esse é só um dos diversos modelos de fraude no Bolsa Atleta identificados pela reportagem da 2016.
Em reunião do conselho técnico da Confederação Brasileira de Vela (CBVela) em abril de 2013, a entidade decidiu que só indicaria as dez classes olímpicas, as quatro pan-americanas e um total de 15 provas da categoria júnior ao Bolsa Atleta, programa criado no governo Lula e que é a vitrine esportiva da gestão Dilma. Só no primeiro edital de 2014, referente aos resultados esportivos de 2013 nas modalidades olímpicas, 6.667 atletas foram contemplados com valores que vão de R$ 370 (atletas de base e destaques em competições estudantis) a R$ 3.100 (atletas que estiveram em Londres-2012). Um novo edital, para as modalidades não olímpicas, foi aberto em agosto. No ano passado, essa chamada premiou mais 866 esportistas. Aquela decisão da vela, entretanto, acabou revisada na reunião de julho. Nela, estava presente Claudio Biekarck, que depois seria vice-campeão brasileiro de Lightning em 2013. Graças às mudanças nos critérios, ele receberá do governo mais de R$ 11 mil neste ano.
A Associação Brasileira da Classe Lightning foi quem organizou o “Campeonato Brasileiro de Lightning”, na represa de Guarapiranga, com 15 barcos de São Paulo, um do Paraná e outro do Rio. O evento não cumpriu o que manda a Portaria 33, de 18 de fevereiro de 2014, que alterou o 11o parágrafo do artigo 30 da Portaria 164, de 6 de outubro de 2011. “Os eventos indicados, para efeito de concessão do Bolsa Atleta, serão considerados válidos somente se apresentarem cinco equipes ou competidores, de estados ou países diferentes, conforme o caso, à exceção de eventos de modalidades e provas do programa olímpico ou paraolímpico, que poderão apresentar número inferior de equipes ou competidores, mediante justificativa da entidade nacional de administração desportiva, aceita pelo Ministério do Esporte”, diz o texto. De 2011 até fevereiro, a legislação, no parágrafo 70 do mesmo artigo, exigiu representantes de cinco Estados mais a federação organizadora (seis Estados, portanto), sem mencionar o mínimo de competidores de outros países em eventos internacionais.
Para driblar a lei, a CBVela criou um Campeonato Brasileiro de Vela com 32 “etapas” separadas, em datas diferentes (na verdade, os campeonatos de classes) e com quase 60 provas adultas – contando masculino e feminino. Na maioria das disputas não olímpicas, como é o caso da Lightning, não havia barcos de cinco Estados diferentes, o que inviabilizaria a indicação da prova para o Bolsa Atleta. Via assessoria de imprensa, a CBVela explicou que a legislação fala em eventos, sem especificar nada sobre etapas. “O nosso Campeonato Brasileiro teve 14 Estados inscritos”, argumentou a entidade. Segundo a confederação, o Ministério do Esporte sempre esteve ciente do mecanismo, apesar de a pasta ser categórica: “A prova precisa ter mais de cinco competidores ou equipes de estados diferentes”. Não há qualquer referência, no site da CBVela, a esse suposto Campeonato Brasileiro, nem mesmo nas súmulas oficiais das competições disponíveis na internet. Questionada, a confederação não enviou as súmulas das competições para que fosse calculado o número de atletas que recebem a bolsa.
A postura leniente do Ministério do Esporte (ME) com a CBVela contrasta com os critérios adotados perante outras modalidades. No começo de setembro, quando já estavam abertas as inscrições do edital das modalidades não olímpicas, a Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação (CBHP) notou, por conta própria, que o ofício enviado pelo ministério, avisando sobre a abertura do edital, ignorava as alterações na lei promovidas em fevereiro e não citava o mínimo de países. Aproveitando que estava em Brasília, a diretoria da CBHP foi ao ME, que reconheceu o erro. Ali, a coordenadora do Bolsa Atleta, Adriana Taboza de Oliveira, explicou que o mínimo de Estados é por prova, não por competição.
“A patinação tem muitas provas e na maioria não tem cinco Estados. Em função de abusos, agora a prova tem que ter cinco Estados. Ela (Adriana) explicou pessoalmente. A lei fala claramente”, diz Moacyr Neuenschwander Filho, presidente da CBHP. No mesmo dia, ele redigiu um ofício pedindo que a exceção aberta a provas olímpicas valha também para aquelas que constam no programa dos Jogos Pan-Americanos, beneficiando as patinações artística e de velocidade.
A legislação que cobra um mínimo de Estados vem desde 2011, mas nunca havia sido exigida na patinação, conforme relata seu presidente. Situação idêntica vivia a Confederação Brasileira de Beisebol e Softbol (CBBS), outra que cuida de modalidade pan-americana. Os campeonatos brasileiros historicamente reúnem apenas times de três Estados (São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul), mas só neste ano os eventos deixaram de ser válidos para o Bolsa Atleta. Se em 2013 foram 279 esportistas contemplados, o número vai cair para zero quando a próxima lista for anunciada, em novembro.
Considerando apenas o valor de bolsa nacional (R$ 925), o governo federal pagou irregularmente R$ 3,096 milhões a atletas das modalidades beisebol (masculino) e softbol (feminino), somente no ano passado. Como comparação: neste ano, 20 das 29 confederações olímpicas brasileiras receberam menos de R$ 3 milhões da Lei Agnelo/Piva, principal fonte de recurso das entidades. “Pode ter havido um erro”,
argumenta o secretário de alto rendimento do Ministério do Esporte, Ricardo Leyser. “Essa regra é para todos. A lei precisa ser cumprida. Se não foi cumprida no outro ano, tem que ser agora.” O “erro” vem desde 2011 e só foi notado agora, apesar de qualquer busca na internet mostrar os resultados do campeonato brasileiro com apenas dois ou três Estados. Questionado, o Ministério não reconheceu o erro. Defendendo-se, alegou que a antiga redação do parágrafo 110 era dúbia, mas não citou o parágrafo 70 da Portaria de 2011: “A entidade nacional de administração de cada modalidade somente poderá indicar evento nacional no qual estejam representadas, no mínimo, cinco unidades da federação distintas da unidade da federação que sediará o evento”. O texto não deixa dúvidas.
Por causa da mudança de postura do ministério, a Confederação Brasileira de Beisebol e Softbol, que não recebe verbas da Lei Agnelo/Piva e vive de recursos próprios, acredita que o fim do apoio via Bolsa Atleta terá efeito cascata, uma vez que o dinheiro era utilizado, pelos atletas, para pagar viagens, técnicos e inscrições – esta, sim, sua principal fonte de dinheiro. “Pode ser irreversível para a modalidade, porque vai haver muita desistência”, lamenta o presidente da CBBS, Jorge Otsuka. “O único programa esportivo que realmente servia para os atletas nacionais era o Bolsa Atleta.” Otsuka já estuda mudar o formato do Campeonato Brasileiro, de forma que times das sete federações estaduais associadas participem, ainda que com níveis técnicos muito discrepantes

Isto É Independente

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