terça-feira, 16 de setembro de 2014

Carta à Lucia Santaella


Publicado: 13/09/2014 17:18 BRT 
lucia santaella
Cara Lucia Santaella,
"conheço" você dos livros de semiótica adotados nos diversos cursos de comunicação Brasil afora. No primeiro ano da faculdade de jornalismo, você foi palestrar no nosso departamento. Perguntei a um amigo se ele iria à sua palestra. Ele respondeu: "vou e vou levar um cartaz: Santaellaaaaaaa, I wanna have your babyyy". Isso virou uma espécie de bordão depois. Bons e bobos tempos. Enfim.
Qual não foi meu espanto ao ver seu mimimi classe média sofre compartilhado na minha timeline. Incrível como a perda de um privilégio (e veja que estamos falando de um privilegiozinho de nada, que é poder estacionar seu carro aqui ou mais acolá) esteja levando até pessoas inteligentes como você a soltar os argumentos mais rasos.
Uma simples pesquisa no Google revelaria à senhora que vermelho é uma cor muito utilizada para sinalizar ciclovias mundo afora:
ciclovia 1
Winterthur, Suíça
ciclovia 2
Bristol, Inglaterra
ciclovia 3
Madison, Wisconsin -- ou seja: nos Estados Unidos, lugar que, todos sabemos, é um antro comunista.
ciclovia 4
Cambridge, Inglaterra
Diversas cidades brasileiras (com prefeitos de vários partidos) também possuem ciclovias em vermelho.
ciclovia porto alegre
Porto Alegre
ciclovia curitiba
Curitiba
ciclovia santos
Santos, SP
ciclovia indaiatuba
Indaiatuba, SP
Não consta que os habitantes destas cidades tenham ficado mais agressivos, agitados ou estressados desde que as ciclovias vermelhas foram implementadas.
Posso também te dar meu testemunho pessoal. Há quase dois anos moro em Utrecht, na Holanda, e trabalho em Amsterdam. Ambas têm ciclovias vermelhas. Pedalo na primeira cidade e uso o transporte público na segunda. Não sinto que meu sistema nervoso central esteja entrando em parafuso. Eu e as pessoas à minha volta parecem muito bem, obrigada.
Aliás, nunca me senti menos estressada do que hoje em dia, dona Lucia. Pedalar tem me feito um bem danado. Sabe quando eu era agressiva, agitada, acelerada e estressada? Nos seis anos em que morei em São Paulo. Passava quase três horas presa no ônibus para ir ao trabalho e à faculdade. Isso, num dia normal. Se chovesse...
Quando a empresa me mandava fazer uma pauta no outro lado da cidade e essa pauta acabava por volta das seis da tarde, nem o conforto do táxi pago pelo patrão compensava o suplício de ficar horas dentro dele. Quantas vezes me vi presa na Marginal, presa na Teodoro Sampaio, presa na Faria Lima, presa-presa-presa. Todos, sozinhos em seus carros com espaço para mais quatro pessoas, presos-presos-presos. Xingando o motorista da frente. Respirando poluição. Aguentando a poluição sonora. Me diga com sinceridade, Santaella: o que tem mais chances de te fazer entrar em parafuso, viver desse jeito ou ver um pouquinho de vermelho todo dia?
Não precisa responder. Toma mais Google rápido: 1) São Paulo tem índices de ansiedade e depressão semelhantes a zonas de guerra. 2) Especialista diz que trânsito de São Paulo pode ocasionar doenças. 3) Pesquisa da IBM relaciona níveis de estresse e a mobilidade das cidades.
Outra coisa que o Google poderia ter te mostrado é que Haddad não está permitindo que os ciclistas também utilizem as vias, ao pintar as ciclovias no chão. A bicicleta já é prevista como meio de transporte no código de trânsito. Com ou sem ciclovia, o ciclista sempre teve o direito de circular ali. O que a ciclofaixa faz é dar mais segurança ao ciclista -- coisa que se faz muito necessária numa cidade como São Paulo, onde os motoristas se acham os donos das ruas e muitas vezes resolvem "dar um susto" no ciclista para ele "saber seu lugar". Se o motorista paulistano se finge de surdo, que o aviso para respeitar os ciclistas seja em vermelho berrante então.
Vale lembrar que, na Holanda, nem todas as ruas possuem demarcações no chão. Mas os ciclistas são bem-vindos em todas as ruas, a não ser que seja explicitamente dito o contrário. Assim também é no código de trânsito de Sampa.
Aliás, falando em Holanda, devo dizer que a parte que mais me incomoda do teu "desabafo" é quando você diz "será que Haddad pensa que vivemos em plena Amsterdam?". É uma frase recorrente. Já vi mjitas vezes nos comentários de portais de notícias: "tá pensando que isso aqui é Amsterdam?". E aí eu pergunto: por que, cara pálida, São Paulo não pode ser como Amsterdam? O que é que Amsterdam tem de tão especial, tão inatingível, que São Paulo sequer possa tentar ter?
A ideia de que existe algo especial e inatingível em Amsterdam está contida no uso da palavra "plena" na sua frase. Veja só que irônico, Santaella. Nunca pensei que usaria o que aprendi nos seus livros para analisar você. Este "plena" está tão carregado de síndrome de vira-lata que acho surpreendente que você mesma não veja.
Amsterdam não nasceu tendo ciclovias em todo canto. Para se tornar o que é hoje, houve muitos protestos. Veja:

Os holandeses não pedalam porque são seres iluminados, super preocupados com o futuro do planeta. Ou porque querem ser saudáveis e se exercitar todo dia. Eles pedalam porque é preciso. Porque há políticas públicas que priorizam a bicicleta. O transporte público na Holanda é caro e o serviço muitas vezes deixa a desejar (só para se ter uma ideia de quào caro é, quando cheguei aqui, não sabia andar de bicicleta. Em quatro meses, gastei mais de mil euros só com transporte. Quanto aos probleminhas que me fazem dizer que ele deixa a desejar, deixo para outro post porque tenho comigo vários mimimis). Os carros, como o vídeo diz, não têm acesso aos centros das cidades -- e os estacionamentos são uma fortuna. Andar de bicicleta é então a opção mais econômica e mais rápida -- e às vezes a única forma de chegar a um determinado destino.
Essas políticas públicas, vale repetir, não vieram sem luta. E é essa luta que está acontecendo agora no Brasil. A estrutura da cidade está começando a mudar, como nos anos 1970 a Holanda começou a mudar.
Eu sei que São Paulo não é Amsterdam. Andar de bicicleta em Amsterdam, que é toda plana, é mais fácil. São Paulo tem ladeiras que eu jamais me arriscaria a enfrentar. Mas não pense que aqui é mamão com açúcar: chove com frequência e venta muito (e a lei de Murphy faz com que esse vento seja sempre frontal, não importa pra onde você vire). Quando neva, o chão fica escorregadio. Se tem ciclista disposto a enfrentar as intempéries na Holanda, com certeza tem ciclista disposto a enfrentar uma subidinha em São Paulo.
São Paulo também é consideravelmente maior que Amsterdam. A primeira tem 10 milhões de habitantes, contra 800 mil da segunda. Mas o fato de ser maior é mais um argumento a favor da bicicleta. Não faz sentido que uma cidade enorme, com tanta gente, priorize o meio de transporte individual, que mais ocupa espaço.
Todo mundo sabe que a mobilidade em São Paulo entrou em colapso, e faz tempo. Talvez a senhora também devesse perceber isso, antes de xingar muito no Facebook.

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